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O conceito de espaço público em Hannah Arendt

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Originalmente publicado em: 

http://www.professorboaratti.com.br/#!O-conceito-de-espaço-público-em-Hannah-Arendt/c1jfd/1FACDAC9-DDDF-4531-BCA3-495C103CBC9A

 

 

O conceito de espaço público tem se tornado referencial na produção teórica, não apenas no âmbito da teoria política, mas também da Sociologia e outras ciências sociais e humanas. Pode-se dizer que o estado da arte das reflexões nessas áreas encontra-se ao redor da abordagem do conceito de espaço público.

Sendo assim, o presente artigo tem como objetivo desenvolver uma apropriação teórica das principais contribuições de Arendt acerca do conceito de espaço público, o qual, é central para a compreensão da sua produção teórica. Torna-se necessário, portanto, percorrer a trajetória do desenvolvimento do pensamento dessa autora, por meio da análise de duas obras importantes: “Origens do Totalitarismo” (1951) e “A Condição Humana” (1958) - o presente texto ficará apenas com a análise da primeira obra, e a segunda será objeto de estudo na segunda parte deste trabalho. 

A obra de 1951 foi selecionada tendo em vista ressaltar as condições sociais e políticas que tornaram propícias o surgimento do Totalitarismo. A questão pertinente subjacente à análise é saber qual a consequência do advento totalitário para o espaço público. Já a segunda obra foi selecionada para a presente análise devido ao fato de que é nela que Arendt fornece conceitos para descobrir a origem, a partir das esferas da vita activa, da ascensão do regime totalitário (porém, como foi colocado anteriormente, esta obra de Arendt não será abordada no presente texto)

No intuito de prosseguir com a análise, se faz necessário levantar algumas questões, a partir da preocupação na busca pelo entendimento do sentido do conceito de espaço público no pensamento de Arendt: a partir de quais atividades humanas repousam a propensão para a prática do mal que leva a legitimação da institucionalização do terror? Por outro lado, de que forma os homens afastam a possibilidade para o mal, contribuindo para as condições de uma sociedade que prevaleça a livre iniciativa como base para participação política? São essas questões que encaminharão para uma leitura mais cuidadosa sobre as contribuições de Arendt para o objeto desta análise.

 Totalitarismo e a sociedade de massa

            Nesse primeiro momento, torna-se relevante destacar duas questões que nortearão o desenvolvimento deste tópico: qual o contexto sócio-político alemão no período anterior à ascensão totalitária e que condicionou o surgimento do mesmo? Quais os meios utilizados pelo movimento totalitário para se ascender como regime político? O resultado das reflexões acerca dessas questões permitirá uma melhor compreensão do conceito de espaço público em Hannah Arendt, já que ela constrói esse conceito levando em conta o sofrimento que ela própria vivenciou como judia alemã refugiada do nazismo.

Todo o desenvolvimento teórico de Hannah Arendt é fruto de suas inquietações e experiências vividas. Com isso, a autora dedicou a primeira obra de sua carreira acadêmica com o objetivo de descortinar as raízes[2] que levaram ao advento do Totalitarismo, como uma nova forma de governo e dominação fundamentados na “organização burocrática de massas, no terror e na ideologia” (LAFER, 2003, p. 25).

            O Totalitarismo, entendido como um fenômeno moderno, necessita de novas categorias que dêem conta de compreendê-lo na sua totalidade. Com essa preocupação, Hannah Arendt promove uma inovação teórica por meio de uma sofisticada revisão da tradição do pensamento clássico da política. “A tradição ocidental não tinha nem categorias, nem respostas, pois o totalitarismo apareceu tanto como um desdobramento da utopia capitalista, quanto da utopia socialista, conforme mostram as suas vertentes nazista e stalinista” (2003). Hannah Arendt percebe essa lacuna e desenvolve novos conceitos, por meio dos quais, a autora possibilita uma melhor elucidação do tema.

Com a publicação da obra em 1951, Arendt investiga a gênese do fenômeno totalitário, partindo do pressuposto de que ele advém, de um lado, do anti-semitismo moderno e do outro, do imperialismo. Segundo Celso Lafer, O primeiro é

fruto das tensões entre Estado e Sociedade Civil, que surgiram na Europa a partir da Revolução Francesa, com a expansão da igualdade e a extensão da cidadania. Neste processo, os judeus, porque estavam vinculados ao fortalecimento do Estado, absorveram e catalisaram as irritações da Sociedade Civil. (LAFER, 2003, p.25).

