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  • ‘EU’, ‘ELES’ e ‘NÓS’

    Sabíamos que estávamos sendo vigiados por ‘ELES’. Muitos relatos de abduções, fotografias e filmagens de suas naves e tecnologias não paravam de ser publicados nas redes sociais. Porém, por esforços dos governos mundiais que negavam e ocultavam os fatos, e também, por uma certa mescla de realidade e fantasia nos filmes e seriados hollywoodianos, e, provedoras globais de fluxos de mídias via streaming, além da ignorância que era pregada nas diversas religiões de sermos o centro do universo, ignoramos os sinais por ‘ELES’ transmitidos.

    ‘ELES’ até que apelaram a partir da década de 1970, quando começaram a desenhar os agroglifos nas culturas de certas gramíneas, por meio do achatamento de culturas como: cereais, colza, cana, milho, trigo, cevada e capim. E era obvio que não tínhamos ainda tecnologias para realizar o feito desses complexos e grandes desenhos em apenas algumas horas. Mas, mesmo assim, ignoramos. E, criamos soluções para explicar o inexplicável, e tudo foi abordado como um feito fictício. Então, pagamos o preço por mesclar a realidade e a fantasia, não sabendo mais diferenciar uma da outra. Assim, preferimos viver o engodo, e fomos enganados por nós mesmos.

    Entretanto, ‘Nós’ criamos a S.U.P.E.R (Superintendência Universal Para Extraterrestres Relações), em que na verdade era uma organização oculta e privada, que se fantasiava de uma Ecovila Sustentável criada por uma rede mundial de cientistas alternativos ufólogos, e pequenos empreendedores startup nos ramos da cyber tecnologia e biogenética (biohacking).

    Éramos perfeitos na arte do engodo, pois utilizamos as técnicas alienantes do sistema contra ele mesmo, ao fundarmos nossa Ecovila na Patagônia, que cobria uma área como mais de 239 km², banhada pelos paramos das geleiras andinas, com terras hiper férteis. Abrigando uma população de mais ou menos cinquenta e cinco mil habitantes de várias nacionalidades do mundo. Em que nosso maior foco agrícola e produção eram cânhamo, cannabis medicinal, morangos, uvas, cerejas, cevada e lúpulo, além de muitas criações de animais. E assim, fabricávamos os melhores vinhos, cervejas de cannabis e espumante de morango do mundo. Tudo de origem orgânica e primeira qualidade, e sem a necessidade de máquinas elétricas, ou movidas a combustíveis fosseis, tudo manufaturado a moda antiga, em que o trabalho humano e animal era o nosso maior forte.

    Vivíamos como antigos povos, antes da revolução industrial, nossas roupas, casas e utensílios eram manufaturados naturalmente, e nossas tecnologias eram 100% artesanais, permanentes e renováveis. Também, focávamos em energias sustentáveis como eólicas e fotovoltaicas, em que criamos a maior usina sustentável do mundo, que fornecia energia para todas as vilas da Patagônia por um custo acessível e barato, além de doar energia de graça para todas as dependências e prédios governamentais dessas vilas. Estratégia nossa, para implementar esse projeto com apoio intergovernamental, tanto da Argentina como do Chile.

    Porém, tudo isso não passava de uma capa que cobria o livro. Pois, subterraneamente éramos outra coisa.

    A S.U.P.E.R era um segredo de um punhado de famílias dentro da Ecovila, punhado esse, que era formado pelas pessoas menos relevantes da nossa comunidade eco agrícola. Na verdade, ‘NÓS’ éramos os fundadores dessa comunidade, mas passamos o nosso poder para os antigos moradores da região, transformando-os de simples camponeses em grandes empreendedores. Alguns ganhadores de prêmios Nobel e outras condecorações internacionais. Porquanto, eles eram nossas máscaras, e nem eles, como também, os outros moradores da Ecovila sabiam disso. ‘NÓS’ éramos um mistério… um segredo bem guardado por pactos de vida e morte, em meio ao paraíso andino.

    No submundo dos nossos quartéis subterrâneos, situava o centro tecnológico e informativo de nossa inteligência. Tínhamos uma empresa operadora de satélites, a StarSky Corporation, que atuava em 52 países com sedes em Israel e na China, além de 32 empresas subsidiarias de telecomunicações espalhadas pelo mundo. O que facilitava nossa rede de comunicações e informação, dessa forma, tínhamos olhos e ouvidos em todo lugar.

    Contudo, estávamos também sendo vigiados, e de início não sabíamos. Aquele fato da coisa observada, observar o observador. Pois nossos servidores se utilizavam da surface web, ou deep web como era mais conhecida. E, ‘ELES’ é que eram os verdadeiros donos do iceberg como todo. E, assim, os nossos olhos e ouvidos eram, também, os olhos e ouvidos deles. Seus motores de busca construíram um banco de dados, pelos seus spiders, e através de hiperligações indexaram nossas informações aos seus servidores na deepnet. Quando descobrimos que estávamos sendo escaneados, toda nossa informação já eram deles.

    Quando nossos hackers investigaram quem são ‘ELES’, se depararam com uma parede de proteção inacessível, em uma (darknet) parte do espaço IP alocado e roteado que não está executando nenhum serviço. Até para as inteligências dos governos mais poderosos o acesso era fechado, pois se utilizavam da Dark Internet, a internet obscura. E de cara percebemos que ‘ELES’, os não-humanos, eram quem estavam nos vigiando.

    Contudo, resolvemos abrir o jogo e mandar mensagens para ‘ELES’, em um projeto apelidado como: חנוך (Chanoch). Durante meses enviamos várias mensagens, então, de repente, nossos servidores detectou uma mensagem oculta que dizia: “E andou Enoque com Deus, depois que gerou a Matusalém, trezentos anos, e gerou filhos e filhas. E foram todos os dias de Enoque trezentos e sessenta e cinco anos. E andou Enoque com Deus; e não apareceu mais, porquanto Deus para si o tomou.”.

    Ao receber aquele texto, ficamos perplexos. De início, achamos ser uma brincadeira. Até recebermos outra mensagem, que dizia: “E sucedeu que, indo eles andando e falando, eis que um carro de fogo, com cavalos de fogo, os separou um do outro; e Elias subiu ao céu num redemoinho”. Então, depois de longas horas de reflexão, intentamos que as mensagens vêm a nós na forma e maneira que podemos perceber. Sendo, que eles queriam escolher alguém entre nós para uma viagem. Não sabíamos como responder a tal pedido, e mandamos uma mensagem correspondente do que temos de fazer para realizar tal acontecimento. E, eles nos responderam com três sequencias binárias: 101.

    No dia seguinte a essa misteriosa resposta, para o nosso espanto, fomos notificados por um de nossos agricultores que se encontrava no campo de cevada, se deparando com um símbolo gigante desenhado ‘IOI’. Então, rapidamente percebemos que aquele campo seria o local de contato. E, ‘EU’ fui escolhido para a tal viagem com ‘ELES’. Então, todas as noites acampei no local marcado.

    Acho que propositalmente, na noite 101 em que me encontrava sozinho em minha barraca, e já desesperançado de algum contato, ‘ELES’ vieram! E de súbito só me lembro de ver uma forte luz branca.

    Quando acordei, me deparei em uma maca feita de uma solução gelosa, de um verde fosforecente, algo como se estivesse deitado sobre água, mas, era firme, e amaciava com o peso do meu corpo. Não tinha temperatura, nem frio e nem quente, e o mais louco é que meu corpo não sentia esse material, era como se eu estivesse deitado sobre o ar. O ambiente era de uma luz violeta neon, muito calmo aos olhos, e não tinha paredes, teto ou solo. O silencio era profundo, irritante e assustador. Para todo o lado que eu me voltava, via apenas um horizonte infinito, tanto para cima como para baixo. E tive medo de sair da maca, pensando cair nesse infinito abismo. E a sensação era por demais desconfortante, achei que estava morto.

    Nisso, me senti sendo vigiado, algo ou alguém me observava, e vi alguma espécie de vulto transparente se locomover ao meu redor. Então, pela primeira vez senti algo que me tocou!

    — Uai!

    — Calma!

    — Quem é você?

    — Então, provou.

    — Provei o quê?

    — A sensação de sentir nada.

    Ao ouvir isso, perplexo me calei. E pasmei! Vendo uma espécie humanoide alta e magra a minha frente. Com olhos extremamente azuis e findados como os asiáticos, cabelos brancos longos, e pele extremante branca, fria como a de um cadáver. E, diante do meu silêncio e espanto, ela continuou a dizer, falando sem mexer a boca, que mais parecia uma fenda em seu rosto magro:

    — Assim, somos ‘NÓS’. Não temos a capacidade de sentir como vocês, e os invejamos por isso. Essa forma que você vê a sua frente, não é nosso corpo. É apenas um traje, pois vocês não têm a capacidade de nos ver sem ele. Somos seres pertencentes a outra dimensão, que vai muito mais além de sua física e compreensão.

    — De onde são vocês?

    — Somos seres da Quarta-Vertical, um mundo mais além do que a matéria física. E, nesse momento você está diante de uma plateia de nós. Não pode vê-los, pois, estão sem seus trajes físicos. Porém, saiba que também você usa um traje, e ele que te faz sentir. Mas, nós, mesmo com nossos trajes, não podemos sentir como você sente, e perceber como você percebe. Apenas percebemos as coisas físicas, através de alguns impulsos elétricos de contato nos transmitidos por nossos trajes, que são mínimos, sem sentimentos e emoções.

    — Onde fica fisicamente a Quarta-Vertical?

    — No plano físico, conhecido por vocês como seu sistema solar. Em que nossa Morada é o Sol.

    — Então, estou no Sol?

    — Claro que não! Seu corpo físico não aguentaria.

    — Onde estou?

    — Em nosso ponto de contato. Na parte oculta da Lua. É daqui que o observamos, desde sua criação como seres existenciais. E, temos alguns de vocês aqui conosco. Na verdade, somos seus guardiões, mensageiros e protetores.

    — Protetores! Contra quem nos protegem?

    — ‘DELES’ e de vocês mesmos. Pois, se assim não fosse, vocês não mais existiriam como espécie.

    — ‘DELES’ quem?

    — Aqueles a quem vocês chamam de seres infernais. No início, ‘ELES’ eram como ‘NÓS’, e vieram de ‘NÓS’. Mas, se corromperam. Pois, desejaram sentir a emoção que vocês sentem. Por isso, eles lhes causam dores e prazeres, para sugar as energias de seus sentimentos. E, fazem isso agora, através da internet. Por isso, lhes deram esses pequenos dispositivos que vocês carregam em suas mãos. O próximo passo deles, é implementar esses dispositivos aos seus corpos físicos. Aí, então, drenarão suas energias vitais, como um canudo drena o líquido numa garrafa de refrigerante.

    — Onde eles vivem?

    — Antes viviam aqui na Lua, depois os expulsamos para Saturno e Plutão. Mas, quando fizeram o pacto com os muitos chefes e governantes de sua sociedade, precipitaram-se na terra. Quando teve uma grande chuva de meteoros. Então, agora vivem entre vocês.

    — E, como podemos reconhecê-los, se vivem entre nós?

    — São os seres lagartos, mas se disfarçam com trajes humanos. Por tanto, seus trajes se alimentam de sangue, e são sensíveis a luz do sol. Por isso, procuram andar mais a noite, e poucas vezes a luz do dia. E, para resistir a luz diurna, precisam beber inúmeros litros de sangue humano fresco e vital. Só assim, os trajes resistem por mais tempo. Porém, alguns deles se tornaram híbridos, cruzando com a sua espécie. E são metades humanos e ‘reptilianos’ como alguns de vocês qualificam. Mas, mesmo assim, precisam de sangue humano para viver. E, como vampiros modernos, eles criaram os bancos de sangue, espalhados por todo mundo. Onde vocês creem estar doando sangue para pacientes hospitalizados, mas apenas 2% desse sangue vai para esses pacientes que necessitam, o resto é comercializado entre eles.

    — E por que vocês não nos alertam sobre isso?

    — Não podemos interferir. Foram vocês que atraíram eles. Suas escolhas. Seus livres-arbítrios.

    — Como assim, nossas escolhas?

    — Por acaso, você não leu a parábola de Adão e Eva?

    — Mas, isso é apenas um mito!

    — Não é apenas um mito. É uma metáfora da realidade, representado em sua espécie dividida entre macho e fêmea. Um código, para os sábios decifrarem.

    — E, por que não nos contam a verdade diretamente, e só nos dão metáforas?

    — Veja o que vocês fizeram com a verdade… ridicularizaram. Enviamos muitos para lhes dizer a verdade. Muitos de nós nascemos como avatares para lhes falarem, e veja o que nos fizeram? Nos mataram, assassinaram, minimizaram. E, mesmo nascendo entre vocês como humanos, ao longo do tempo nos transformaram em engodo e mito.

    — Mas, isso foi em tempos de muita ignorância. Hoje temos tecnologias para registrar e comprovar.

    — Tempos de muita ignorância… saiba que não existe tempo onde a ignorância é mais forte e abrangente do que esse em que vocês vivem. Suas redes de informação, academias e filosofias são lotadas de teorias e não de práticas. Vocês não experimentam mais. Não observam mais… só emulam. E agora que mesclaram a realidade e a fantasia, você acha que nos ouviram? Seremos ridicularizados e banalizados mais uma vez… por isso, agora agimos em oculto sigilo. E falamos na linguagem que vocês não podem deturpar, que são as parábolas e metáforas. Poesias de mistérios místicos e ocultos, que lhes encantam, e fazem pensar. Até serem assimiladas por corações puros, lapidados e lavados que nascem entre vocês.

    Ao ouvir aquelas palavras, o mundo parou em mim. E, lágrimas rolaram do meu rosto.

    — Ernesto! Ernesto! ¡Despierta hombre!

    — Ahh! ¿Qué?

    — ¿Qué haces aquí acampado en el campo de cebada güevón?

    — No lo sé … De repente tuve un sueño confuso. No me acuerdo.

