A sensação de que há um “assunto pendente”, algo mal resolvido, me corrói. Fico atordoada pela ideia de que algo atrelado a mim ainda pode ser fruto de incômodo para outrem. Detesto imbróglios, questões mal resolvidas e situações mal interpretadas.
Você sabia muito bem disso e foi justamente o que te levou a aceitar o meu convite. Tenho certeza de que reconheceu a minha gana, tornar nítidos os motins da ruptura. Sabia que eu não te chamaria para conversar, especialmente naquela data, sem mais nem menos.
Havia passado dias consideráveis matutando aquele momento. Enquanto detalhava a mim mesma tudo o que deveria elucidar, acabei muita vezes me remetendo à tão planejada noite por “lucidez”.
Independente do caminhar da nossa coisa, da ruptura, de toda a estação… naquela noite, eu havia planejado te esclarecer e pontuar o universo e o mundo. Sobretudo, para tornar evidente o que você pareceu não compreender quanto ao apagão da nossa cidade. Por respeito a você e ao que eu sentia.
O meu intuito foi deixar nós dois às claras. A minha intenção era também te ouvir, depois de meses para se olhar com distância a nossa cidade. Pretendia aferir sua visão na tentativa de saber se ela ainda te fazia sentido, descobrir se o seu sentir ainda prevalecia. Sobretudo, esclarecer quanto ao meu sentir.
Confesso, havia marcado o encontro visando resgatar o “nós” e não somente o “eu e você”. Fui até o Recanto pensando em retaliação. Retaliar o elo, resgatar o vínculo
Felizmente, enquanto a noite ainda era de nitidez, sob a luz da lua, consegui fazer isso. Tudo saiu perfeito. Óbvio, não segui qualquer roteiro. Explanei o que senti que precisava. Falei tudo do fundo do coração. Chorei de uma forma desmedida. Chorei por amor. Justamente por isso, ainda me remeto ao inicio daquela noite por “lucidez”.
Porém, sabe o que aconteceu?
Bom, você sabe muito bem. Disso, eu não tenho duvidas. Tenho certeza que o inicio daquela noite foi incinerado em sua memória. Não te julgo se o epilogo final se tratar do que marcará pra sempre o seu 11 de Junho.
De um instante a outro, tudo o que eu havia acabado de fazer se desmanchou. Enquanto sentia paz comigo mesma pelo pingos nos “i”s, enquanto o vigor preenchia a nossa cidade…. na travessia daquela rua, sob a luz daquele farol, nos deparamos com outro apagão.
Mais uma vez o seu não confiar em mim metamorfoseou uma noite que eu tanto havia planejado, noite que escancarei com a maior pureza como a ruptura estava sendo dolorosa, na madrugada mais desagradável dos nossos dias.
A ponta de esperança que brotara no início daquela noite, foi esfarelada. Naqueles minutos, constatei com pesar que diante de qualquer situação de desconforto, você agiria daquela maneira. Movido por um imediatismo cego. Nada mudaria.
Com decepção, reconheci isso segundos antes do estopim. Exatamente quando me questionou e me impôs uma conduta. Justamente um dos pontos que abalava a nossa coisa não iria mudar. Aliás, exatamente o que eu havia acabado de apontar e desprezar — enquanto a noite ainda era de “lucidez”.
Custava parar e pensar? Fazer, uma única vez, o que eu te pedia?
Não bastasse, o que aconteceu depois só me provou que, independente de qualquer coisa, aquilo não só iria perdurar, como também — com o transcurso do tempo — ficaria ainda mais forte, incisivo e saliente de uma forma incrivelmente ruim.
No mais, constatei que sempre teria de implorar para ser ouvida. Exatamente nada havia mudado desde a ruptura. Costumava falar muito para alguém que nunca esteve disposto a me ouvir.
É duro afirmar que, ainda no caminhar da nossa coisa, eu percebia isso e dizia a ti e a mim mesma frases como: “não vou tentar provar mais nada”, “não vou me explicar mais, sei que de nada adianta”, “pense o que quiser, prometi não mais me justificar”, “eu não vou mais nada”.