O anti-semitismo serviu de base para a propaganda totalitária que percebeu claramente o distanciamento do povo judeu com o resto da sociedade e criou formas de manipulação que colocava o judeu como o pivô da crise que a Alemanha vivia no período entre - guerras.

            Já o imperialismo foi o “resultado da emancipação política da burguesia e surge quando esta deixa de se dedicar aos seus negócios privados e assume a gestão do Estado na Europa”. (2003, p.26) A prática do imperialismo, como forma de administração política burguesa, provocou as condições que propiciaram o advento totalitário: o racismo, o expansionismo e a burocracia. O primeiro, fez com que o europeu se tornasse cada vez mais insensível com outros povos, o que construiu um terreno fértil para a prática do genocídio. O expansionismo refere-se à pretensão totalitária de se internacionalizar. E por fim, a burocracia, foi o meio encontrado pelos burgueses de administrar a sociedade de forma cada vez mais autônoma e eficaz, excluindo cada vez mais a sociedade do poder, pois apenas os mais competentes poderiam ocupar cargos públicos. 

A partir desses breves apontamentos referentes às circunstâncias criadas para o surgimento do fenômeno totalitário, é imprescindível uma análise mais próxima da obra de Hannah Arendt com o objetivo de compreender melhor a visão da autora sobre o tema proposto e aprofundar ainda mais nas condições que criaram um terreno fértil para o Totalitarismo.

            Uma das formas de explicar a ascensão do regime totalitário é através da relação que Arendt estabelece entre o regime e as “massas”, na medida em que o primeiro é dependente do segundo. Uma das ferramentas mais eficazes construído para convencer as massas foi a propaganda, a qual, será tratada com mais acuidade posteriormente. 

Diferente de muitos que tentam explicar o fenômeno do totalitarismo, Hannah Arendt não atribui à propaganda como o principal fator que determinou o surgimento do mesmo. Mas sim, como mais um dentre vários elementos que auxiliou na construção do contexto propício para que o movimento se efetivasse como regime político. O que leva as pessoas legitimarem tamanha violência? O que faz um cidadão comum se transformar num soldado de Hitler? Segundo Arendt, é a futilidade.

Arendt lembra que quando um membro de um partido nazista tem a intenção de se promover e adquirir status, é o que impulsiona um homem a cometer atos violentos. Essa impulsividade repousa no que ela chama de normalidade: na ausência de total reflexão, de princípios ou valores éticos, sobra o vazio que faz com que o individuo deixe de se preocupar ou de levar em conta a vontade alheia[3].

É na tentativa de se ascender dentro do partido, por meio do respeito e reconhecimento, que o membro comum do grupo passa a praticar atos violentos. Segundo Hannah Arendt, a conseqüência direta disso é a destruição da própria capacidade de sentir e principalmente de perceber o outro. Do ponto de vista histórico, essa deturpação do homem em enxergar o outro, e sim apenas as suas necessidades enquanto individuo, é resultado de uma crise estrutural dos regimes democráticos europeus logo após a I Guerra Mundial, como disse Hannah Arendt: “Depois da I Guerra Mundial, uma onda anti-democrática e pré-ditatorial de movimentos totalitários e semi-totalitários varreu a Europa” (2004, p. 358).

            Devido à crise nas instituições democráticas européias no período entre - guerras, houve uma profunda perda significativa, por parte dos cidadãos, do interesse em participar da política, sendo que aos poucos, foram se tornando cada vez mais “indiferentes com a política e ao mesmo tempo não se organizam politicamente em torno de um partido” (2004, p. 361). O termo “massa”, sendo uma das categorias centrais no pensamento da autora, define justamente essa característica marcante numa sociedade, em que as pessoas se conformam com a situação e se fecham em suas vidas privadas. Segundo Hannah Arendt, a sociedade de massa, constituída por seres incapazes de pensar em termos coletivos, foi um dos fatores que criaram as condições propícias à ascensão do movimento totalitário ao poder.