    — ¡Vamos! Es tiempo de cosecha. Creo que perdimos una buena cantidad de grano. Bueno, creo que hubo un torbellino esa noche que aplastó los tallos fértiles.­
  • A arma faz o bom soldado

    Existem poucas coisas que vendem como água nesse mundo como histórias de guerra. Muitas são as narrativas que tratam desse fenômeno da realidade humana. E uma das coisas que mais nos fascinam e nos provocam medo é a tecnologia bélica. Uma história em quadrinho que tem uma arma como protagonista pode parecer assustadora à primeira vista, mas ao fim da leitura, o que era uma simples inovação se torna reflexão.
    O Coronel foi um álbum publicado pela Nemo em 2012, com roteiro de Osmarco Valladão e com desenhos de Manoel Magalhães. Os traços são cartunescos, mas a narrativa é fluída e traz um conto com estudo de personagens muito bem elaborado. Embora se passe num futuro, talvez não tão distante, o foco é minimalista, mais denso em crítica social. Mostra de maneira crua a fetichização das armas de guerra.
    A obra inicia com uma reunião de cientistas e cúpula militar como um breve prólogo. Uma nova tecnologia bélica será apresentada: um fuzil com uma inteligência artificial. O invento teria a proposta de melhorar a atuação do soldado em campo e diminuir corte com gastos militares. O nome da arma é Coronel, exatamente, o fuzil também tem uma patente. A arma dá ordens ao soldado.
    O primeiro capítulo dessa trama, se assim posso chamar, se passa numa lua onde dois exércitos travam batalha. O nosso protagonista é o cabo Isayah Kassian. Ele testa, ou melhor, serve de cobaia para o experimento de guerra. Com a relativa autonomia da arma, o cabo começa a se questionar o papel que desempenha naquela guerra. O roteiro apresenta dilemas bastante coerentes com a trama abordada.
    No desenrolar da história, uma nave coletora de sucata encontra Coronel. E a arma inteligente vai parar nas mãos de uma pessoa frágil e propensa a violência. Esse segundo capítulo me fez refletir o perigo da filosofia armamentista, pois, as armas são criadas para matar, e nem todos estão preparados para ter uma em suas mãos. Principalmente se a arma controla aquele que a possui, simbolicamente falando.
    Osmarco Valladão é designer gráfico, colorista e também elabora roteiros intrigantes. Manoel Magalhães tem boas obras o currículo, como o álbum O Instituto, pela editora Aeroplano. A obra tem 56 páginas, totalmente colorida e tamanho big. A impressão e a encadernação estão ótimas. É bem gostosa de ler, e o preço é sempre convidativo.
  • A digital diabólica

    Pouco se sabe sobre a origem desta lenda, e é completamente aceitável que a maioria não creia em fatos sobrenaturais, principalmente os valorizadores da razão, e já confirmo, meus textos não são pra vocês!!!
    As impressões digitais são únicas em cada um de nós, e através dela estão guardadas algumas informações cruciais, poderia eu então dizer que somos indiretamente controlados por nossas digitais? E ainda ouso dizer, e se fossemos DIRETAMENTE controlados?
    A lenda da digital diabólica parte do pressuposto, de que um espírito maligno é capaz de viajar pelas digitais de qualquer ser humano, de preferência, os mais frágeis e instáveis, ele se instala na vítima como um vírus impossível de ser combatido fisicamente ,nem mesmo os caça-fantasmas saberiam o que fazer diante dessa ameaça iminente.
    Depois de instalado em seu hospedeiro, a tarefa em poucos minutos alcançada é penetrar os neurônios da vítima, até obter total controle sobre ela, que então, passa a apresentar comportamentos psicopatas e perturbadores, o único jeito de se livrar da digital diabólica é fazendo a biometria!!!!! vem  pra  biometria  vem
  • A Educação Obrigatória é um crime contra as crianças

    Para falar sobre educação, devemos saber como se dá o processo de aprendizagem.
    Toda criança nasce desprovida do poder de raciocínio, o qual distingue os homens dos animais. Sabendo que a criança poderá se tornar um ser humano adulto, ela é tem, potencialmente, a capacidade de raciocinar dentro dela.
    A medida que a criança cresce ela cria fins e descobre meios para alcançá-los. Esses fins são baseados em sua personalidade e seu conhecimento dos meios é baseado no que aprendeu ser mais apropriado.
    Quando ela se torna adulta, ela desenvolveu suas faculdades o quanto pode. Todo esse processo de desenvolver as facetas da personalidade do homem é sua educação.
    Para desenvolver as facetas de sua personalidade a criança não necessita de instrução formal sistemática, pois isso está dentro do espaço direto de sua vida cotidiana, ou seja, não exige grandes exercícios das capacidades de raciocínio.
    Porém, para desenvolver o conhecimento intelectual, que está fora do espaço direto de sua vida cotidiana, envolve um exercício muito maior de seu cérebro. Para desenvolver esse conhecimento é necessária instrução sistemática, uma vez que o raciocínio progride em etapas lógicas ordenadas, organizando observações em um corpo de conhecimento sistemático. A criança, então, tem que desenvolver capacidades de raciocínio e de observação.
    Necessitando de instrução sistemática ela tem 3 opções, o livro, o instrutor e a combinação livro e professor.
    O livro apresenta assuntos de forma completa e sistemática, já o instrutor conhece o livro e lida com a criança diretamente e pode explicar pontos de dúvida e de difícil compreensão.
    A combinação do livro e instrutor é a melhor para a instrução formal.
    Serão necessárias 3 ferramentas básicas, a leitura, a escrita e a aritmética.
    Através da leitura ela poderá estudar ciências naturais, história e geografia e depois economia, política, filosofia, psicologia e literatura.
    A escrita irá ajudar no aprendizado, pois ela ramificará esses vários assuntos em ensaios e composições.
    A aritmética irá lhe possibilitar usar números simples até as partes mais desenvolvidas da matemática, sem falar que ela poderá ajudar no processo de desenvolvimento no raciocínio lógico da criança.
    A principal dessas 3 é a leitura, e para aprendê-la o alfabeto é a ferramenta principal e lógica.
    Agora, falando sobre a personalidade, cada criança tem a sua, o que permite no futuro ter um grande espectro da especialização da divisão do trabalho.
    As habilidades e interesses de cada criança é natural que seja variado. E tentar uniformizar os interesses é um crime contra a criança, uma vez que nega os princípios fundamentais da vida e do crescimento humano.
    Deve ficar claro que nem a razão e nem a criatividade podem funcionar numa atmosfera de coerção. Isso quer dizer que, o melhor tipo de instrução formal é aquele que é adequado para a personalidade individual da criança, ou seja, a instrução individual. Somente na instrução individual as potencialidades humanas podem desenvolver em seus níveis mais altos.
    Isso quer dizer que existe uma grande injustiça no Brasil que é proibir que os pais ensinem seus próprios filhos ou paguem um instrutor para os ensinar. Além dessa injustiça tem uma outra que se chama Base Nacional Comum Curricular, uma vez que ela impõe padrões uniformes ela causa um sério dano à diversidade de gostos e aptidões humanas. Mais ainda: ela força crianças com pouca capacidade de raciocínio à escolaridade, e isso uma ofensa criminal às suas naturezas. Sem falar que indiretamente a Base Nacional Comum Curricular não permite que surjam escolas diferentes para cada tipo de demanda, uma vez que cada escola deve seguir essas imposição. Em decorrência disso, todas as crianças da nação serão obrigadas a seguir os mesmo conteúdos, mesmo que elas tenham personalidades e aptidões diferentes.
    Então vem a questão, quem deve ser o supervisor da criança? Os pais ou o estado?
    Os pais são os tutores naturais da criança, uma vez que foram eles  que conceberam-na sob um contrato legítimo entre homem e mulher. Já o estado não tem relação alguma com a criança, sem falar que ele decreta o que deve ser obedecido sob risco de prisão. A criança, sendo tutelada pelo estado, irá crescer sob as asas de uma instituição que repousa sobre a violência e restrição. Tirania de modo algum é compatível com o espírito do homem, já que ele exige a liberdade para seu pleno desenvolvimento.
    Com a educação e a tutela exclusivamente sendo dominada pelo estado, surge uma raça passiva de gados servidores do estado, onde no livre mercado seriam homens independentes e com conhecimentos diversificados.Além do mais o controle estatal da educação promoveu o impedimento à educação ao invés do verdadeiro desenvolvimento do indivíduo.
    Atualmente no Brasil a educação é compulsória, caso as crianças não sejam mandadas para as escolas privadas, elas devem ir para a pública, o que nos leva a pensar que grande parte das crianças da escola pública não queriam estar lá, mas a lei obriga seus pais ameaçando-os de prisão ou de sequestro institucionalizado de seus filhos.
    Além do mais, a educação obrigatória força as crianças com pouca capacidade de raciocínio à escolaridade, porém isso é uma ofensa criminal às suas naturezas, pois elas, em sua maioria, não querem estudar e não conseguem progredir intelectualmente em um sistema no qual é impossível que ela seja atendida e ajudada em sua particularidade.
    Já dizia Isabel Paterson: "Um sistema de educação obrigatória, financiado pelos impostos, é o modelo completo de um estado totalitário."
    O economista Murray N. Rothbard em seu livro “Educação: Livre e Obrigatória” fez a seguinte analogia:  “O que pensaríamos sobre uma proposta do governo, federal ou estadual, de usar o dinheiro dos pagadores de impostos para criar uma rede nacional de jornais públicos e obrigar todo o povo, ou todas as crianças, a lê-los? O que pensaríamos se, além disto, o governo proibisse todos os jornais que não se encaixassem aos “padrões” do que uma comissão do governo acha que as crianças devem ler?”
    É evidente que um proposta dessa seria, por muitos, considerada um horror e um ataque à liberdade de expressão, porém essa é exatamente a ação do governo em relação à instrução formal. Ele regula o que é escrito nos livros, o que deve ser ensinado e como deve ser ensinado, regula quem pode ou não trabalhar como instrutor, e, ainda mais, faz tudo isso com o dinheiro dos “contribuintes”. A questão que está sendo colocada é se a liberdade escolar é tão importante quanto a liberdade de expressão, a educação obrigatória tem que ser vista com maus olhos e ser repudiada ao máximo, uma vez que ela irá moldar toda sociedade da forma que o estado quiser.
  • A Extinção dos Gatos

    Três gatos morreram e fizeram a tristeza de uma família se juntar à tristeza de milhões de pessoas no mundo que passavam pelo mesmo. Os gatos estavam morrendo por uma doença misteriosa, transmitida pelo ar e que aparentemente os matava sem muita dor, os deixando tontos e cambaleantes por alguns poucos minutos, terminando com um súbito e fatal desmaio. Mas a família ainda sentia muita dor mesmo após semanas em que os três se foram.
    Obviamente os cientistas estavam interessados em achar alguma cura ou vacina já que isso também significava milhões em lucros, mas muitos não demonstravam muito otimismo com a velocidade que a doença se espalhava e o tempo necessário para as pesquisas. Enquanto isso, há cada vez mais relatos de coisas sobrenaturais acontecendo. Aqueles mais ligados ao mundo sobrenatural afirmam que os gatos são guardiões do submundo e por isso esses eventos estão acontecendo. Já os mais céticos falam que tudo isso não passa de um monte de desocupados que espalham desinformação para sustentar uma teoria da conspiração.
    Nicolas, que acabou de perder os seus três gatos, era um dos céticos, enquanto os seus pais eram crentes no sobrenatural. Eles moravam há mais de duas gerações em uma fazenda a uns dez quilômetros de estrada de chão da cidade mais próxima. Quando criança, Nicolas brincava nas árvores que seus avós plantaram em suas infâncias e desde cedo aprendeu os trabalhos na roça, além do respeito aos animais. Cada bicho tinha uma função, seja prática ou espiritual, e por isso tinham que ter a constante presença de todos eles. Por mais difícil que fosse, os gatos tinham que ser substituídos assim que partiram deste plano, então os pais de Nicolas fizeram uma viagem até a cidade para adotar uns gatos de sua tia, castrá-los e comprar alguns suprimentos pra casa. Pela primeira vez, Nicolas ficaria alguns dias totalmente sozinho e seria o responsável por manter toda a plantação e animais vivos. Mas é claro que, depois de acompanhar o seu pai todos os dias por mais de 8 anos, não seria uma tarefa muito difícil. A rotina já estava bem definida há anos e só mudava quando um novo equipamento chegava, então sabia que tinha que acordar bem cedo e ficar alternando entre cuidar dos animais e da plantação. Era algo bem cansativo e até chato em alguns pontos, mas necessário se quisesse sobreviver.
    O lado bom é que quando chegava a noite estava tão cansado que só queria esquentar a janta, que não passava das sobras do almoço, e deitar. O cansaço era tanto que sempre se recusava a acender a luz da cozinha para lavar o seu prato, usando a pouca claridade da sala em suas costas como guia. Assim que levantou a cabeça para abrir a torneira, viu uma sombra humana se formar na parede e se aproximar de suas costas até que não houvesse mais luz e a parede estivesse completamente preta. A sua respiração parou momentaneamente, a barriga se contraiu e os olhos vidrados se esforçaram ao máximo para piscar. Assim que piscou, tudo estava como antes e a luz da sala continuava a iluminar fracamente a cozinha. Nesse instante, soltou de uma vez só todo ar que tinha segurado e respirou fundo algumas dezenas de vezes para se acalmar enquanto a água escorria na sua frente. O seu lado racional tentava convencer o emocional de que tudo não passava da obra do cansaço, afinal não estava acostumado a fazer todo o trabalho sozinho. E, mesmo que não fosse cansaço, não tinha outra alternativa a não ser tentar descansar já que o próximo dia estava perto de começar.
    Como sabia que não ia conseguir simplesmente tirar isso da cabeça e dormir, decidiu deitar no sofá, colocar os fones de ouvido e esperar o sono o pegar desprevenido. É estranho como não se percebe a transição entre estar acordado e dormindo. Sem nem lembrar em qual parte da música dormiu ou até mesmo qual era a música, Nicolas foi para o mundo dos sonhos e se distanciou completamente de sua realidade. Pelo menos até abrir os olhos e perceber que não conseguia mexer nem sequer um dedo. O medo que sentia era perceptível em sua breve respiração e que foi ficando mais curta ao perceber pela sua visão periférica que uma sombra vinha se aproximando. Quando ficou de frente pra ele, percebeu pelo corpo que era um homem alto, mas bem franzino e com uma aparência de que tinha sofrido muito. O corpo todo do homem parecia envolto de uma sombra a não ser pelo chapéu que uma vez já tinha sido bege, mas agora estava preto de tão sujo. Aquele homem sombra ficou encarando Nicolas por alguns segundos, parecendo saborear o medo que ele sentia e que transparecia pelo seu suor, lágrimas e respiração. Nicolas tentava falar, gritar e implorar, mas não conseguia abrir seus lábios. Enquanto batalhava contra o seu corpo, o homem sombra avançou pra cima dele e começou a sufocá-lo com uma força incompatível com o corpo que apresentava. A respiração curta de Nicolas tinha ficado inexistente. No desespero da busca pelo ar, piscou o olho, caiu no chão e começou a tossir. Por alguns minutos ficou olhando de relance para todos os lados tentando achar o homem sombra enquanto revezava entre respirar e tossir. O medo ainda estava em seus olhos e só queria fugir, mas os seus pais haviam levado o único carro que tinha na propriedade. Então, ignorando o cansaço, decidiu andar até a propriedade vizinha a uns três quilômetros e pedir o carro deles emprestado.
    Ele queria e tentava se convencer de que tudo tinha uma explicação. Já tinha tido uma vez paralisia do sono e talvez fosse só isso, embora ela não explicasse a marca vermelha de dedos em seu pescoço. Mas mesmo que de algum modo conseguisse uma explicação racional para tudo isso, não iria adiantar. O medo que sentia era muito grande e, por mais que quisesse, não poderia ignorar isso. Então pegou uma lanterna, a identidade e um pouco de dinheiro, trancou a porta e fugiu em plena escuridão.
    A lanterna ia da direita para esquerda e da esquerda para a direita em uma meia lua interminável, indo ocasionalmente para trás para ver se não havia nada lá. A vista das estrelas já começava a acalmá-lo nesse longo caminho, o que era bom. Já havia pensado na desculpa que usaria com os seus vizinhos: uma pessoa invadiu a casa e o agrediu, mas conseguiu fazer com que ele sumisse. Como tinha medo que ele voltasse sozinho ou acompanhado, queria passar a noite na cidade. Não era a verdade, mas também não era uma mentira. Com tudo isso planejado, podia continuar admirando as estrelas e afastando a imagem do homem sombra de seus pensamentos.
    Tinha acabado de direcionar a lanterna para trás, visto que não tinha nada lá e voltado a mirá-la para a frente quando sentiu um enorme impacto em sua perna esquerda que o fez cair e soltar diversos xingamentos. A dor parecia sair de seu joelho e ir ardendo até a sua mente. Quando olhou para o chão, viu uma pedra do tamanho de um melão banhada em sangue. Tentou se levantar, mas a dor não permitia que o seu joelho sustentasse o seu corpo.
    Devia faltar mais uns quinhentos metros até a casa vizinha, então, como não tinha outra escolha, decidiu começar a se arrastar. Logo depois dos primeiros centímetros percorridos, sentiu uma forte puxada em sua perna machucada que levou a uma nova irradiação de dor. Embora tentasse, não conseguia gritar e, por mais que se esforçasse, só soltava uns grunhidos baixos. Quando começava a se acostumar com a dor, olhou para a frente e viu o chapéu na sombra de um homem. Não conseguiu encarar por muito tempo, pois, cada vez que a dor ficava um pouco mais tolerável, ele puxava com força para dar um tranco na perna e irradiar mais dor para o corpo. Sabia que estava sendo levado de volta para a sua casa. Tentava piscar e se debater para escapar, mas o homem sombra era muito forte.
    A família de Nicolas chegou dois dias depois dessa noite com seis filhotes de gatos, bastante comida e fertilizante. A mancha de sangue na estrada já se confundia com o vermelho do barro e nem foi percebido pelos seus pais. E mesmo que percebessem, provavelmente acreditariam que algum animal tinha caçado e arrastado a carcaça de sua presa. Não estariam certos, mas também não estariam errados. Chegando em sua casa, viram o corpo de Nicolas empalado com o suporte de uma antena e deixado com os braços abertos como se fosse um espantalho bem na escada que dava acesso a porta principal da casa.
    A polícia investigou o caso que teve uma repercussão nacional, mas nunca chegaram a algum suspeito. Segundo os legistas, Nicolas foi empalado vivo, morrendo lentamente de hemorragia enquanto a antena ia atravessando os seus órgãos até chegar ao seu estômago, o fazendo engasgar lentamente com o seu próprio sangue. Mesmo demorando horas para morrer, pela distância entre as propriedades ninguém deve ter conseguido ouvir os seus gritos de dor. Já os seus pais nunca souberam o que o atormentou já que se mudaram antes dos seus novos gatos morrerem pela doença.
  • A fronteira das mentalidades

