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LINHA 9

Wanderson Carlos deixava a fábrica às vinte e duas horas e trinta minutos e cruzava dois quarteirões para alcançar a estação férrea. Dali embarcava numa composição que estacionava na plataforma às vinte e três horas e cinco minutos, exatamente sem nunca atrasar. Aliás, uma única vez isso ocorrera por conta de um acidente na malha ferroviária... Essa era a rotina de um rapaz de 25 anos, solteiro, operador de máquinas numa empresa termoplástica na Zona Sul de São Paulo.  Tinha em suas mãos o boletim distribuído ao pessoal do setor de produção naquela tarde. Nele, dizia que no primeiro semestre a receita líquida da termoplástica avançou em milhões, e o resultado financeiro subiu 300 por cento. Nas fotos, executivos sorridentes felicitavam os operários e anunciavam que o trabalho é a forma mais aceitável de organizar a vida de uma pessoa e de sua família; celebravam a participação dos trabalhadores nos resultados e a integração entre o capital e o trabalho como incentivo à produtividade...

Wanderson Carlos seguia embarcado no trem que deslizava margeando o espelho que se apresentava nas águas negras do Rio Pinheiros. Aquela visão lhe mostrava uma metrópole complicada que se erguia verticalizada a arranhar o céu profundo. As luzes se derramavam banhando o negrume da noite com um esparge vibrante de cores fascinantes num luzidio vivo de verdadeira magia. Os empreendimentos bilionários em torres residenciais e comerciais, shoppings, hotéis e jardins tratados e limpos lhe causavam um sentimento de tristeza e melancolia, sensações de angústia e desânimos ao se lembrar do terreno irregular nas encostas do Jardim Aliança, às margens do Córrego Rico na Zona Norte de Osasco, onde estava sua pequena casa inacabada como centenas de outras, num ambiente sujo, infestado de animais transmissores de doenças. Um contraste cortante que lhe apertava o peito. Os executivos sorridentes das fotos no boletim, certamente moravam naquele lugar. Isoladas da miséria do mundo, suas famílias desfrutavam o paraíso artificial naquelas ilhas iluminadas, e seus filhos brincavam naqueles parques limpos, frequentavam os shoppings, estudavam em colégios caros e cresciam sadios e preparados para ocupar os lugares mais aprazíveis numa sociedade de classes tão diferentes... 

Para melhorar sua participação nos lucros da empresa, teria que ter uma posição entre os executivos sorridentes. Assim, também frequentaria os escritórios nas torres iluminadas e, até poderia ter um apartamento naquelas ilhas. Era dedicado na função técnica de operador de máquinas, mas por mais que espremesse a mente, não conseguia achar um caminho... As ilhas iluminadas com seus altíssimos e suntuosos edifícios futuristas lhe fascinavam. Certa ocasião, após uma reunião de setor, aproximou-se de um jovem executivo e tentou puxar conversa... Mas aquele não lhe deu importância. Será que tinha de se graduar e fazer cursos de especialização? Quais as chaves que poderiam abrir as portas daquele mundo de luzes paradisíacas? Questionamentos que habitavam sua mente febril... Assim, seguia cansado e semi-adormecido ensimesmado em mil pensamentos... Após cruzar 18 estações, num percurso de pouco menos de uma hora, desembarca na Estação Osasco, sobe e desce a quase correr as escadarias e segue para a Praça Antônio Menck, de onde continuava a viagem num coletivo quase vazio.

Um vento frio soprava quando desembarcou do ônibus, e seguiu na direção da encosta onde estava sua residência. No início daquela madrugada, causou-lhe estranheza o silêncio profundo naquele espaço urbano onde não se avistava uma alma viva ao redor. Um pressentimento de mau agouro se espalhava como um perfume pelas ruas vazias de luzes vacilantes... Apressou os passos para alcançar a construção inacabada num terreno irregular às margens do córrego. Nesse instante, um automóvel preto surge veloz e rasga a avenida avançando em sua direção. Seu coração dispara e seu corpo treme. Limpa o suor da testa e alivia-se do medo quando o veículo passa apressado e segue cantando pneus... 

Cruzou o portão improvisado, chegou à sala, alcançou o quarto e logo estava banhando-se e se recompondo do susto passado há pouco. Voltou à sala, ligou a televisão, foi à cozinha e enquanto preparava o jantar para levar ao forno, ouviu: “Hoje, quinta-feira, 13 de agosto, às 8h49 da noite, de acordo com a Polícia Militar, 10 pessoas foram baleadas em um bar no Jardim Munhoz Júnior...”. Viu as imagens que mostravam as luzes de viaturas policias piscando incessante-mente e se lembrou do paraíso artificial das ilhas iluminadas que diferenciam realidades...
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Atualizado em: Seg 7 Mar 2016

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