Massa foi a forma pela qual, os responsáveis pelo controle dos meios de comunicação nazista por meio da produção e veiculação da propaganda totalitária, encaravam a sociedade: como seres passivos, objetos de manipulação para o regime e para o “bem” da Alemanha. Essa concepção foi a que orientou o nazismo na construção de sua propaganda que veiculava nos meios de comunicação: a superioridade dos argumentos nazistas geralmente fundamentados na ciência criavam a imagem de uma Alemanha digna de liderar todo o bloco europeu através do controle sistemático das massas.

            No momento anterior à instalação do regime totalitário, enquanto este constituía-se como um movimento político, tanto o nazismo quanto o comunismo após 1930, recrutaram boa parte dos seus membros junto à massa. Pois os mesmos eram facilmente convencidos (por razões aqui já apontadas) em aderir a métodos violentos e não persuasivos.

Segundo Hannah Arendt, o regime democrático alemão não conseguiu evitar o totalitarismo devido ao fato de que “as massas, politicamente neutras e indiferentes, podiam facilmente construir a maioria num país de governo democrático, e que, portanto, uma democracia podia funcionar de acordo com normas que, na verdade, eram aceitas por uma minoria” (2004, p. 362).

Outro fator importante apontado por Arendt que contribuiu para a ascensão do Totalitarismo ao poder, foi o colapso do sistema de classes, tanto na Alemanha quanto na Rússia. Ou seja, a massificação da sociedade que pode ser explicada pela “sociedade competitiva de consumo criada pela burguesia, gerou apatia, e até mesmo hostilidade em relação à vida pública, não apenas entre as camadas sociais exploradas e excluídas da participação ativa no governo do país, mas acima de tudo entre a sua própria classe” (2004,p. 363). Como conseqüência, o indivíduo gastava energia competindo, e dessa forma, afastava-se dos “exercícios dos deveres e responsabilidades do cidadão”, por isso, as pessoas adotaram o pensamento de que a participação política era uma “perda desnecessária do seu tempo e energia” (2004, p. 363).

            Do ponto de vista da representatividade, a burguesia era a única representada no Parlamento, já a massa, tomada pela apatia e desarticulação política, não possuía nenhuma representatividade junto às esferas de poder. Logo, a atuação política foi reduzida ao mero serviço público, ocupado pela burguesia, havendo uma significativa diminuição de um “corpo político de cidadãos que se sentissem individual e pessoalmente responsáveis pelo governo do país” (2004, p. 364). A conseqüência da diluição das classes, ou até mesmo o desaparecimento delas, fez com que houvesse uma crise de representatividade partidária.

Para que as massas fossem convencidas, diante de tanta imobilidade e indiferença, era necessário que os partidos totalitários apelassem ideologicamente nas suas propagandas, na tentativa de agregar novos membros. Isso é fruto da consciência da “desimportância e da dispensabilidade que aos poucos deixam de ser expressões da frustração individual e tornava-se um fenômeno de massa” (2004, p. 365).

A sociedade de massa é incapaz de formar um interesse comum, sendo a única coisa compartilhada, e sendo isso que a torna massificada, é a apatia seguida de comodismo político. É interessante ressaltar que, para Hannah Arendt, as principais características do homem pertencente a uma sociedade de massa é o isolamento e a falta de relações sociais. Logo, o surgimento e crescimento de regimes totalitários depende “das condições específicas de uma massa atomizada e individualizada”. (2004, p. 368).

            O Totalitarismo, enquanto regime político, promoveu a dominação irrestrita e sem limites de todas as possíveis atividades autônomas por parte dos cidadãos. Consequentemente há uma nítida perda de participação política devido à captação das esferas de convivências autônomas na sociedade pelo regime Totalitário, e nesse sentido, o presente texto fará uma abordagem mais detalhada dos efeitos produzidos pelo Totalitarismo no espaço público num momento posterior.