    Quando os limiares geográficas e mentais foram rompidos, o Novo Mundo se apresentou à Europa Ocidental. Diversos relatos de viagem e de navegação foram publicados na Europa. Clérigos, navegantes, soldados e naturalistas representavam esse mundo desconhecido, quase místico.
                A filósofa Marilena Chauí traça a genealogia dessa representação mistificada e edênica do que viria a se tornar o continente americano. Monges irlandeses já no século XIV tratavam de uma fantasiosa ilha à Ocidente chamada Hy Brazil, de acordo Chauí (2014, p. 114): “os escritos medievais consagraram um mito poderoso, as chamadas Ilhas Afortunadas ou Ilhas Bem-Aventuradas, lugar abençoado (...). Os fenícios as designaram com o nome Braaz, e os monges irlandeses as chamaram de Hy Brazil.”.
              No ano de 1492, um misterioso genovês, sob comando de uma esquadra castelhana, chegou as Antilhas. De acordo o autor do livro O Mediterrâneo, Fernand Braudel, criava-se aí um novo sistema-mundo, marco da Era Moderna (BURKE, 1992; BOURDÉ & MARTIN, 1983). A partir desse evento, os relatos de viagem ganham uma enorme proporção.
              Se antes a fantasia imperava cegamente, agora os europeus presenciavam em pessoa aquele Novo Mundo, os seus povos, sociedades e cultura. O choque não é apenas intenso, mas inevitável. A visão dos ibéricos estava carregada com as imagens mitológicas greco-romanas.
              O antropólogo Serge Gruzinski analisa as diferentes visões de mundo entre os povos nativos e ibéricos. Organização social, agricultura, línguas, e vestimentas são apenas alguns dos latentes traços de diferenciação entre esses dois povos (GRUZINSKI, 1994).
              Os padres jesuítas no Brasil e os conquistadores espanhóis produziram os mais ricos relatos sobre as populações nativas. E essas imagens criaram mitos legitimadores da colonização. Os indígenas até na historiografia do século XX eram vistos como indolentes, selvagens e sorumbáticos, vide os livros de Varnhagen (s/d) ou Abreu (1998). O índio sempre foi concebido como o indivíduo a ser civilizado.
              A antropofagia foi um choque na Europa. Nem mesmo o Indianismo de obras como Moema e Iracema vão desfazer essa imagem do índio como um ser selvagem, sem fé, sem lei nem rei. Isso fomentou as práticas tutelares do Estado brasileiro em relação a esses povos.
              Talvez a resposta que a historiografia ainda precisa fornecer é como os povos nativos viam os colonizadores. As fontes, embora existam, são de difícil acesso ou carecem de uma metodologia mais apropriada. O que sabemos é que esse encontro entre povos distintos provocou um choque e mudanças profundas, assim se corroboram as revoltas e guerrilhas, a mestiçagem e o sincretismo religioso.


    REFERÊNCIAS

    ABREU, Capistrano. Antecedentes indígenas; Fatores exóticos; Os descobridores. In: Capítulos de História Colonial: 1500-1800. Brasília: Conselho Editorial do Senado, 1998. p. 13-40.

    BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. A escola dos Annales. In: ______. As escolas históricas. Portugal: Publicações Europa América, 1983. p. 119-135.

    BURKE, Peter. A Era Braudel. In: ______. A Escola dos Annales 1929-1989: A revolução francesa da historiografia. 2. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1992. p. 35-61.

    CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritário. In: ROCHA, André (org.). Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014.

    GRUZINSKI, Serge. La guerra de las imágenes. De Cristóbal Colón a "Blade Runner" (1492-2019). México: Fondo de Cultura Económica, 1994.

    VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brazil: antes da sua separação e independência de Portugal. Tomo Primeiro, Rio de Janeiro: Em Casa de E. & H. Laemmert, s/d, Seção XIII e XIV. p. 203-229.

  • A galhofa climática

                  Primeiramente permita-me afirmar de forma categórica que acredito firmemente não só na existência e importância das mudanças climáticas como também no entendimento que a causa preponderante é a ação humana. Dito isto, vamos à parte da galhofa.
                  De tempos em tempos, nossos líderes se reúnem em cúpulas mundiais para debater soluções, desenhar documentos e apontar soluções para questões cada vez mais palpáveis. Em similar frequência, o populacho (no qual me incluo, obviamente) esbraveja e tem chiliquitos thunberguianos afirmando que nossos líderes falam demais e fazem pouco. É uma solução deliciosa (esta de apontar os outros como sendo os causadores do problema e fazer chacota do fato de são ineficientes na construção de uma solução), que pode ser adotada na conveniência do seu sofá: sua consciência fica duplamente limpa: você está cobrando as autoridades (portanto abundando cidadania) e ainda se desvencilha do problema. É lindo, não fosse pateticamente falso.
                  Não é à toa que os representantes dos maiores estados organizados não conseguem sequer chegar a um consenso sobre as datas das próximas reuniões: possivelmente eles já se deram conta de que eles não conseguem resolver o problema e a única consequência prática do seu ritual é uma tentativa questionável de criar a impressão que a situação tem remédio. De fato, do ponto de vista científico, químico, meteorológico e estatístico, o problema até que tem solução (se estamos desenvolvendo tecnologia para terraformar Marte, acho que terraformar a Terra não deve ser assim tão complicado). A vantagem de Marte é que lá não tem terráqueos.
                  Claro que o seu presidente pode ir ao fórum e comprometer-se que o país irá cortar as emissões em 28.4% nos próximos 73 meses mas na verdade seria necessário combinar com o goleiro antes, ou pelo menos pensar de onde vem estas emissões, que é o responsável por elas e qual o grau de influência que o governo tem com o comportamento destes agentes. Embora haja certa discordância, aqui não é Venezuela nem a China (sob o aspecto ditatorial do governo, especificamente), portanto se combustíveis fósseis são uma das causas do problema, fechar as refinarias não é uma solução viável. Os agentes (nada ocultos) envolvidos neste processo são facilmente identificáveis: as empresas e os consumidores. Eles são os causadores e tem o potencial de serem a solução. O governo precisa subornar metade da classe política para conseguir aprovar um aumento na idade de aposentadoria; seu poder de barganha e influência é limitado e nosso esquema de financiamento de campanha define a direção da seta do dinheiro e da influência. Estes encontros deveriam ser presididos pelas empresas de energia, de agricultura, de transporte e construção, não pela burocracia estatal. O problema não é só a inação; o problema é que as cadeiras estão sendo ocupadas e impedindo que as reais soluções sejam debatidas, avaliadas, fundeadas e experimentadas.
                  O grande culpado, entretanto, não aparece na TV: com certeza não é o Príncipe Charles que colocou paineis solares nas suas casas de campo e só usa carros elétricos (como se eles não fossem alimentados com energia proveniente de alguma fonte, eventualmente fóssil). O responsável definitivo nesta cadeia de culpa é você! Sim, falei! Através do consumo (alimentos, produtos, energia) e transporte, o coletivo de consumidores está dilapidando o planeta e não adianta fazer cara feia para as empresas que estão criando os serviços e produtos com os quais nós estamos acabando com o planeta. É como falar que o tráfico de drogas é um problema mas o meu baseado não tem relação com isto pois afinal eu estudo na USP. Somos parte integrante, fundamental e majoritária do problema e enquanto não admitirmos isto, seguiremos vendo este desfile de penteados, trajes de gala e discursos inflamados e ocos.
                  Infelizmente, a situação não é bem assim (ou somente assim): identificar a causa fundamental do problema é até uma coisa boa, fôssemos nós capazes de tomar uma decisão coletiva no sentido de remediar tantos anos de descaso mas a verdade é que não somos capazes de trabalhar em conjunto nesta escala pois, no fundo, não aceitamos consumir menos, usar menos o carro e mais a bicicleta, usar menos energia, ter menos roupas, menos bugigangas, gerar menos lixo. Não queremos fazer isto e a prova não sou somente eu; é você, seu vizinho, seu amigo, seu chefe, o açougueiro, o lixeiro, o ascensorista, enfim, todos aqueles que olham o lixo no chão, xingam mas o deixam lá para entupir o bueiro na próxima chuva. Esta é a parte frustrante: estamos fazendo de conta que estamos procurando uma solução nos nossos representantes mas eles não tem nem autoridade nem capacidade (e talvez nem interesse) de fazer isto mas esta é a nossa escolha para nos evadir da trágica responsabilidade, da conta com juros que está chegando a nossa porta e que fazemos crer que seja de outros. Há uma corrida acontecendo: enquanto o planeta fica mais bagunçado, as tempestades mais intensas, as secas mais severas e a água dos oceanos mais alta, a imagem da inanição e falta de energia para boa parte da população global começa a ficar mais nítida e esta clareza pode se fazer acompanhar de responsabilidade e a responsabilidade pode ensejar ações concretas que iniciem um processo de reversão. Não parece mas sou um otimista: se aprendemos a mascar chicletes e fazer bola de máscara, acho que vamos conseguir encarar esta. Que pena que seremos tão poucos.
  • A gênese do caos

    Um livro de ficção científica me atraí por diversos motivos, dentre eles: os personagens singulares, a trama que me provoca um sentimento de encantamento e a verossimilhança com a nossa realidade. O livro Manjedoura tem tudo isso, sendo uma grata surpresa para um primeiro título publicado pelo autor Sandro J. A. Saint, jovem autor araçaense. Seu romance é um prato cheio para amantes da ficção científica.
                Um tipo de obra que sempre estará em voga é a distopia. Essa narrativa que vislumbra um mundo onde a sociedade está colapsada devido a fatores socioeconômicos, políticos e/ou culturais, lembra o quanto a humanidade é sobrecarregada de contradições. Com certa dose de pessimismo e fatalismo, a modernidade e o progresso se tornam fatores de diluição da sociedade. O livro se torna um alerta, ou seria uma profecia?
                Manjedoura como um primeiro livro de Sandro J. A. Saint apresenta uma narrativa coerente e original, pois consegue sintetizar muito bem os elementos narrativos desse tipo de história. Unindo pós-apocalipse e cyberpunk numa trama distópica, o romance nos traz uma realidade árida, pouco convidativa. Um ambiente carnívoro com relações sociais predatórias. Os protagonistas revelam bem os sentimentos em relação a esse mundo intoxicado de poluição e violência. Como não poderia faltar num livro como este, a temporalidade é desconhecida. Não sabemos se estamos em um futuro ou em uma realidade paralela.
                O livro começa com uma inserção objetiva nesse mundo, um modo de acautelar o leitor e fazê-lo entender que a narrativa terá um cenário diferenciado. É nesse mesmo prólogo que ficamos sabendo que a população mundial cresceu de tal forma que as guerras e o baixo número de recursos naturais diminuíram o número populacional a menos de 30% do total. As elites, sob as suas variadas vertentes, políticos, militares, cientistas e artistas, se unem e formam um único órgão chamado de Cúpula. Seu objetivo é conduzir os resquícios da humanidade.
                Para resolver o problema da superpopulação, eles criam o Projeto Manjedoura, humanos não nascem, são produzidos em escala industrial em laboratórios, chipados e depois dispersados pela cidadela. Mesmo nesse cenário repressor, há revoltas. Grupos rebeldes se organizam e formam os White Mouses, indo viver na clandestinidade fora da Cúpula, ondes serão perseguidos pelas sentinelas.
                Os protagonistas que conduzem a trama são Hanss Nagaf, o emocionante mensageiro-chefe; Jason Cry, o pupilo falastrão de Hanss; e por fim, Handra, a belicosa guerreira do frio. A personalidade desses personagens é única. Com certeza você vai se identificar com todos ou um deles. Mesmo outros personagens que aparecem na trama têm sua personalidade bem definida e atuante na história. Nenhum personagem aqui foi desperdiçado e agrega a narrativa.
                Hanss é um personagem que soa familiar, conduz a trama com bom humor e se mostra um personagem sentimental, a todo momento tenta empreender uma visão mais espiritualizada da vida. Handra é o tipo de protagonista feminista que falta a muitas obras, forte, sem com isso perder a feminilidade. Jason representa o olhar do leitor, sua impulsividade judiciosa e olhar cético vão trazer os conflitos necessários ao trio, bem como divertir o leitor, se tornando um alívio cômico numa sociedade tão agressiva.
                Minha recomendação é: leia esse livro! O livro está com uma edição impecável feita pela Editora Lexia, custa apenas R$ 21,90 mais o frete. Tem orelhas, miolo em papel offset, capa e contracapa feita pelo próprio autor, reforçando o caráter autoral da obra. Se o leitor busca uma ficção científica distópica com pitadas de fim do mundo, Manjedoura é a pedida.
  • A história até a História

