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Sorte de assalariado

Antigamente o banheiro da rodoviária costumava ser a visão do inferno. Mal iluminado, sem manutenção, vasos imundos e cestos de lixo repletos de papel que transbordava em tenebrosas cascatas no entorno dando um ar realmente repugnante a um dos espaços mais concorridos da construção. Um lugar de passagem, esquecido pela administração.

Ganhou notória atenção devido ao crescente número de turistas e ao desejo de dar uma boa imagem a quem chega na cidade, mas todo o terminal está ganhando uma nova cara e não é possível esperar menos do que isso para aquele espaço tão importante e tão pouco visto. Pisos de granito, iluminação decente, pintura e ladrilhos nas paredes! Torneiras e descargas de vaso ecológicas, secador elétrico para as mãos e mais atenção com a limpeza e a manutenção.

Não faz muito tempo em que o banheiro ia sendo interditado aos poucos por falta de atenção, de peças e de mão de obra para a manutenção, mas agora é diferente. Temos um protocolo a seguir, relatórios a preencher e nossa voz ressoa pela administração como coisa importante. Uma torneira quebrada é vista como prioridade e passageiro insatisfeito é coisa séria! Eu só gostaria que toda a atenção fosse ampliada para os salários e benefícios, mas parece que o pessoal invisível da manutenção e da limpeza passa desapercebido em meio a todo o aparato tecnológico e de controle.

Dizem que já foi pior, mas deste tempo eu pouco posso dizer, não estava aqui antes. Cheguei com a nova leva de terceirizados que seguem invisíveis pelos corredores com esfregão na mão; no mesmo período em que comecei a interditar partes de mim mesmo, exilando-me na solitária vida...

Na realidade não tenho muito a reclamar, recebo o salário em dia, carteira assinada, férias, décimo terceiro salário, auxílio alimentação, vale transporte e plano de saúde; É a convenção da classe, mas nunca me preocupei com as questões coletivas, prefiro seguir no plano individual, preocupado com a poeira sob os meus pés e com os vasos entupidos...

Não há muito o que fazer nestes casos. Algumas bombadas com o poderoso artefato de boca preta e proporções gigantescas; a pressão aplicada deve ser suficiente para fazer tudo funcionar, aí então resta a desagradável missão de limpar e esterilizar o box onde o vaso se encontra. Mas nem sempre é assim que funciona.

Lembro-me do dia em que Lucília foi executada por bala sem dono. Protocolo seguido à risca; artefatos de boca preta espalhados pela comunidade, pressão em todas as ruas, ruelas, travessas e becos. Estampidos ouvidos a quilômetros de distância! Naquela noite tudo fluiu, inclusive a preciosa vida de assalariados dedicados que voltavam da batalha insalubre pelo pão de cada dia. As calçadas inundadas pela vida que passou a verter com facilidade exigindo os habituais procedimentos de esterilização e registro anunciavam o fim de mais uma ação!

Mas desta vez toda a pressão do mundo foi insuficiente para resolver a questão; a interdição veio como paliativo ao desconforto dos usuários, que, a partir de agora, contariam com um vaso a menos para o uso por algum tempo.

Nestes casos imprevistos o trabalho dobra. Limpeza e esterilização antes da interdição, registro fotográfico, relatórios e lacre. Após a solução, nova esterilização, registro fotográfico e relatórios...

Talvez houvesse a comemoração da reinauguração do box, mas acredito que seria exagero de uma alma amargurada com tanta frescura por causa de uma privada entupida.

Na manhã seguinte à operação de desobstrução houve comoção e cobertura da mídia, uma espécie de macabra celebração pelo sucesso da operação; mas minha vida parou e ninguém notou. Ficou em suspenso, junto com os panos de chão encardidos que uma vez postos em ação, jamais limparão...

Desta vez apenas atrasei meu cronograma de faxina por conta do evento e acabei sem minha hora do almoço, rotina de quem vive sob a supervisão de um relógio frio que possui em mãos um cronograma de trabalho a ser cumprido.

Mas posso considerar-me um sujeito de sorte, se é que isto existe entre aqueles que vivem chumbados aos esfregões da vida. O atraso no cronograma veio justificado por relatório preenchido à altura dos órgãos de inteligência do estado e não fui instado à categoria de trabalhador desleixado. Sem ter sido rebaixado, contentei-me em seguir altivo e com a barriga vazia pelo resto da tarde.

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Atualizado em: Seg 29 Dez 2014

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