            Retomando à questão da adesão de pessoas junto aos movimentos totalitários, Hannah Arendt chama atenção pelo fato de que a “lealdade só é possível quando a fidelidade é esvaziada de todo o seu conteúdo concreto” (2004, p. 373). Ou seja, o que faz uma pessoa seguir as diretrizes de um movimento político fundamentado no uso da violência, seria justamente a lealdade em seguir as ordens. A lealdade sem limites, cega o individuo, fazendo com que este não enxergue as conseqüências dos seus atos, mas sim, apenas o que ele pode ganhar, dentro do partido em termos de reconhecimento e respeito. Com isso, Arendt resume essa questão numa frase comum da época: “minha honra é a minha lealdade” (2004, p. 374).

Propaganda e terror

            Uma das questões que mais chama atenção no Totalitarismo é a estreita relação entre a propaganda e o terror. Antes de continuar com o desenvolvimento deste tópico, é importante notar que Hannah Arendt, em sua análise da gênese do totalitarismo na Europa, passa pela diferenciação do movimento totalitário com o regime. Ela destaca o fato de que o primeiro se desacopla do segundo por meio da recusa, por parte de Hitler, em discutir os pontos de adequação dos interesses nazistas com os do partido, havendo então uma exclusão do diálogo.

Hitler, num de seus discursos, proferiu a seguinte frase que comprova esse fato: “Tudo o que vocês são, o são através de mim, tudo o que eu sou, sou somente através de vocês” (2004, p. 374). Neste trecho de uma das falas públicas de Hitler, percebe-se que ele personifica o poder através dos interesses das massas. Ele chama para si toda a responsabilidade de colocar em prática, de tornar real o sonho alemão de liderança mundial. Em contrapartida, o apoio do povo irrestrito é fundamental para o êxito. Dessa forma, Hitler afasta qualquer possibilidade do partido exercer o papel mediador entre o regime e os interesses sociais. Logo, aos poucos o diálogo, como um meio para a construção de consensos, gradativamente cede espaço à violência sem limites.

A violência instrumentalizada pelo regime transformou-se em terrorismo, o qual, atraiu tanto a ralé quanto os intelectuais. O terrorismo era visto como uma espécie de “expressionismo político”, seguindo a filosofia de que era possível expressar pela violência toda frustração, ressentimento e ódio cego, gerados pela crise entre guerras, pelo fato da Alemanha ter se saído humilhada da Primeira Guerra Mundial. Logo, essa prática serviu principalmente para atrair novos adeptos à causa nazista, que consistia em reconstruir uma Alemanha forte e que conseguisse liderar, através da violência, todo o bloco europeu.

            Como foi dito anteriormente, a propaganda foi outro grande meio encontrado pelo totalitarismo, tanto para se ascender ao poder, quanto para se manter como regime político. Hannah Arendt estabelece a relação entre a propaganda e a doutrina ideológica, sendo a primeira, direcionada tanto externamente, aos países não totalitários, quanto às camadas sociais também não totalitárias.

Já a doutrina ideológica é aliada direta do terror, o qual, cresce junto com os movimentos. Porém, o que chama atenção é que houve uma continuidade e até mesmo um acirramento no emprego do terror mesmo após a ascensão e estabilização do regime totalitário. E o ápice da empregabilidade do terror pelo regime deu-se nos campos de concentração, e nesse ponto, a propaganda totalitária desaparece e somente o terror prevalece. Como bem coloca Hannah Arendt, “o terror como substituto da propaganda alcançou maior importância no nazismo do que no comunismo” (2004, p. 393).

O terror, implementado pelo movimento nazista dirigia-se contra “pequenos funcionários socialistas ou membros influentes dos partidos inimigos” (2004, p.393) e teve efeito na população no sentido de convencê-la de que era mais seguro pertencer ao partido nazista do que ser leal à república.

            Em termos de conteúdo da propaganda nazista e stalinista, a primeira baseava-se pelas “insinuações indiretas, veladas e ameaçadoras contra todos os que não deram ouvidos aos seus ensinamentos” (2004, p. 394). Já a propaganda comunista “ameaça as pessoas com a possibilidade de perderem o trem da história, de se atrasarem irremediavelmente em relação ao tempo” (2004, p. 394).