    O filósofo grego Aristóteles foi enfático em dizer que a poesia era mais relevante que a História, pois aquela é mais universal que essa. De modo concreto, a disciplina a que o pensador está falando não é a mesma da Era Contemporânea. Podemos remontar a sua cientifização ao século XIX, quando diversas correntes e teorias surgem. Se o século XVIII foi o “Século da Filosofia”, o seguinte será o “Século da História”.
                Quando Leopold von Ranke lançou suas teses sobre a escrita da História, ele tentava evadir de uma história filosófica, ou seja, uma história sem um método corporificado (REIS, 1996). Embora não tenha ido muito longe da esfera filosófica, Ranke colocou a História não apenas como narração de eventos, mas como método e processo ideográfico, buscando o singular no tempo e espaço. O objetivismo entra em cena.
                Isso implicava em grandes problemas, seria possível o historiador estar isento de sua subjetividade? O método historiográfico-erudito é infalível? O método rankeano é um axioma. As fontes, embora estejam bem definidas em seu papel, são limitadas. Ranke se propõe a historiografar a política, a história dos grandes homens. A guerra, a diplomacia e os registros oficiais são os cânones dessa história.
                O hegelianismo e o positivismo são compreensões metafísicas da realidade histórica. Ambas atribuem uma lei universalizante e determinada dos eventos. Nem mesmo o materialismo histórico foi capaz de romper com essa cadeia. Pois mesmo no socialismo científico, a sociedade segue uma marcha etapista. O homem é determinado pelas suas condições materiais, embora faça a sua história, está é condicionada pela sua época.
                No final do século XIX, quando a questão do nacionalismo ganha forma, a História adquire um papel novo: legitimar o Estado e criar um passado em comum (BOURDÈ & MARTIN, 1983). A França é a que mais se apropria desse ideal. A Escola Metódica surge na esteira de Ranke. A política ganha ainda mais destaque. Os eventos vão formando um povo, e o povo uma nação.
                No século seguinte, nos “frementos anos 20”, dois historiadores de uma universidade periférica estabelecem uma crítica aos metódicos como Ch. Seignobos e Ch. Langlois. Para Marc Bloch e Lucien Febvre, apenas a narração ipsi literis dos documentos oficiais não seriam suficientes para compreender a história humana. Era necessário um esforço epistemológico maior nesse sentido.
                A História desce um degrau nas estruturas. Passa da política para as questões socioeconômicas e das mentalidades. As fontes se alargam, bem como seu método de crítica interna e externa. A revista Les Annales surge (BURKE, 1992). Uma das maiores contribuições dessa escola historiográfica foi a interdisciplinaridade com outras ciências e campos do saber como a linguística, a geologia, a antropologia, a sociologia e outras.
                Embora não haja consenso entre os historiadores da Historiografia, podemos dividir a história dos Annales em primeira geração, a de Bloch & Febvre; a segunda geração, a de Braudel; e por fim, a terceira geração, também conhecida como Nova História, que se ampara nos aspectos da cultura para a sua escrita (PESAVENTO, 2012). Isso não significa que não houvesse outras tendências demarcando território, como o neomarxismo inglês de E. P. Thompson. A ciência adquiriu novos métodos, novos temas e campos de atuação profissional.
                Para além das críticas, podemos destacar os seguintes avanços: a História do Tempo Presente, o ressurgimento da narrativa, a História Oral, todo registro humano no tempo e no espaço como fonte historiográfica, a percepção do tempo braudeliano, a interdisciplinaridade etc. Com esses recursos o historiador poderá fazer uma história total. Não no sentido de algo definitivo, mas no sentido da mais ampla percepção da historicidade, cobrindo o máximo de elementos possíveis dos eventos e fatos históricos.
    Referências bibliográficas
    BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. As escolas históricas. Portugal: Publicações Europa América, 1983.
    BURKE, Peter. A Escola dos Annales 1929-1989: A revolução francesa da historiografia. 2. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1992.
    PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
    REIS, José Carlos. A História, Entre a Filosofia e a Ciência. São Paulo: Editora Ática, 1996.
    ROCHA, Everardo. O que é mito. Editora Brasiliense, 1996.
    SÁEZ, Oscar Calávia. A variação mítica como reflexão. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, vol. 45, nº 1, p. 07 – 36, 2002.
    VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. São Paulo: Brasiliense, 1984.
  • A História e a polissemia do “moderno”

    A História é uma ciência que se serve de variados conceitos para reconstruir fatos e eventos ou analisar estruturas e instituições. O conceito de “moderno” é um deles. Esse tipo de palavra polissêmica é portador de variadas definições, sem contar as palavras derivadas.
              O que é moderno para o aluno não é o mesmo para o professor. O uso cotidiano do termo está atrelado ao novo (KARNAL, 2004). Nesse sentido, toda novidade é moderna. A moda e a arquitetura o usam à exaustão.
              Quando o docente trata do “moderno” é como uma categoria de análise historiográfica. Como exemplo, podemos citar “Estado moderno” ou o “homem moderno”. Esse estágio é algo posterior ao passado, o que foi separado.
              A Era Moderna é tratada em sala de aula como um período transitório da história, numa linha diacrônica e homogênea. Como fazer o aluno entender que o moderno pode ser encontrado no passado? Cada época constrói a sua definição de “moderno”.
              O moderno na Grécia Antiga era a filosofia, ou seja, interpretar o mundo através da razão (VEYNE,1984). Longe de ser anacronismo, esse fato nos revela que o “moderno” é também choque de gerações.
              Em se tratando das palavras correlatas como modernidade, pós-modernidade e modernismo, a carga de signos é ainda maior. Todas essas palavras nascem na Europa Moderna, são novas concepções da realidade (MENDONÇA, 1994). Esses conceitos em geral nascem da filosofia e das Ciências Humanas.
              A modernidade é como que um efeito do “moderno”, é um paradigma, uma espécie de modelo. Para filósofos do Iluminismo como Immanuel Kant, aquela época preenchia as mentalidades com um novo olhar para o real. O criticismo kantiano, somado ao hegelianismo, provocará profundas mudanças na ciência e na política através da laicização do Estado.
              A pós-modernidade de filósofos como Michel Foucault, vão mobilizar a realidade para o nível do discurso. A verdade e a realidade perdem em objetividade e se tornam uma espécie de consenso epistemológico de uma época.
              O modernismo, o vanguardismo artístico importado da Europa, tão bem apropriado aqui no Brasil, é uma nova concepção estética. A crítica ao academicismo e a burguesia industrial são o mote dessas correntes artísticas.
              Trabalhar com esses conceitos em sala de aula podem parecer complexos ou repetitivos. Porém, o uso de recursos pedagógicos como as artes e a inclusão de novos conteúdos podem agregar à didática (op. cit., 2004, p. 131 et seq.). Revisitar os clássicos e estar atualizado com a nova produção historiográfica pode mobilizar a criatividade do professor.

    REFERÊNCIAS
    KARNAL, Leandro. A História Moderna e a sala de aula. In: _____ (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2004. p. 127-142.
    VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. São Paulo: Brasiliense, 1984.
    MENDONÇA, Nadir Domingues de. O uso dos conceitos (uma questão de interdisciplinaridade). Petrópolis: Vozes, 1994. p. 118-147.
  • A natureza do homem

    Os principais sinais de vida surgem em sistemas de alta entropia. Assim, não é distinto para o homem, em seu sucinto desejo de amar ligado à sua vontade ambígua de destruição, buscar incessantemente a felicidade em meio ao caos. 
  • A Riqueza Salva

    No começo a tecnologia era vista com entusiasmo. O futuro era visto de maneira brilhante com diversos inventos fantásticos, muitos deles estranhamente ligados ao atributo de voar. Parecia algo surreal e mágico substituir as rodas por nada, podendo admirar de maneira simples toda a beleza que um pássaro vê cotidianamente. Mas o pessimismo foi lentamente tomando conta das mentes e o futuro passou a aparecer de maneira sombria.
    Alguns apostavam no aquecimento global, outros em um vírus mortal que é liberado sem querer de algum laboratório, e ainda tinha aqueles que acreditavam que as máquinas iriam adquirir inteligência e dominar o mundo. O grande problema é que tudo isso desconsidera o fator humano. Há muito já se discutia se era a sociedade a responsável pela maldade humana ou se nós já nascemos assim. A resposta, embora importante, só revela que somos maus. E, sendo maus, nós temos que ser o grande protagonista do nosso fim, pois, se não for assim, provavelmente não é o fim.
    Esse pessimismo mostra que, tanto para o pobre como para o rico, o mundo iria acabar num futuro próximo. Talvez não o mundo, mas com toda a certeza pelo menos a existência da raça humana. O grande problema é que os pobres não têm muito poder de ação individualmente e juntar todos a nível mundial para ter alguma mudança é um trabalho muito árduo, difícil e alguns até diriam que impossível. Mas os ricos estão em um número bem menor e o dinheiro deles carrega um poder quase sobrenatural.
    Tudo, como sempre, começa com o medo. Basta uma pandemia para que a venda de bunkers dispare como se fosse um sinal do final dos tempos. Os bilionários acabam desabafando com os seus amigos, que também são bilionários, sobre esse pessimismo e percebem que é um sentimento comum. E, talvez durante uma conversa no balcão de um bar enquanto bebem um whiskey mais caro do que um carro popular, acabe surgindo ideias de como sobreviver a tudo isso sem perder a qualidade de vida. No princípio, as ideias pareciam absurdas, mas vão se complementando. No fim, fica um silêncio constrangedor. Os pensamentos foram longe demais, reais demais e sedutores demais. Afinal, por que não? É só a morte, a velha companheira que está direta ou indiretamente presente em nossas fortunas e em nosso conforto. Por que não pode participar da nossa riqueza e conforto eternos? E não é difícil conseguir gente o suficiente. Basta convencer as 26 pessoas mais ricas do mundo que já terá poder o bastante e os outros terão que vir se quiserem sobreviver. Bilhões de dólares podem se livrar facilmente de bilhões de pessoas.
    A ideia era bem simples na realidade. Bastava continuar desenvolvendo a tecnologia como se nada de diferente estivesse acontecendo, mas lentamente ir acelerando esse ritmo. O foco principal era desenvolver a inteligência artificial para que ela conseguisse chegar ao ponto de criar as suas próprias invenções, além de máquinas que conseguissem substituir o trabalhador humano nas fábricas. Mas esse último era mais simples já que estava em curso há muito mais tempo. Depois disso, o segundo passo poderia ser posto em prática: a aniquilação de todos que não faziam parte do plano. Pode parecer algo complicado à primeira vista, mas só é necessário o caos inicial. É possível fazer isso de diferentes maneiras. Dá para envenenar lotes de sal e açúcar ou até mesmo o sistema de abastecimento de água de um país, sendo escolhido um veneno de ação lenta para que os sintomas fossem confundidos com os de alguma doença. Também dá para simular desastres naturais, como um enorme tsunami, ou diversos ataques terroristas atribuídos a grupos radicais de fachada. Por fim, mas ainda bem longe de terminar uma enorme lista, é possível criar eventos sobrenaturais como boa parte de uma cidade ter morrido eletrocutada durante uma enorme e súbita tempestade formada por uma bomba de pulso elétrico.
    Assim que o caos se instala, gerando a maior (e última) crise do capitalismo, o fim começa a caminhar por si só. As pessoas não veem o inimigo invisível e talvez não ligassem mesmo se o vissem. O mais importante para elas é não passar fome enquanto sonham em voltar ao estilo de vida antigo. Por isso se separam em grupos e começam a brigar entre si pelo mínimo de recursos. Eles mesmos começam a se exterminar para tentar sobreviver. E essa luta se torna ainda mais difícil porque a maioria das pessoas não sabe técnicas de sobrevivência, como produzir alimentos e nem como funcionam as coisas eletrônicas que usamos cotidianamente. Então só resta lutar pelas coisas que já foram fabricadas e, se tiverem sorte, encontrar algum grupo que detenha esses conhecimentos.
    Para os ricos essa fase também é um pouco tensa, pois é crucial. Eles têm que se manter escondidos até a poeira abaixar e proteger os meios de produção, pelo menos o suficiente para que possam reconstruir rapidamente as suas casas e fábricas. Mas essa parte não gerava tanta preocupação já que tinham uma avançada tecnologia e não precisavam chegar ao mesmo ritmo produtivo de antigamente. Cada um era responsável pelo seu esconderijo e os principais eram debaixo da terra, em plataformas marítimas ou até mesmo debaixo do mar em submarinos de luxo. Assim que essa fase acabasse, seria possível deixar que a natureza se recuperasse sozinha devido as reduções drásticas com a super população e do problema da poluição. Na realidade, o próprio fim do capitalismo levaria consigo a maior parte dos problemas. Como os próprios bilionários diziam com suas vozes pomposas e orgulhosas: “Esse é um amargo remédio, mas é a única esperança para a sobrevivência da humanidade e do planeta”.
    No fim dessa fase, a própria inteligência artificial começaria a planificar a economia para decidir o que seria produzido, o local de produção, a quantidade e para quem ia primeiro com base na logística e em qual plano seria o mais rápido para recuperar a luxuosa vida de todos. É claro que ainda havia desafios, afinal alguns sobreviventes, que os ricos apelidavam de baratas, ainda andavam e sobreviviam nas ruínas das cidades. Por sempre andarem escondidos, não havia um censo de quantos ainda resistiam ao domínio mundial dos ricos. Ao todo 15 milhões de milionários foram chamados para participar do plano criado pelos bilionários e logicamente todos aceitaram. Como podiam abrigar a sua família e alguns amigos, o número de sobreviventes ricos deveria rondar os 40 milhões, mas muitos não aguentaram carregar a culpa e acabaram se suicidando. Já outros tentaram sair dos seus esconderijos muito cedo para reconstruir a sua vida normal e acabaram assassinados. E ainda teve aqueles que não se esconderam muito bem, foram encontrados e mortos por baratas famintas. Ao todo devem ter restado uns 25 milhões de ricos espalhados pelo mundo.
    Um desses ricos era Thomas, um homem que fez sua fortuna no mercado tecnológico após criar uma startup de investimentos. Ironicamente o slogan da empresa era “Sobreviva como um rei, invista com a gente e faça a sua fortuna”, mas ele deve ter sido o único ligado ao aplicativo que continuava vivo. Ele tinha uns 25 anos e 1 filho pequeno no momento em que o plano de extermínio foi posto em prática. Quando sua mansão superprotegida estava pronta, saiu do seu luxuoso bunker com um pouco mais de 65 anos e 5 filhos. Mas se alguém o visse na rua em um dia qualquer provavelmente acharia que ele tinha uns 40 anos. As dicas e tratamentos de beleza que a inteligência artificial oferecia eram valiosos, ajudando os ricos a terem uma vida longa e saudável. Além disso, ela criava um belo conteúdo de entretenimento a partir dos gostos dos moradores, o que evitava a culpa e o estresse, influenciando e muito na aparência deles.
    Já o contrário parecia acontecer com Isaac que tinha somente 30 anos, mas aparentava uns 50. Ele nasceu durante a época do extermínio, então era mais fácil lidar com a realidade já que nunca viveu nada diferente do caos. O estresse e a culpa eram sentimentos cotidianos, sempre estando misturados com a raiva e frustração. Ele era negro e seus músculos eram definidos, mas isso acontecia mais pela desidratação e uma dieta irregular do que por uma rotina dedicada a musculação. A barba e o cabelo eram aparados com uma faca sempre que atingiam comprimento o suficiente para puxar e cortar, os deixando com uma aparência de ninho de pássaro. Os cuidados com os dentes eram precários, mas o suficiente para deixá-los lá. Tanto o cheiro do corpo como o das roupas eram azedos, pois ninguém confiava na água dos rios desde o envenenamento em massa. A preferência era sempre pela água das chuvas e somente em épocas de estiagem era que a água do rio era usada, mas sempre com cautela. Embora não tenha vivido a parte mais bruta do extermínio, sempre ouvia as histórias do pai e seguia os seus ensinamentos como se fossem regras canônicas.
    O seu pai, que se chamava Francisco, morreu quando ele tinha apenas 15 anos, enquanto a sua mãe morreu dando à luz. Quando tudo era normal, ele era o mordomo de Thomas que preferia um humano tomando conta de sua casa do que um robô, além de acreditar que ajudaria o seu filho a ser mais empático ao crescer do lado de humanos. Embora fosse constantemente abusado verbalmente, Francisco não poderia se dar ao luxo de pedir demissão já que não tinha muitos empregos lá fora e a maioria das pessoas trabalhavam como autônomas. Ele achava engraçado como elas formavam quase um mercado fechado: autônomo vendendo para outro autônomo e assim todos vivendo de forma apertada, mas sobrevivendo.
    Era bem diferente de como Isaac vivia e, sempre que ele se lembrava das histórias do pai, ficava com uma sensação de que era um conto de fadas impossível de se tornar realidade. Ele vivia com um grupo de 4 pessoas, todas mais jovens do que ele. Eles moravam entre uma pequena floresta, que antes era um parque, e os escombros de um antigo prédio que ainda tinha parte de alguns andares em pé. O verde já tinha recuperado uma boa parte do cinza da cidade e, como o parque já tinha um grande número de árvores antes, nessa área a recuperação foi mais rápida. Eles dormiam em uma pequena cabana feita de lona com duas valas escavadas ao lado. Isso permitia que a água da chuva fosse captada mesmo quando ninguém estivesse no acampamento. Assim, eles conseguiam fazer trocas com grupos que moravam nos esgotos sempre que ficavam sem conseguir caçar alguma coisa no parque. A troca não era agradável, mas aqueles que moravam nos esgotos sempre tinham uma abundante criação de baratas e uma escassa captação de água. Pronto, a troca perfeita estava feita: um pote de água por um de baratas. No começo é nojento comer elas, mas você vai fritando, as observando e pensando em sua fome. De repente, param de ser tão nojentas e passam a ser desejáveis ao pensar na crocância do exoesqueleto sendo esmagado pelos seus dentes, no gosto salgado se espalhando em uma boca que não sente nada a dias e na satisfação de ter alguma proteína no seu estômago. Mas graças a Michelle, que era a responsável pela montagem das armadilhas no grupo, esse canibalismo nem sempre acontecia. Ela aprendeu tudo que sabia com a sua mãe e tentava passar para a sua irmã mais nova Micaella, mas ela sempre esteve mais interessada nas histórias do mundo do passado que Isaac contava. Já Yuri e Regis eram os responsáveis pela segurança e arrumação do abrigo, sempre pensando em jeitos de afastar outros grupos, além de deixar tudo limpo e funcional. Como era o mais velho, Isaac supervisionava todos e sempre preparava as refeições. Era um grupo bem limitado que foi formado pelos pais de Michelle e Isaac, mas que de alguma maneira inexplicável continuava sobrevivendo.
    Antigamente havia mais membros, chegando a ter 15 pessoas em seu auge. Porém, como o acampamento ficava muito perto da mansão de Thomas, muitos eram capturados e outros fugiam com medo de terem o mesmo destino. A última baixa do grupo foi Juan que, enquanto caçava com uma lança, foi visto por um drone que patrulhava os arredores da mansão. Ele tentou correr, mas, com o lançamento de um projétil menor que uma bola de gude e macio como uma pena, ele caiu no chão imobilizado. Logo depois foi recolhido por um robô que voava a poucos centímetros do chão e que era do tamanho de uma van. Alguns diziam que a pessoa capturada era torturada por informações assim que acordava, já outros diziam que virava fertilizante para a plantação de flores dos ricos.
    Na realidade, ninguém sabia o que acontecia dentro da mansão e nem como ela era por causa dos enormes muros que separavam as duas realidades. Era até amedrontador olhar para ele toda noite antes de dormir, pois, mesmo em meio a tanta escuridão, ele ainda se destacava como se fosse um corpo vivo que se aproximaria de você durante o seu sono e te mataria enquanto estivesse indefeso. Já durante o dia, ele perdia um pouco dessa magia. Embora só tenha visto a barragem de uma hidroelétrica em um antigo e acabado livro de geografia, Isaac imaginava que deveria ser muito parecida com esse muro, mas só que ao invés de ter comportas para liberar a água, tinha pequenos buracos por onde saiam drones de vigia e alguns outros robôs. Mesmo de longe dava para perceber a vegetação subindo pelo muro e um musgo verde se formando na base enquanto lutava contra o preto da sujeira. De resto, parecia ser originalmente cinza escuro e totalmente liso, sem nenhuma imperfeição à vista e sem nenhuma chance de ser escalado, pelo menos não antes de ser visto pelos gélidos vigias.
    Isaac pensava muito nesse muro e se lembrava de uma história que o seu pai lhe contou, mas que nunca compartilhou com mais ninguém. Segundo ele, era uma história perigosa demais para ser divulgada e que poderia comprometer a vida de muitas pessoas. Talvez até mesmo se tornando a nova lenda de El Dorado. Era sobre um dia de trabalho comum, bem cansativo como sempre, e ele preparava um chá para levar até a sala de reuniões de Thomas. Logo depois de bater na porta e entrar, ele viu uns engenheiros apresentando um projeto de uma bela mansão com grandiosos muros. Na hora ele achou que o senhor Thomas ia reformar ou se mudar para um outro terreno, então não se importou muito. Mas, graças a sua memória fotográfica, viu os mesmos muros se erguerem no final da fase bruta do extermínio. Isso não seria de grande ajuda se ele não tivesse percebido que a mansão do projeto era exatamente igual e no mesmo lugar que a mansão onde trabalhava. Portanto, deveria ser a mesma ou pelo menos ter a mesma base e, se for assim, provavelmente ainda teria o mesmo túnel de fuga entre o corredor do primeiro andar e o quintal. Ele tinha sido criado na época da 2º Guerra Mundial para ser usado se algum exército inimigo invadisse. Depois foi reformado ao longo dos anos para o caso de haver um golpe comunista. No fim, só foi usado por gerações e mais gerações de adolescentes para fugir de casa, mas mesmo assim ainda deveria estar lá. Isaac se lembrava de um desenho que o seu pai fez para ilustrar o que estava contando e onde mais ou menos deveria ficar cada coisa hoje em dia. E, logo quando terminou a história, pediu para que ele só tentasse usar essas informações no momento em que soubesse que estava sem saída, pois as chances de morte eram muito maiores que as de sucesso. Ele falava que era como apostar na loteria, mas Isaac nunca entendeu muito bem essa expressão.
    Ele guardou esse segredo durante anos, tentando descobrir quando era a hora certa já que havia só uma tentativa antes do boato se espalhar ou se perder para sempre. Guardou até que Micaella foi capturada enquanto verificava se as armadilhas tinham pego algum animal. A sua irmã estava longe e não pôde fazer nada. Michelle ficou chorando durante uns dois dias seguidos, se culpando e imaginando pelo o que a sua irmãzinha estava sofrendo. Via ela em todos os cenários que diziam ser o destino dos capturados, mesmo sabendo que a maioria eram apenas histórias para assustar os mais jovens. Mas talvez alguma fosse verdadeira, não é? Alguma tinha que ser a verdadeira. Talvez não criassem as pessoas como gado para o abate e nem lutavam até a morte entre si para entreter os ricos, mas com toda a certeza morriam. Esse era o final de todas as histórias.
    Nesse momento, Isaac teve que admitir pela primeira vez que estava sem saída. Na realidade, há muito tempo não tinha nem sequer um caminho para o qual poderia seguir. Ver o seu grupo definhar ao longo dos anos e estando mais perto da extinção a cada dia doía como uma ponta de lança presa em sua carne, então Isaac teve que contar a história para o grupo. A decisão não seria dele, mas havia somente duas opções: eles podiam ir para o mais longe possível do muro e esquecer tudo ou podiam ficar, tentar invadir e torcer para não morrer. Houve um pouco de revolta por ter contado isso só agora, mas ele sabia que o tempo faria com que todos entendessem o porquê de ele ter escondido. Mas, como estavam cansados da realidade e do terrível cotidiano, decidiram lutar ao invés de fugir e assim começaram a elaborar o plano para a invasão.
    No dia seguinte, tudo que foi planejado já começou a ser colocado em prática. Eles entraram no esgoto logo após o parque e seguiram por ele até ficarem a mais ou menos uma quadra de distância do muro. Eles sabiam que entrando depois do parque não iam se deparar com nenhuma outra pessoa porque ninguém era tão louco de chegar tão perto daquela muralha amaldiçoada. O cheiro não era o pior do mundo já que não recebia esgoto há muito tempo, mas mesmo assim a sensação de ser algo sujo e nojento ainda prevalecia. Para organizar o trabalho, eles se dividiram em duplas que iam trabalhar por 12 horas seguidas. Isaac e Michele ficaram com o primeiro turno, o que foi um alívio já que ela era a única pessoa com quem conseguia ficar em silêncio sem se sentir constrangido. Com os outros dois, sempre parecia que algo estava errado e precisava ser preenchido com papo furado. Portanto, essa divisão seria ótima já que as conversas somente atrasariam o imenso trabalho que teriam pela frente.
    Em uma escavação todas as partes são difíceis, mas a mais difícil sempre é a que você está fazendo naquele exato momento. E, nesse caso, o começo era a parte mais difícil. Isaac tinha que calcular exatamente o ângulo em que o túnel tinha que seguir para atingir a passagem subterrânea do quintal. Depois de conferir milhares de vezes o mapa e ouvir diversos “não sei” de Michelle quando perguntava se estava certo, marcou com algumas pedras a direção e ficou feliz em perceber que era onde o concreto do esgoto estava cedendo. Ele trabalhou durante uma hora e conseguiu atingir a parte de terra do túnel. Michelle continuou e conseguiu fazer o comecinho da passagem. E assim eles foram se revezando de 1 em 1 hora para que pudessem descansar um pouco. Eles marcavam o tempo com uma ampulheta improvisada a partir de uma antiga garrafa pet e escavavam com pedaços de metal antigo presos em pedaços de madeira que originalmente seriam utilizados em armadilhas. Não eram as melhores ferramentas e quebravam facilmente, chegando inclusive a fazer alguns cortes quando a parte de ferro soltava com um golpe forte, mas era o melhor que podiam fazer.
    Quando acabou o seu turno e pôde voltar para o acampamento para descansar, só queria ficar deitado na terra amaciada pela grama e olhar para o céu enquanto ainda tinha a chance. Logo ele iria cair no sono, acordar e voltar para a escuridão. Ele tinha medo de voltar para lá. Não um medo paralisante, mas um que embrulha o estômago e te deixa trêmulo. O máximo de luz que eles tinham era um pouco de gordura que eles deixavam queimar no meio do caminho. O cheiro de animais em decomposição predominava, se sobrepondo ao cheiro de terra úmida. E, por estar fazendo bastante esforço físico, era obrigado a respirar mais vezes, sentir esse cheiro pútrido invadir as suas narinas e dominar a sua mente. Mas o que o deixava mais irritado era saber que ia demorar e que provavelmente já seria tarde demais para encontrar Micaella viva. E a cada dia que passava, a demora só irritava ainda mais. O problema não era mais a intensidade do trabalho, mas a longa distância que estava se formando. Os turnos tiveram que passar de 1 hora por pessoa para 3 horas porque simplesmente demorava muito para se rastejar até o fim do túnel. As discussões aumentaram e a maioria tinha Isaac como alvo, indo desde o quanto cada grupo estava escavando até questionamentos em relação a direção em que estavam seguindo. Mas todos que discutiam não acreditavam realmente no que falavam, era só uma forma de se livrarem de toda a raiva e frustração que acumulavam. Eles precisavam descontar em alguém porque também tinham medo de ter tomado a decisão errada. Tinham medo de ter escolhido a morte e literalmente estarem cavando o seu próprio túmulo.
    Depois de 1 semana e meia trabalhando 24 horas por dia, Isaac fincou a sua pá na terra e ela quebrou ao se chocar com o concreto. Ele fechou os seus olhos enquanto a sua pupila olhava para cima, respirou fundo e sentiu uma lágrima caindo do seu olho direito. Finalmente tudo estava próximo de acabar, seja de uma maneira boa ou ruim, mas acabar. Os próximos passos já estavam traçados e prontos para serem postos em prática no pôr do sol, logo quando os pássaros começam a cantar. Enquanto Isaac quebrava o concreto e invadia a mansão, o resto do grupo iria se separar em volta do muro e começaria a queimar uma série de bonecos de palha para distrair uma parte dos robôs responsáveis pela segurança. Logo depois disso, os três iriam se reagrupar dentro do parque e esperar o sinal de Isaac. Seria algo simples, talvez até invisível para alguém com olhar desatento. Ele faria uma fogueira dentro dos muros e pela primeira vez todos que estavam lá fora veriam fumaça saindo da fortaleza. A lenha seria os corpos dos ricos que moravam lá. Talvez possa parecer radical, mas o único jeito de uma barata não morrer é quando o exterminador tem medo dela. Ele tinha certeza que essa história se espalharia e faria com que todos os ricos temessem as baratas novamente.
    Logo após o primeiro pássaro piar e chamar todos os outros para o céu numa revoada que passa dançando pelas nuvens, as faíscas começam a surgir em bonecos de palha e os drones se juntam aos pássaros. O som surdo de uma haste de metal sendo golpeada rápida e sucessivamente por uma pedra encoberta de panos ecoa baixinho pelos esgotos. O suor descendo pelo rosto de Isaac como se ele tivesse acabado de sair de uma chuva não negava o esforço que ele fazia na luta contra o concreto. No começo, o seu adversário resistia em ser perfurado, sendo desgastado lentamente, mas, quanto mais era danificado, maiores eram as lascas que caiam. Depois de meia hora, já conseguia ver a luz do outro lado e bastou só mais 20 minutos para que conseguisse passar pelo buraco. Enquanto se espremia para alcançar o outro lado, sentia as lascas de concreto arranharem cada centímetro do seu corpo e o sangue quente brotando com ardência em alguns dos cortes. A primeira parte do corpo a sentir o cimento frio do outro lado foram as suas mãos e logo depois os pés, deixando o buraco para trás.
    Antes de prosseguir, Isaac decidiu ficar sentado por uns cinco minutos no chão para descansar e aproveitar o sorriso debochado que se formou em seu rosto após essa primeira conquista. Estava dentro. Não era um túnel grandioso e requintado, mas era do lado de dentro dos muros. Tudo à sua volta era cinza e escuro. A única iluminação eram pequenas luzes de emergência grudadas na parede separadas por uma distância tão grande que não iluminava todo o túnel. Mesmo assim pareciam grandiosas para alguém que viu somente alguns poucos LEDs no decorrer de sua vida. Chegavam a ser tão fascinantes que até o hipnotizavam por alguns segundos. Mas chegou a hora de se levantar e continuar, então tirou uma faca do cinto e começou a andar silenciosamente. Ele saia da luz de uma lâmpada, entrava na escuridão e seguia o caminho até encontrar outra luz mais adiante. Isso se repetiu umas dez vezes até encontrar uma grande porta de ferro na sua frente com um enorme leme grudado nela e que era usado para trancá-la. Ela estava com limo em algumas partes e já dava para ver sinais de ferrugem lutando contra a sujeira. Isaac sabia que seria difícil de girar e puxar a porta, então deixou a faca no chão, respirou fundo umas três vezes e jogou todo o seu peso contra o leme o forçando a girar no sentido anti-horário. Depois de alguns segundos sem se mover nem um milímetro, um clique foi ouvido e a roda começou a girar lentamente. Quando não conseguia mais girar, puxou a porta com toda a sua força até que tivesse espaço o suficiente para passar. Os rangidos soltados por ela o faziam praguejar em sua mente com todos os palavrões que sabia. Não tinha como fazer silêncio nessa parte, então só podia torcer para que ninguém ouvisse.
    O lado de dentro da porta era mais brilhante. Essa foi a primeira coisa que percebeu quando chegou ao outro lado. Logo depois, pegou a faca e passou um pé de cada vez pela porta. O piso era de uma madeira lisa e o ar, que no túnel era frio, estava em uma temperatura perfeita, nem quente e nem frio demais. A sua direita tinha uma escada com uma porta de madeira no topo e a esquerda havia dezenas de barris na horizontal com torneiras fixadas na tampa. E bem na sua frente tinham fotos em preto e branco de pessoas sorrindo. Demorando um pouco para juntar as letras, viu que em cima delas estava escrito “Mural do agradecimento”. A voz da mãe de Michelle surgiu em sua cabeça falando “Os ricos são pessoas estranhas, cada um tem a sua excentricidade.”. Essa foi a resposta dela quando Isaac perguntou porque existiam drones que tentavam machucá-los. E agora ecoava em sua mente. Talvez por isso decidiu se aproximar e olhar quem eram. Foi passando o olho rapidamente em cada uma das fotos. Como não reconhecia ninguém, pensou que poderiam ser os bilionários que participaram do plano ou dos descendentes de Thomas. No momento em que chegou na última foto, já estava preparado para fazer o movimento de voltar e subir as escadas, mas parou. Os seus músculos paralisaram totalmente e o único movimento que aconteceu nos segundos seguintes foi uma lágrima rolando do seu olho esquerdo. A foto era de Micaella. Ela estava mais limpa e com o cabelo arrumado, mas com o mesmo sorriso que dava quando Isaac contava as histórias do passado. Ele reconheceria esse sorriso em qualquer lugar porque normalmente era a única parte do seu dia que valia a pena. Às vezes era o que o fazia ter esperanças.
    A raiva, que já era grande, só aumentou. Ele fechou os punhos com força e limpou a lágrima. Não queria ver mais nada lá embaixo, só acabar com tudo. O mais rápido possível de preferência. Então subiu as escadas, abriu a porta e seus olhos se fecharam com a luz intensa. Aos poucos seus olhos se acostumaram e começou a identificar o local. Era como um corredor largo e decorado com um papel de parede branco com formas amarelas retorcidas, como se estivessem dançando. Havia três quadros bem coloridos, mas sem nenhum desenho em específico. Mas o que mais o fascinou foi o tapete. Ele era bem peludo e, quando colocou os pés nele, foi como se estivesse sendo absorvido pela areia molhada depois de uma onda. Era acolhedor, mesmo estando em terreno hostil.
    Depois de se acostumar, tinha que decidir se iria pela esquerda ou direita. Não tinha nada que indicasse o caminho certo, então foi para a direita. Os seus passos eram lentos. Bem lentos. Um pé de cada vez. Sem se apressar. E assim chegou perto de uma porta que estava em uma completa escuridão. As palmas da sua mão suavam e molhavam o cabo da faca enquanto o medo aumentava. Respirou fundo e deu um passo para a frente. Poucos centímetros antes do seu pé encostar no chão, viu uma sombra surgindo na sua frente. Em um movimento rápido e puramente instintivo, levantou o braço até a altura do queixo e tentou atingir a sombra com um golpe de faca no peito. A sombra foi mais rápida, golpeou com uma das mãos a articulação do braço e com a outra forçou a faca a se voltar contra o corpo de Isaac que a sentiu perfurando o seu estômago. Uma ardência mortífera se espalhou por onde a faca passou e, mesmo quando a soltou, ela continuava pendurada em sua barriga. A única reação que conseguiu ter foi dar alguns passos para trás e se apoiar na parede. Isso fez com que a sombra andasse para a frente e se revelasse. Ela tinha o rosto de alguém morto. De alguém simplesmente impossível. Enquanto começava a engasgar com o seu próprio sangue quente, via o seu pai com um terno preto e com uma aparência bem mais jovem se aproximando. Era ele que o tinha esfaqueado, mas era impossível que estivesse ali. Isaac o viu morrer em seus braços há 15 anos atrás e, mesmo se não tivesse, ele não o mataria, não o seu pai. Os pensamentos de Isaac já não fluíam de forma ordenada quando aquela coisa se aproximou de seu ouvido e falou com uma voz calma e familiar “O Sr. Thomas não gosta de baratas em sua casa, então vou ter que pedir para se retirar.”. Ele torceu a faca logo depois da última palavra e uma pontada de dor se irradiou pelo seu corpo como se tivesse sido atingido por uma forte corrente elétrica. A última reação de Isaac foi encostar no pescoço de seu pai e encarar os seus olhos enquanto a escuridão se aproximava. Não existiam batimentos em seu pai e logo não existiriam nele mesmo. A sua cabeça caiu pesadamente para frente e os seus olhos ficaram abertos, mas não enxergavam nada além da escuridão.
  • Andarilho lírico