            A principal fundamentação útil à propaganda totalitária, foi o cientificismo, que se fez presente até o momento da ascensão ao poder, após isso, o regime abandona esse ponto de vista. O uso deturpado da ciência como fundamento para a manipulação das massas tinha como pretensão maior a previsibilidade, apoiada em pressupostos positivistas. Segundo Comte, o futuro pode vir a ser previsto cientificamente, e essa idéia advém do pressuposto de que o poder possui leis objetivas que podem ser descobertas (2004). É o chamado método da “predição infalível”, cujo objetivo era tornar verdadeiras suas profecias e provar ao povo a eficácia do regime, tornando-o inquestionável, já que ele se baseia em preceitos científicos.

Outro aspecto que chama a atenção de Hannah Arendt como um dos meios úteis à propaganda totalitária, é o seu apelo à ficção, sendo algo extremamente buscado pelas massas justamente pela fuga da realidade. Nesse sentido, Arendt destaca, como conseqüência do uso da ficção pela propaganda, a perda do bom senso ou senso comum das massas. Um dos grandes objetivos da propaganda em adotar a ficção seria a construção de uma coerência, ou uma realidade palpável. Segundo a autora:

Antes de tomarem o poder e criarem um mundo à imagem da sua doutrina, os movimentos totalitários invocam esse falso mundo de coerências, que é mais adequado às necessidades da mente humana do que a própria realidade; nele através da pura imaginação, as massas desarraigadas podem sentir-se à vontade e evitar os eternos golpes que a vida e as experiências verdadeiras infligem aos seres humanos e às suas expectativas. A força da propaganda totalitária (...) reside na sua capacidade de isolar as massas do mundo real. (ARENDT, 2004, p. 402).

Nesse sentido, a autora na ultima frase da citação, destaca o fato de que as massas, cada vez mais isoladas e desprovidas de meios de convivência, tornam-se vulneráveis à propaganda totalitária por meio da destruição do senso comum, como foi apontado anteriormente. Esse é um dos pontos de destaque para análise das conseqüências do totalitarismo para o espaço público, que será analisado no último tópico do presente artigo.

E o último grande método apontado por Hannah Arendt na propaganda totalitária, mais especificamente no caso do nazismo, foi o anti-semitismo. Retomando o que foi dito no inicio deste texto: historicamente os judeus foram um grupo protegido pelo poder político, separados da sociedade. Com o advento do Estado-nação e a gradativa crise do mesmo (pós-Primeira Guerra Mundial), os judeus, não como classe, mas como um grupo diferente e alheio à sociedade, foi sendo assimilado pela mesma e com isso, foi-se construindo uma imagem negativa do povo judaico por parte da sociedade. O movimento nazista percebeu essa problemática, de que o judeu era um grupo à parte da sociedade, e construiu um discurso fomentando o ódio ao judeu, como um povo traidor, não pertencente ao povo e culpado pela crise econômica que a Alemanha enfrentava no período entre guerras.

No contexto da propaganda nazista anti-semita, a estratégia utilizada para se responder a questão sobre qual seria o futuro papel do nazismo, foi o emprego dos “Protocolos dos Sábios de Sião”. O uso desses protocolos foi útil na organização das massas em torno do objetivo final, que seria a construção de um império mundial, a partir do principio, alterado pelos nazistas, de que “tudo o que beneficia o povo judaico é moralmente correto e sagrado”, sendo reinterpretado da seguinte forma: “o direito é aquilo que é bom para o povo alemão” (2004, p. 407 e 408).

O ponto forte dos protocolos consiste em fazer a revolução a nível mundial, por meio da dominação dos povos pela organização.  Com isso, os nazistas passavam a idéia, através dos protocolos, de que o primeiro povo a se organizar e combater os judeus, tomarão o lugar deles no mundo (2004, p. 409).

O termo Volksgemeinschaft concentra toda essa visão, fundamentada principalmente na absoluta igualdade dos alemães (igualdade de natureza), tornando os outros povos diferentes e passíveis de serem dominados. (2004, p. 410).

O Isolamento e o fim da esfera pública

Um dos principais sintomas que caracteriza as sociedades contemporâneas é a solidão de massa. Tal fenômeno justifica a sua novidade pelo fato de que antes, a solidão era “sofrida geralmente em certas condições sociais marginais como a velhice, passou a ser, em nosso século, a experiência diária de massas cada vez maiores” (ALBINO, 2008, p.393).  

A solidão cria o ambiente social propício para a instalação de regimes tirânicos devido ao esvaziamento do espaço público - a sociedade perde sua capacidade comunicativa de articular resistências. Portanto, isolamento, no regime totalitário, é a massificação da solidão, piorada pelo medo, pelo terror institucionalizado.

O terror, segundo Arendt, “só pode reinar absolutamente sobre homens que se isolam uns contra os outros e que, portanto, uma das preocupações fundamentais de todo governo tirânico é provocar o isolamento”. O isolamento, segundo ela, é o “solo mais fértil e sempre decorre dele” (2004, p. 526). O que o isolamento causa nas relações sociais é a perda de potência, ou seja, da capacidade inata dos indivíduos de se articularem discursivamente. A sociedade isolada não se comunica, ela se deteriora pela perda de poder[4]. Para Arendt, os homens isolados são impotentes por definição” (2004, p. 526), ou seja, são incapazes de agir em conjunto e provocarem poder. Devido à inoperância do agir em conjunto fruto do isolamento, uma sociedade constituída por homens isolados é chamada pela autora de pré-totalitária.            

            Em definições arendtianas, um homem fabricante de coisas artificiais pode ser solitário, mas um animal laborans além de solitário é isolado de convivência. Pois o único interesse que guia as suas atividades é se manter vivo, isolando-se de outros seres humanos para isso. A massa corresponde a “laborização” social, em que indivíduos isolados com seus sentimentos de ódio, humilhação, solidão, etc., fornecem a chave de entrada para a doutrina totalitária. Mas é principalmente por meio do sentimento de solidão que o totalitarismo penetra na esfera da vida íntima dos indivíduos.

O termo “total” define a especificidade da tirania causada pelo totalitarismo em relação a outros governos tirânicos na história, porque ele invade inclusive e principalmente as esferas íntimas do ser humano, destruindo várias potencialidades humanas, sendo uma delas, a comunicativa: a faculdade humana de perceber e se relacionar com o outro e construir possibilidades para um mundo de convivência mútua. Logo, infere-se que a falta de comunicação, ou ao menos, a deturpação dela, provoca o ambiente para a instalação de regimes fundamentados na banalização do mal.

Até o presente momento, o texto preocupou-se em destacar as principais abordagens da obra “Origens do Totalitarismo” tendo em vista a relevância para a compreensão final do conceito de espaço público. Apesar deste conceito não ter sido o tema central da obra, percebe-se que a importância dele reside no fato de que se uma sociedade não construir condições para o espaço público, ela perde seu caráter de pluralidade, fazendo com que o ódio, nutrido na esfera privada, prevaleça e legitime o terror provocado pelo regime.

O vazio na participação política provocado pelo esvaziamento do espaço público destrói qualquer possibilidade de cidadania e junto com ela, formas de contestação social. A sociedade impotente, sem capacidade de articular-se discursivamente, legitimou o regime pelo comodismo privado, pela perda do interesse em se preocupar com questões políticas. 

Essa falta de preocupação não ocorre somente no regime totalitário, mas principalmente antes dele. As pessoas privadas que não se reúnem publicamente contribuem para as condições de se instalar uma tirania. O homem que suspeita do seu vizinho ou teme em não retornar para casa após o trabalho, enfim, o medo da vida pública faz com que haja uma perda gradativa da comunicação como meio de perceber o mundo e criar formas de compartilhá-lo.

O domínio totalitário repousava na falta de participação política gerada pelo esvaziamento do espaço público devido à privatização social, e os meios de comunicação desempenharam um papel fundamental na busca pela legitimidade do regime por meio da propaganda. A massificação da sociedade alemã foi provocada principalmente pela propaganda totalitária que conseguiu colar no imaginário das pessoas, os interesses do totalitarismo com os sentimentos nutridos na esfera da solidão privada. A promessa totalitária de recuperar a alta estima nacional pelo “retorno” da Alemanha no cenário europeu depois que ela saiu “humilhada” da Primeira Guerra Mundial, é um exemplo do êxito totalitário em penetrar na vida intima das pessoas e convidá-las à “participar” do regime através da aceitação passiva. Outro exemplo é o fomento do ódio ao judeu através da culpabilidade pela crise econômica alemã.