    Luz.
    Carreira.
    Mesa suja e cheia. 
    Jurídica justiça sem juz.
     
    Injusta.
    assusta.
    Frusta.
    Reproduz. 
     
    Palavra entre beco.
    Rua sem saída. 
    Idai desprovida.
    Bico seco. 
     
    Boêmio e teco.
    Malandragem. 
    Boteco.
    Abordagem. 
     
    A vida enquadra.
    De toca a ladra. 
    Se emboca.
     
    Desbocada 
    Singela 
    Madrugada.
    Em aquarela.
    Água com churumi.
    Temperada com chimi churry 
    Ilustre término impune. 
    Clima tenso na viela 
     
    Elegante 
    Nada Atlético
    Cético viciante.
    Eclético coisa de patético.
    Ofegante de terno o miliante.
     
    Situação contrária.
    Sem aliado extra.
    Trancado.
    Deitado.
    Calor insuportável.
    Me passa um cigarro
    ( por favor )
  • APROPRIAÇÃO CULTURAL E O MOVIMENTO NEGRO

    O que é apropriação cultural?
    Apropriação cultural é um fenômeno social identificado como a usurpação de elementos culturais de um grupo étnico-racial por parte de um grupo dominante.
    POLÊMICA:
    Há poucos anos atrás surgiu uma polêmica em torno de uma situação inusitada. Uma mulher branca que usava turbante foi interpelada por uma mulher negra que a disse que esta não poderia estar fazendo uso deste adereço por não negra. Para muitos o fato a mulher que usava o turbante não pertencer a raça identificada com a cultural da qual advém tal adereço faz com que essa não tenha o direito de usá-lo, para outros o simples fato desta não entender o significado intrínseco ao objeto lhe tira a legitimidade para isto e para tantos outros isso não passa de uma simples bobagem e um radicalismo dos militantes do movimento negro.
    MAS E BRANCOS PODEM USAR TURBANTE E DREADS?
    Bom, não é bem essa a questão...
    Vamos lá!
    Primeiramente não se deve analisar de um ponto de vista individual esse processo, tão pouco acreditar que este tipo de ação intempestiva é algo defendido indiscutivelmente pelo movimento negro.
    A apropriação cultural deve ser vista da ótica estrutural, pois é assim que ela atua. Quando dreadlocks são vistos de maneira pejorativa em negros e vistos de maneira positiva em brancos temos um exemplo de apropriação cultural, isso reflete individualmente, porém só pode ser identificado e combatido na ótica estrutural.
    Esse processo se torna ainda mais depreciativo quando usurpa elementos de uma cultura historicamente marginalizada, perseguida e silenciada como a cultura negra, que já sofre há muito tempo com esse tipo de fenômeno ao redor do mundo. É nítido o processo de apropriação do Rock, a tentativa de embranquecimento do movimento Hip-Hop e são inúmeros os casos de desfiles que usam elementos dos vestuários africanos usando apenas modelos caucasianos. Isso mostra uma estrutura de substituição da figura étnico-racial ligada a um elemento por uma figura de outra raça, que passa a usufruir das benesses, da beleza e dos lucros gerados por esses elementos.
    E QUAL A SOLUÇÃO?
    É notório que esse não é um problema simples, pelo contrário, é muito complexo, sendo ligado a uma estrutura racista e etnocentrista secular, que encontra grande sustentação no sistema capitalista. Mas é importante ressaltar o caráter estrutural desse fenômeno, para que possamos ampliar nossa visão e encontrar caminhos mais consoantes para enfrentar esse grande problema.
  • As Três Almas

    É o Morro das Três Almas. Um nome óbvio para uma história óbvia. Três meninos despencaram do topo, mais de uma vez. E eu não consigo contar quantas vezes passamos por aqui. O relógio está parado, mas o vento ainda circula dentro do vagão. Ninguém sabe dizer o que funciona e o que deixa de funcionar. Não existe lógica, e o  morro some de vista. Nesse minuto, meu corpo percebe a gravidade, como se subisse por um elevador rápido demais, e silencioso. Não são voltas, são saltos para trás, com quedas que quebram nossas pernas. Mas como eles conseguem dormir? Talvez eu esteja exagerando. O Morro das Três Almas aparece de novo.
    Assim levamos duas eternidades, ou três. Não sinto fome e nem sede.
    De repente, algo muda de tom. Meus olhos não estão embaçados e aquela vibração enjoativa deixa meu corpo. Vejo casas e fios de energia, é uma paisagem nova. O autofalante anuncia que estamos de volta. Segundos depois a luz do mundo se acende, como se o sol estivesse dormindo como os outros. Estou provisoriamente cega.
    Passeio meus dedos pelo meu rosto, checando se cada linha está no lugar. Só depois disso  consigo soltar o ar dos meus pulmões e agradecer por ter saído intacta.
    Salto na próxima estação, quero caminhar até minha casa. O problema em questão, é que as ruas estão assombradas. O céu tem um tom errado de azul. O vento tem uma temperatura esquisita e carrega um odor de pele, sangue e anomalia. Ao meu redor, insetos emergem e buscam novas superfícies, eles não querem tocar a terra.  Preciso ser cuidadosa para não virar abrigo.
    Minha cidade é vazia, feia e fedorenta, tem som de grito e música clássica. Uma amiga de infância está sentada no meio fio, cansada demais para levantar. Os insetos a evitam, e isso é apenas uma das coisas que não entendo e não pergunto. O cabelo disfarça o buraco da bala que atravessou seu crânio. Eu nunca perceberia, se ela não me contasse. Lembro de ter lhe dado a maior das broncas. “E se eles repetissem?”. Só depois ela contou que precisou morrer umas cem vezes, e é por isso que ainda estava tão cansada. Morra e eles o trarão de volta, se mate e eles o castigarão. “Não vê o que aconteceu com aqueles três meninos? Eles ainda estão lá, eu ouvi os gritos. Você não sabe a sorte que tem”. Ela me olha e me sorri. Seus olhos são brilhantes e vivos, seu rosto tem aquele tom avermelhado que lembra saúde infantil. Penso nas palavras de Sophia, e repito como prece “ Que nenhum deus se lembre do teu nome”.  Despeço-me e saio, preciso chegar em casa antes do fim do dia.
    Qual fantasia assombrosa você seria capaz de imaginar? Qual versão de mundo você identificaria como o inferno? Na casa ao lado, existe um casal. A mulher está grávida de gêmeos. Antes de nossa tragédia começar, o casal viveu sucessivos episódios de glórias e fracassos, colecionando uma pequena pilha de fetos que não chegaram ao tamanho de uma laranja. Vimos pontos no céu, que se aproximavam calmamente, num ritmo quase poético.  Nessa época, os gêmeos eram dois melões, e a mãe exibia orgulhosa a imagem de ultrassom dos bebês que teriam nome de estrela, em homenagem ao milagre da vida e do céu. Então as luzes se aproximaram, e delas pudemos vislumbrar aqueles grandes olhos carregados de desprezo e sadismo. Escolheram à dedo o pobre casal, e decidiram que essas crianças seriam para sempre azeitonas, e melões, e abóboras, jacas e pêssegos. Uma gestação de mil anos. Bebês num infinito processo de evolução e involução, de zigoto à jaca, de jaca à zigoto. Os pais, que tinham como maior sonho segurar seus rebentos nos braços, precisavam viver sobre a eterna tortura de nunca tê-los de verdade. “Não podemos tira-los daí, eles precisarão de um ventre, quando tudo isso se repetir” O marido diz, quando a esposa ameaça rasgar a barriga com uma tesoura.
    Caminho ao som de Chopin. Eles disseram, do jeito deles, que a música clássica é a única boa invenção da humanidade. Disseram que talvez nem fosse invenção nossa. Acontece que em alguma reunião de conselho, ou sei lá o que fazem lá em cima, alguém disse que nós nos desintegraríamos caso não nos fosse oferecido algum agrado. Então a maior prova de amor e de zelo, foi fazer reverberar 24 horas por dia, ou quantas horas durassem um dia, música clássica em volume suficiente para atingir o menor dos ouvidos.  Olha pra mim, diga que eu não preciso de um pouco de paz.
     Alguém me acompanha  a passos largos. Tem a minha altura, uma linha direta dos meus olhos aos dele. Acho engraçado como ainda existe uma curiosidade infantil nisso.  Ele observa o modo como eu ando, ameaça tocar o tecido da minha camisa, mas desiste no meio do caminho. Tenho vontade de fazer uma pergunta e dez súplicas, mas não quero deixar ninguém com raiva. Eu não entenderia de todo modo. Geralmente é só isso, eles te abandonam depois de alguns metros de caminhada até encontrarem outra coisa que se mova. Convivência pacífica, eu diria.  Uma pessoa e um deus da destruição, num crepúsculo tranquilo e musicado. Estou chegando em casa.
    A fachada está visível, quando não deveria. Não me importo em ver algumas luzes acesas, isso me poupa do terror de ter que revelar algo da escuridão. Se tiver alguém aí, que ouça o barulho dos meus sapatos batendo contra a parede, derrubando todos os insetos refugiados ao longo do caminho.  Faço questão de abafar Vivaldi, os invasores precisam escutar novas sinfonias. Giro a maçaneta. Eu tinha uma foto de quando eu era criança, cerca de 9 meses de idade. Aquela se parecia comigo. Da cozinha, eu olho para a porta da frente e me vejo lá, parada, segurando um sapato em cada mão. Minha boca tem gosto de leite, meus braços sentem a pressão de segurar uma criança. Meus dedos perdem a força e deixo cair os sapatos.
  • Às vezes

    Às vezes me sinto um dado viciado,
    que quando jogado,
    cai sempre no seis.