É importante reconhecer a eficiência, de um lado, dos meios técnicos de comunicação responsáveis pela produção e veiculação da propaganda, e do outro, e principalmente, da mensagem, ou os interesses que se escondiam atrás do “cientifisismo”, por exemplo. Aqui não interessa uma análise dos pontos que “fundamentavam” a propaganda nazista, mas sim, os efeitos sociais, e mais especificamente no que diz respeito à participação política, ou a falta da mesma.

Nesse sentido, a falta de participação política gerada pelo esvaziamento da esfera pública e incentivado pelos meios de comunicação, é a condição social propícia á tirania. Esse contexto, apesar da sua especificidade alemã, até que ponto não se aproxima das atuais realidades das sociedades contemporâneas (como foi observado no início deste tópico)? A falta de participação política é típica de sociedades em que os interesses da esfera privada se sobrepõem ás da pública. Com isso, várias questões importantes são formuladas a partir dessa linha de raciocínio: até que ponto a democracia da maioria é um regime que fomenta, que incentiva a participação política?

O que está em jogo é se as condições propícias que geraram o totalitarismo não estão sendo criadas nas sociedades atuais. Ou seja, qual o papel do espaço público nos regimes democráticos modernos? Já que a única forma de evitar um regime tirânico é conferir poder comunicativo às instituições sociais por meio dos espaços públicos, então, qual a efetividade dos mesmos? 

Essas questões são pertinentes na medida em que colocam em conflito, de um lado, o regime democrático de massas (que seria a alternativa à tirania) e do outro a participação política que, calcada na cidadania, deve conferir poder às instituições sociais. Porém, é preciso considerar que há uma variável a mais entre a relação conflituosa entre os dois pólos apontados acima já que ela exerceu papel fundamental para a ascensão da tirania: os meios de comunicação de massa. E nesse sentido, qual o papel dos mass media no conflito entre democracia e participação política? Ou seja, a presente análise não pretende dar por encerrado esse debate, logo, se faz necessário outros trabalhos afim de investigar com mais propriedade cada questão levantada acima no intuito de enriquecer a discussão em torno da temática acerca do espaço público e participação política no mundo contemporâneo.

Referências Bibliográficas:

ARENDT, Hannah (1951) Origens do Totalitarismo: Anti-semitismo, Imperialismo e Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004  

ARENDT, Hannah (1954) Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2005  

ARENDT, Hannah (1963) Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.   

ARENDT, Hannah (1958) A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004  

BOARATTI, André. Political participation, betwen debate and visibility: a study of media and citizenship, from Hannah Arendt and Habermas. 2009. 58 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2009.

HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984  

HABERMAS, Jürgen (1976) O conceito de poder em Hannah Arendt. In: FREITAG, Barbara; ROUANET, Sérgio P. (orgs.) Habermas. São Paulo : Ática, 1993. (p. 100- 118)    

LAFER, Celso Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. São Paulo: Paz e Terra, 2003.   

[1]Extraído da Dissertação de Mestrado em Comunicação Social (linha de pesquisa: mídia e cidadania) da Universidade Federal de Goiás. Título: A participação política, entre o debate e a visibilidade: um estudo de mídia e cidadania, a partir de Hannah Arendt e Habermas.

[2] Quanto ás raízes do totalitarismo de esquerda (soviético), Arendt discute essas questões em obras que ainda não foram traduzidas para o português, tais como: Karl Marx and the Tradition of Political Thought; Karl Marx and the Tradition of Western Political Thought: the Modern Challenge to Tradition e Karl Marx and the Tradition of Western Political Thought: The Modern Challenge to Tradition (2ª versão). Em português existem duas obras escritas por comentadores de Arendt que tratam desta questão: 1) André Duarte – O pensamento à sombra da ruptura – política e filosofia em Hannah Arendt (Paz e Terra, 2000) e 2) Hannah Arendt  & Karl Marx – O mundo do trabalho (Eugênia Sales Wagner, Ateliê Editorial, 2000).

[3] O conceito de Banalidade do Mal e a forma como ele é construído no pensamento de Arendt, será discutido posteriormente.

[4] O conceito de poder em Hannah Arendt será abordado num momento posterior.

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Atualizado em: Sáb 4 Out 2014

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