    - Quero jogar com esse dado!
    - Eu também!
    - Agora é minha vez!

    - Eu quero esse dado enviesado,
    que corrobora meu resultado!
    - Eu quero esse dado manipulado,
    pra gastar o meu francês!

    Outras vezes, sou o jogador,
    o pesquisador,
    o autor.

    O consciente manipulado
    acaba virando
    o manipulador.
  • B A I I S C T N Â

     

     

                           B                              A

                              I                         I

                                 S               C

                                     T       N

                                         Â

     

     


                         
                        t e l e              v i s ã o

     


                        t e l e             v a z ã o

     


                        t e l e              v a z i o

     

     

     

     

     




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    © "Copyright" do Autor, IN: Concursos literários do Piauí. Teresina, 2005, Fundação Cultural do Piauí. 226 p. Página 188.
  • Beleza se põe à mesa?

    Lembro- me de quando eu estava no pré vestibular, na primeira aula de redação e a professora nos propôs o seguinte tema: Beleza, se põe ou não à mesa? Ali, eu com uma intelectualidade mínima, preso a paradigmas religiosos que me impossibilitava pensar em frases pornográficas e ainda com a vergonha de expor minhas ideias, características educacionais que me foram impostas, como agressões físicas (palmadas), tratamentos para reeducação com berros dos meus pais e uma exclusão informativa que me foi atingida durante toda minha miserável vida acadêmica. Fiquei repleto de duvidas e sem o que dizer. Mas agora, antes tarde do que nunca (frase que ouvia de um amigo de infância, espero que ele se manifeste aqui), tenho minha opinião. Beleza, se põe sentada na cadeira. Com postura, com educação e habilidades sofisticada para utilizar de forma correta os talheres. Além dessas características, deves ser alguém que agradeça de forma humilde os serviços prestados pelo garçom. Que se vista com elegância suficiente para atrair olhados, mas deixa claro em suas ações que se respeita acima de qualquer opinião alheia. Que se orgulha da pessoa que é, e que não satisfeita busca uma nova melhoraria todos os dias. Que sabe sorrir diante a uma problemática, não por maluques, mas por total lucides de conseguir enxergar uma possível solução. Que valorize as relações sociais que foram estabelecidas por si, e que tenha empatia para respeitar ainda mais as que não foram. Que entenda que as diferenças sempre existirão e que o príncipe perfeito, sempre dependerá de quão princesa tu és. Que ame os animais, bem mais que os humanos. Que seja uma pessoa que encante com suas ideias inovadoras. E que utilize a mesa para escrever seus mais belos textos.
  • Calidoscópio

    para tia Francisca Miriam

    Do outro lado    odal ortuo oD

    Ohlepse on ameop o    o poema no espelhO

    Não esconde nada    adan ednocse oãN

    Sarvalap sa euqrop    porque as palavraS

    São apenas um jogo    ogoj mu sanepa oãS

    Oãça-snegami ed    de imagens-açãO

     

     

     

     

     

     

     

     





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    © "Copyright" do Autor, IN: Concursos literários do Piauí. Teresina, 2005, Fundação Cultural do Piauí. 226 p. Página 192.
  • Capítulos vagos de vidas miméticas e contemporâneas

                    Certamente é um assunto bastante recorrente nos dias de hoje as questões sobre a tecnologia e a vida, as divergências e compatibilidades sobre conceitos que se criam e as maneiras de se adaptar a um mundo que ao mesmo tempo se torna maleável e em outros aspectos tão caótico, e não apenas no sentido de uma presente apostasia, mas sobre infelizmente um sentido auto reflexivo, que nos conduz a natureza humana, que por mais fascinante que possa parecer também apresenta uma realidade decepcionante
                   Certa vez me deparei com um sujeito no começo de minha graduação em psicologia e que viria a ser um grande amigo, e me surpreendi com o fato de que ele não tinha facebook e nem whatsapp, me recorreu que se tratava de alguém que não tinha o menor interesse em certos assuntos que a um ano atrás por incrível eu pareça não me interessavam também, já que eu também não tinha whatsapp e o meu fecebook estava parado a muito tempo. Tratei de me dar o luxo de refletir sobre a conversa que tivemos neste mesmo dia e me surpreendi como fazia tempo em que não conversava de forma tão franca com alguém, e para minha maior felicidade ele declarou a mesma coisa no dia seguinte ao falarmos sobre a conversa que tivemos no dia anterior, pois não a nada mas felicito para um mero estudante que procura o conhecimento saber que ele não é o único a estar num caminho que poucos procuram trilhar nos dias de hoje. Indo mais fundo eu quis refletir mais um pouco e voltei cerca de 2 anos atrás quando estava no ensino médio e relembrei alguns momentos em que observava as pessoas ao meu redor fazerem planos para um futuro pouco distante já que tinham a ideia de terminar o ensino médio, fazer uma faculdade e arrumar um bom emprego. Era totalmente incongruente com a realidade do que a vida pode significar
                    As pessoas após um tempo de reflexão percebi eu, estavam vivendo uma realidade que não era a delas, mas sim uma realidade que foi projetada. A medida em que eu pensava sobre os aspectos que a levaram a tal decisão percebi que elas simplesmente reproduziam o que viam em filmes, livros de uma péssima literatura e logicamente como qualquer brasileiro comum o que os famosos passavam como uma vida justa, tranquila e repleta de felicidades. Sinto muito em dizer que isso não se trata da vida, nem mesmo se trata de um rastro do que seja ela em sua essência. A vida é nossa única viajem, a viajem que devemos entender nossos propósitos e nossas necessidades como pessoas que podem ter tudo e se sentirem legitimamente pessoas com vidas vagas e sem um sentido, ou podemos ter poucas coisas numa visão geral do mundo mas com a satisfação de sentir que não lhes falta algo, pois o vazio cósmico do qual muitos declaram ter não faz parte de sua vida, mas sua própria história faz parte de uma história de vida digna da qual viveu, ou ainda termos ter em um sentido material, financeiro e mesmo assim ainda entender que isso pode fazer parte de você, mas não de uma vida cuja essência tem muito mais a oferecer do que propriamente o dinheiro e bens materiais. Acreditem quando digo que mesmo com todas nossas falhas e sendo naturalmente corrompidos tão facilmente, existe um sentido para sermos dignos de uma vida da qual nos abstemos de todas as coisas tão facilmente conquistadas num sentido contemporâneo, do que muitas vezes pode ser uma mera ilusão da qual passamos tanto tempo de nossa vidas tentando conquistar, porém não se trata daquilo que é inerente a cada ser humano em sua singularidade, a sua vocação, aquilo que nascemos para cumprir, nosso propósito. Se em algum momento de sua vida passou por sua cabeça que as coisas da qual tem lutado tanto para conquistar não estão fazendo o mínimo sentido, suspeite que isso se trata de uma pequena centelha daquilo que seu espírito tem clamado por toda uma história deturpada pela contemporaneidade.
                   Em um momento decisivo de minha vida, encontrei um grande amigo me aconselhou em muito aspectos, se tratava de alguém com grande fé e me lembro claramente de um momento em que ele me aconselhou sobre questões de relacionamentos que podem ser para um vida toda, se tratando especificamente de casamento. E ele me contou sobre experiências de vida com outras pessoas a qual aconselhou e relatou também sobre como as coisas desde quando ele era jovem tinham mudado, principalmente em relação a sociedade em um processo de decadência contínua. As palavras naquele momento me invadiram de tal forma que me lembro quando disse: “Se quer uma vida abençoada, viva sem reservas!”, pode parecer um tanto leviano, mas repare bem quando ele disse que seria uma vida abençoada, e não apenas uma vida da qual vivemos sem o mínimo de abstinência sobre aspectos que não acrescentam nada ou mesmo ações que levam a uma satisfação momentânea, se trata de uma vida inteira a ser refeita todos os dias, dando o nosso melhor por um presente que constituirá e dará em certo a certeza de um futuro melhor. A contemporaneidade com seus conteúdos manipuladores e maléficos tem matado essa essência de esperança na vida das pessoas. Não estou dizendo que as pessoas tem que parar de fazerem o que gostam, somos humanos e temos nossas satisfações em coisas que são de nossas preferências, porém temos que nos libertar de coisas que não fazem parte de nossa singularidade como pessoas únicas se tratando de um sentido maior que a leviandade, e de renunciar aspectos que não nos levam a lugar algum, apenas nos fazem desejar aquilo que não é feito para nós e que se trata de uma publicidade qualquer ou de um filme romantizado que nos expõe como humanos fracos que somos e seguimos tão fielmente aquilo que nos é posto com um prato atrativo todos os dias. Sinto dizer que se em algum momento achamos que o que vivemos durante todo o decurso de uma vida é decisão apenas nossa, que em algum momento acreditamos estar certos sobre como a nossa vida termina, estamos absurdamente errados sobre o que se trata a vida em seu maior sentido. A vida como anteriormente deixei claro se trata de uma viajem, uma única viagem da qual estamos fadados a trilhar com a certeza de um momento em que teremos de deixar as coisas aqui conquistadas e trilharemos outro caminho. Nossos corações devem estar no sentido maior da vida, tem que estar em algo que não nos decepcione ou mesmo nos faça acreditar em algum momento nos abandonará. Deus se trata do maior sentido da vida, ele é a Fé, o Amor e a Esperança que a humanidade necessita.
  • Ciclo

    — Temos mesmo que ir? Eu estou com medo, mamãe.
    — Estarei bem do seu lado, além disso, não podemos resistir, filhinho.
    O vento empurrou com força. Não conseguiram mais segurar. Caíram.
    Com a descida cada vez mais rápida, sentiram antes mesmo de acontecer, que se separavam.
    Lá vinha o telhado. Como poderia ser tão aterrorizante? Uma telha era tão grande assim? Seria muito dura?
    Descobriu mais cedo do que imaginava. Bateu na telha, rolou por ela e caiu outra vez.
    Foi aterrissar em algo macio; perfumado; alaranjado. Parecia uma cama.
    Enrolou-se como em um cobertor e dormiu. Esqueceu do medo.
    Acordou com uma sacodida violenta. O medo voltou! Escorregou pelo caule e foi para o chão.
    Um buraquinho na terra com outras conhecidas.
    — Mamãe! Te encontrei!
    — Blin! Você está bem! Eu nem acredito.
    O sol brilhou e Blin sentiu-se estranho.
    — Mamãe, o que está acontecendo? Estou desaparecendo! Me ajuda!
    Viraram vapor juntos e foram subindo para o céu outra vez.
    Blin não queria ir. Tinha medo de altura.
  • Crítica ao conceito de Feminismo no Brasil

    O Feminismo é um verdadeiro saco de gatos conceitual. Dentro dele foram jogados todos os movimentos sócio-políticos das mulheres no Brasil. Um enquadramento generalizante e empobrecido da atuação do ser feminino dentro da nossa sociedade. Toda vez que mulheres ousaram desafiar o status quo e lutaram pela sua emancipação, logo lhes foi atribuído os espaços da “esquerda” e do “comunismo”. Um bloco monolítico sem diversidade ou contradições internas, algo que não se sustenta num estudo mais aprofundado.
              O movimento feminista remete a Inglaterra do século XIX. É partir daí que as mulheres da pequena-burguesia se unem pela sua inserção em novos espaços sociais e políticos. Nem todas as mulheres estavam inclusas, foram ejetadas do Feminismo as mulheres de outros grupos étnico-raciais e de outras classes sociais. Podemos estabelecer que esse movimento político e articulado das mulheres em relação a sua emancipação é de gênese liberal. A ideologia teve rápida proliferação e aglutinação em países do Ocidente capitalista.
              Essa praxe não se confunde com o comunismo. Para as feministas, a luta se restringe a emancipação do feminino, ou seja, dos espaços sociais convencionais que aprisionaram as mulheres — a mãe, a esposa, a devota religiosa etc. —; já para os comunistas, a luta se dá no nível socioeconômico, não está focado nas questões identitárias. Sendo o primeiro movimento nascido das correntes políticas do liberalismo econômico das potências europeias, e o outro da classe operária, teremos muito mais relações históricas de conflitos que de diálogos.
              Isso não significa dizer que mulheres comunistas não estivessem atentas e atuantes às questões femininas, de sua luta política e liberdade sexual (LIMA, 2008). Mesmo sem estarem vinculadas ao Feminismo ou se auto declararem, suas ações podem ser consideradas em alguns casos como feministas. O real problema é quando esses fatos são usados para homogeneizar, estereotipar e estabelecer uma unidade até então inexistente dentro do próprio movimento feminista, “o feminismo tem sido, nas últimas décadas [a partir da década de 1960], um movimento internacional, mas possui características particulares, regionais e nacionais” (SCOTT, 2011, p. 69).
              Embora não seja o nosso objetivo fazer periodizações, podemos estabelecer os anos de 20 e 30 como o primeiro momento de atuação mais objetiva do Feminismo no Brasil,
    “[...] [mulheres] especialmente de camadas socialmente privilegiadas, organizadas em diferentes grupos na luta pela libertação do gênero feminino. Parte delas se reconhecia feminista, a exemplo da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) [...]. Outra parte, apesar de se posicionarem de forma contundente contra a inferiorização das mulheres, não se assumia feminista, como a maioria — senão todas — das mulheres do PCB” (ALVES, 2019, p. 182).
              Houve períodos de maior ou menor atuação das feministas, sendo condicionado pelas rupturas democráticos que o Brasil passou. A exemplo do anarcofeminismo, só podemos lhe fazer menção a partir de maio de 68, sendo ampliado através do movimento punk; isso no que diz respeito strictu sensu ao nosso país. Em si tratando do comunofeminismo, independente das representações que o passado nos legou, só será visto em maior atuação na década de 90, quando o processo de reestruturação dos partidos de esquerda no Brasil se abriram aos movimentos sociais.
              O Feminismo é uma força política real e atuante, no Brasil e no mundo. Mas de modo algum livre de contradições e reveses. Nem de longe unitário. Não devemos elencá-lo ao espaço da massa amorfa e indivisível; nem tão pouco repetir estereotipias ipsi litteris sobre a condição social e histórica das mulheres e sua luta política. O correto seria dizer “feminismos”, muitas vezes em conflito. São vários direcionamentos que, quando interseccionalizados, mostram um movimento heterodoxo e em constante renovação. Ser feminista no Brasil pode significar muitas coisas para as mulheres, mas com certeza não é uma unidade determinada.



    REFERÊNCIAS
    ALVES, Iracélli da Cruz. A política em prosa: representações comunofeministas em A sombra do patriarca. In: BATISTA, Eliana Evangelista; SILVA, Paulo Santos. (Org.). Dos fios as tramas: tecendo histórias, memórias, biografia e ficção.  Salvador: Quarteto, 2019. p. 171-188.
    LIMA, Luciano Rodrigues. Parque Industrial, de Maria Lobo (PAGU): resistência e utopia nos subterrâneos da Era Vargas. In: SENA JUNIOR, Zacarias F. de; SILVA, Paulo Santos. (Org.). Salvador: EDUNEB, 2008. p. 273-290.
    SCOTT, Jean. História das mulheres. In: BURKE, Peter. (Org.). A escrita da história: novas expectativas. São Paulo: Ed. Unesp, 2011. p. 65-98.
  • D. Gray Man e o ofício do historiador

              Katsura Hoshino é uma das mangakás mais geniais. Ela é a criadora do mangá shonen D. Gray Man. A obra foi publicada na Weekly Shonen Jump em 2004, ainda em andamento. Os quadrinhos se tornaram sucesso por trazer uma trama rica em reviravoltas e ação, estética gótica e mitologia cristã para as suas páginas. Um dos elementos dessa trama, o Clã Bookman, nos ajuda a discutir algumas questões do ofício do historiador.
              Mas antes de aprofundar a discussão, é necessário responder a seguinte pergunta: que seria a História? Para mim, é uma ciência que busca compreender as relações humanas no tempo e no espaço, em sentido retrospectivo, ou seja, do presente para o passado. Perguntamo-nos no presente e voltamos ao passado através das fontes que os nossos ancestrais nos legaram.
              Se o ser humano estuda e analisa a história do ser humano, como manter a objetividade e não ser condicionado pela sua própria condição humana? É daí que o mangá de Hoshino irá nos ajudar a questionar a busca de objetividade do historiador em seu ofício.Em D. Gray Man, a trama aborda uma guerra santa entre dois grupos, a Ordem Negra, uma organização monástico-guerreira sob a tutela do Vaticano, e a Família Noah, um grupo de seres imortais descendentes de Noah, uma referência ao Noé bíblico. A história do mangá é permeada de fantasia e simbologias, mas não iremos tratar desses assuntos aqui. O que nos interessa é o papel que o Clã Bookman possui nessa guerra e como realizam o seu oficio de historiadores.
              O termo bookman é de origem inglesa, e a grosso modo significa “o homem do livro”. Na Europa Medieval, era uma espécie de historiador particular vinculado à nobreza. Quando Suas Altezas Reais iam a guerra, costumavam contratar os serviços de homens letrados para registrar suas proezas em batalha. Muitas vezes esses relatos eram feitos sobre encomendas, se é que o leitor me entende.
              O ofício do bookman não é exclusivo da Era Medieval, existem registros de tal função em outras civilizações e regiões do planeta, como a China Imperial onde tal historiador recolhia os mínimos detalhes da vida do imperador, inclusive suas relações sexuais. Mas como grande parte de nossa história é de cunho eurocêntrico, acabamos não sabendo mais detalhes desses outros historiadores.
              No mangá, eles são um clã. Apesar do termo, não parecem ter um antepassado em comum ou ter relações consanguíneas. Sua estrutura se assemelha mais a uma organização secreta do que há um clã. Eles estão espalhados pelo mundo todo, e são financiados em suas pesquisas e outras questões por membros do Clã Bookman, algo semelhante aos historiadores da vida real que realizam pesquisas custeadas por terceiros, seja o Estado ou instituições privadas.
              Os membros do clã possuem acesso a acervos privados e particulares, possuem um idioma próprio e possuem memória eidética, ou seja, memória fotográfica. Esses elementos são importantes para a minha análise. Cada bookman faz um registro na Tora, um tomo usado para escrever os capítulos da guerra. Cada registro da guerra santa recebe o nome do bookman responsável pelo registro.
              O atual responsável pela escrita é o bookman junior e exorcista da Ordem Negra, o Lavi. Aprendiz de Bookman, seu mentor, ou se você preferir, orientador. Lavi é nosso representante no mangá. O jovem ruivo é o que nós podemos chamar de graduando em História. Foi recrutado aos 6 anos de idade, sendo órfão de pai e mãe, foi praticamente adotado pelo Bookman, e desde então estuda para assumir o lugar do velho Bookman.
              Esse personagem nos chama atenção devido ao seu visual. Usa tapa-olho, e um longo cachecol no pescoço. Uma bandana cinge a sua testa. Sua arma é um martelo chamado Tettsui, do japonês “Martelo de Ferro”, capaz de aumentar o seu tamanho. Além disso, sua arma possuí o poder de controle elemental através de selos místicos. O personagem tem uma personalidade carismática e profunda. Ele já protagonizou uma light novel da história e foi cogitado para protagonizar o mangá, segundo a própria Hoshino.
              Lavi não é o nome de batismo do personagem, ele abdicou desse nome logo ao se aliar ao Bookman em suas pesquisas. Lavi é o 49º nome que ele assume, logo, percebemos que o nosso protagonista tem um problema com a constituição de sua identidade. É como se ele estivesse em busca de uma identidade que revelasse algo mais que uma função. Abdicar do nome original é uma forma de romper laços com sua antiga vida e condição existencial. Essa busca pela identidade se manifesta em sua personalidade flutuante entre momentos de grande carinho e de extrema frieza.
              Embora não seja cego de um olho, ele usa uma venda no olho direito. Isso implica uma visão unilateral do mundo, visto que, apenas um dos olhos é capaz de enxergar a realidade. O martelo é outra forte simbologia em relação ao personagem. Esse instrumento representa: demolição, iconoclastia, ruptura com os dogmas e modelos anteriores. O próprio filósofo Friedrich Nietzsche dizia que “filosofava com o martelo”.
              Entre os bookman, existe um ideal de neutralidade e de objetividade no ofício. Os bookmans, mesmo quando se aliam há um lado ou outro do conflito, não fazem por ideologia ou sentimento de pertencimento, mas sim porque conseguem acesso a informações e documentos dentro da Ordem Negra e da Família Noah. Numa primeira análise, não parece que os historiadores em D. Gray Man possuem um senso de moral. Mas essas filiações temporárias parecem ser uma contramedida para garantir a neutralidade do historiador.
              Essa ideia se aproxima do pensamento do historiador alemão Leopold von Ranke, importante teórico da História no século XIX. Segundo ele, o historiador de ofício deveria ser rigoroso em seu método, e se anular perante as fontes. De acordo Ranke, através do método, seria possível fazer “falar os documentos”. Nesse sentido, o historiador seria menos intérprete e analista dos fatos históricos e mais um mediador dos discursos e representações que as sociedades nos deixaram registradas.
              Esse pensamento dominou o ofício até o início do século XX, quando foi questionada pela Escola dos Annales. Encabeçados pelos historiadores franceses Lucien Febvre e Marc Bloch, eles propunham uma história-problema, e não uma história narrativa. Foram descartados os elementos políticos, individualistas e cronológicos da História, o que acabou criando novas abordagens e inclusão de novos temas e objetos de pesquisa. Isso renovou a História e possibilitou uma crítica teórico-historiográfica.
              No mangá, a associação entre bookman e organização se dá há nível de interesse mútuo. Através de alianças temporárias, eles obtêm acesso a arquivos e podem registrar a história através de seu testemunho, já as organizações que associam os bookmans, acabam se servindo de seu vasto campo de conhecimento e experiência. Isso provoca uma série de conflitos entre Lavi e Bookman.
              De acordo o orientador do bookman junior, ele não deveria interferir no ciclo da história, cabendo como o seu único papel registrá-la. Ou seja, alguém que contemple e não aja para modificar a ordem das coisas, o que contrária qualquer perspectiva marxista. Mas Lavi não consegue ser omisso e acaba interferindo de maneira contundente na guerra que ele deveria ser expectador. Estaria a neutralidade abalada pela atuação de Lavi? Um historiador engajado ou militante é capaz de encontrar a verdade na história?
              O conceito de verdade pode se alterar em diferentes épocas e regiões. Para o povo Asteca, era verdade absoluta — e necessário — sacrificar pessoas diariamente ao sol para que ele se movesse no céu e não punisse a humanidade com a escuridão. No período medievo, a Igreja Católica estabeleceu que vivíamos num sistema geocêntrico e que a Terra era plana, os que contestassem essa verdade eram queimados em fogueiras. Logo, a verdade ou a noção da realidade é uma construção histórica e social.
              Não há nenhum demérito a História ser reescrita, revista e ampliada, visto que, ela não deixa de ser um produto sócio-histórica produzido pelos seres humanos. Nenhuma ciência, seja ela da área de humanas ou naturais, pode se dar ao luxo de ser dogmática. A ciência é essencialmente pragmática, caso contrário, estaria fadada a ser fixa e nunca evoluir em sua produção de conhecimento.
              A ideia de que existe uma neutralidade absoluta nas Ciências Naturais, porque seus cientistas estudam e pesquisam algo externo ao ser humano, não passa de pura ideologia. O que eles buscam tanto refutar acaba se tornando o que mais defendem. Onde está a neutralidade do físico quando ele ajuda o exército a construir bombas atômicas para matar pessoas? Onde está a neutralidade do virologista que elabora armas virais? Onde está a neutralidade do cientista da computação ao criar sistema de precisão balísticos em armas autônomas e drones?
              O historiador pode ser engajado em alguma causa, sem com isso perder a objetividade em seu ofício, pois, História não se faz com ideologias, e sim com metodologia. A única coisa que pode nortear essa questão é a problematização da historicidade, entendida aqui como a contextualização do tempo e do espaço histórico, e do rigor metodológico. Rigor no sentido da crítica externa e interna das fontes, diálogo interdisciplinar e revisão pelos seus pares.
              O historiador de ofício não deixa de ser um detetive temporal. Um detetive não cria pistas, ele as coleta, as analisa com cuidado, visto que, um erro na sua investigação pode condenar ou safar alguém de um caso. Se a produção historiográfica destoa muito dos fatos históricos, o que o profissional produziu não foi historiografia, e sim propaganda ou ficção histórica. Deixemos a ficção histórica para os escritores e literatos e a propaganda para os publicitários. Nosso objetivo é produzir ciência, conhecimento do processo histórico. Lavi não deixa de ser um historiador por ser atuante dentro da história.
              Nem é menos objetivo por causa disso. D. Gray Man e o Clã Bookman nos ajuda a discutir essa contradição pela busca da absoluta neutralidade, algo que deve ser refutado. Os seres humanos são seres lógicos, mas também são seres desejantes ou instintivos. A produção de conhecimento e os critérios de verdade mudam dependendo de seu contexto histórico. Se os homens não são fixos e determinados, a História também não pode ser.
    REFERÊNCIAS
    D. GRAY MAN ENCYCLOPEDIA. Bookman Clan. Disponível em: < https://dgrayman.fandom.com/wiki/Bookman_Clan > Acesso 26 fev. 2021, às 16:39 horas.
    D. GRAY MAN ENCYCLOPEDIA. Bookman. Disponível em: < https://dgrayman.fandom.com/wiki/Bookman > Acesso 26 fev. 2021, às 16:42 horas.
    D. GRAY MAN ENCYCLOPEDIA. Lavi. Disponível em: < https://dgrayman.fandom.com/wiki/Lavi > Acesso 26 fev. 2021, às 16:55 horas.
    D. GRAY MAN ENCYCLOPEDIA. Lavi/History. Disponível em: < https://dgrayman.fandom.com/wiki/Lavi/History > Acesso 26 fev. 2021, às 17:01 horas.
  • Deus, de criador a criatura

    Deus é parte da cultura, produto de relações sociais que se estabelecem entre os indivíduos. Todos os povos, com poucas exceções, sempre desenvolveram alguma ideia de divindade, sob diversas formas. Nessa perspectiva, muitos teólogos afirmam que o ser humano é, por natureza, religioso, pois a ideia de Deus seria inerente ao indivíduo e à vida em sociedade.
       Acredito, por boas razões,  que a ideia de Deus não seja inerente ao indivíduo, tampouco à vida em sociedade. O ser humano é dotado de inúmeras potencialidades. Somos uma folha em branco sendo rabiscada pelo processo social. Isso é tão verdade que as diversas sociedades desenvolveram conceitos diferentes sobre Deus ou deuses, conceitos muitas vezes inconciliáveis. Eis a razão de haver tantas religiões espalhadas pelo mundo.
       Os teólogos que defendem a tese do "homem religioso" negligenciam o fato de que todas as sociedades atuais derivam de um tronco social comum e que, por isso, a ideia de Deus se replicou e tomou formas diferentes. Ou seja, a ideia de Deus surge num ponto específico da história e se reproduz ao longo do tempo, assumindo aspectos variados.
       Se a crença em Deus fosse inerente ao homem, o ateísmo não teria tomado as proporções atuais, sobretudo no norte da Europa. Também não seria possível encontrar sociedades sem deuses, como é o caso da tribo dos Pirahãs, na Amazônia. Então, diferentemente do que pregao senso comum, Deus não é criador, mas uma genuína criação humana.
  • Dispenso elogios, aceito remendos...

    Dispenso elogios, aceito remendos...

    Este texto retrata a honesta concepção do autor que tanto deseja se livrar da vaidade; entretanto, sua vontade, de desejo pouco está a passar, quando não, ao nada haverá de chegar, pois, por força maior de outro vício seu, que menor não é, e que a estar em conluio com a sua própria vaidade, quer daquele intento, desviá-lo.

     Por imoderado e essencial desejo que temos os homens de atrair admiração ou homenagens, sofrimento a menos do que mereço, tenho tido; logo, para sofrer ainda menos, menos presunçoso devo ser; sei que para não ficar apenas com esta vã presunção, devo dispensar elogios, ainda que os tenha por um bom adubo, pois bem sei que este pode dar vigor à planta em crescimento; contudo, a erva daninha chamada vaidade, muita vez, entremeada no plantio, desfrutando do mesmo trato cultural, poderá ter seu viço aumentado; então, a praga cedo se alastra, logo solta suas inflorescências, e não tarda em dar seus maus frutos; portanto, dispenso elogios; mas, por vez, tenho dúvida: será que esta erva invasora, aos poucos, fora me envolvendo em suas gavinhas, fazendo germinar em meu coração, o seu fruto legítimo, a falsa modéstia?

     Aceito remendos, embora os receba com cautela, pois, cautela exigem, para que fiquem bem feitos, dado  que quando bem aplicados, repara-se o dano, mas se o tecido for fraco, abre-se um rasgo ao tentar tapar um puído.

    PS - Fiquemos atentos! Muita vez, elogio não passa de um negócio reles do tipo - Pro amphora urceus - ou seja, “O pote pela ânfora” ou ainda, “Uma bilha de leite por bilha de azeite”.

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