No entanto, a minha gana em contornar a situação e escancarar que aquilo tudo era em vão sempre foi maior que eu. Não Importava o quanto eu estivesse de saco cheio daquilo, sempre me vi descartando a minha afirmação e agindo da forma oposta. Me rastejando para ser ouvida. Na segunda parte daquela noite, não foi diferente.
A situação foi tão esdrúxula que me vi tentando provar algo que eu sequer deveria. Eu sempre tinha que provar. Não bastasse, quando raramente era ouvida, a minha fala de nada adiantava, nunca foi valorada.
Logo após a nitidez, em segundos, você agiu justamente da forma que eu havia acabado de repudiar. No entanto, ainda assim, foi diferente. Havia algo mais. Me deparei com um estranho e ele me causou medo.
Você estava caminhando, novamente, para a escuridão da noite.
Vi uma face sua que me deixou assustada. Não sei. Você é assim. É de você. Eu não sei explicar. Juro que, naquela noite, tive medo, pela sua expressão e pela sua forma de falar. Não sei se o seu agir foi motivado somente por aquela situação mal interpretada, acredito que foi mais um ponto.
Sem razão para tanto, o que jamais deveria acontecer no suporte de qualquer amor, aconteceu. Exatamente aquilo que eu mais temia. Entre nós, perdeu-se o respeito e isso não sai da minha mente.
No final das contas, a noite se desfechou com uma situação mal interpretada. Comigo, mais uma vez, me humilhando para ser ouvida. Implorando para alguém não me vê de uma forma que foge totalmente de quem sou. Implorando para não ser vista de uma forma que detestei. Argumentando para provar algo que eu não deveria precisar provar, a minha moralidade.
Pedi desculpas antes antes mesmo de conversarmos para esclarecer o imbróglio que havia acabado de surgir. Pois, repentinamente caí em mim. Recordei o caminhar da nossa coisa, em como pequenas situações eram transformadas em grotescos problemas; como pensamos, vemos, agimos e valorizamos tudo de uma forma incrivelmente distinta.
Olhei o entorno da nossa cidade, de um instante a outro, me arrepiei dos pés à nuca. O eclipse chegara. Senti que trinta dias de noite se aproximavam. O exato momento que aferi, com imenso pesar, como equivocadamente você havia interpretado. No exato segundo em que você mudou todo seu espectro, constatei de imediato. Os seus traço, o olhar, a fala e o teu jeito enfatizavam.
Pressenti que agiria da mesmíssima forma que eu, aos prantos, enquanto a noite ainda era de “nitidez”, havia acabado de menosprezar. Percebi que não estaria disposto a me ouvir e “concretizaria”, para si, algo que inocorreu. Sabia que se recusaria a me ouvir.
Todo um conglomerado de fatos e o teu jeito imediatista o levaram a fazer algo impetuoso, me desrespeitar.
Nos microssegundos que me permitiu falar, aparentemente se dispondo a ouvir, cortava a minha fala enquanto se manifestava persistindo nos mesmos julgamentos.
Foi nojento você projetar que eu seria capaz de tanto. Tenho princípios e valores, justamente pela existência deles, jamais poderia até mesmo cogitar.
Buscando compreender como uma garoa havia se transformado num tornado, com medo, enquanto sussurrava a mim mesma “deus, ele só pode ter ficado louco”, tentei fazer com que você realmente visualizasse tudo, nos seus exatos termos.
Pelejei para que me ouvisse, principalmente, para que se propusesse a ver da minha forma. Tentando te fazer entender, me desmanchei com cada gota daquela chuva ácida. De um segundo a outro, o meu entorno se destruía.
Te ver assim me fez cogitar o meu agir. Óbvio. Ainda que eu não tenha tido qualquer má pretensão, tão menos o que você alegou. Olhei com distância. Me coloquei no seu lugar.
Desesperada, sem ter a mínima ideia de como nos salvar dos caos, cegamente me vi tomada pela histeria. Enquanto segurava o seu rosto com ferocidade, a ponto de ver cada um dos teus traços rentes aos meus, na fútil tentativa de te trazer de volta para a realidade, eu gritava palavras na sua cara. Cada palavra forte, pesada… cada uma das minhas frases densas, foram dotadas de imenso temor e angustia.
Desejei com todas as minhas forças que isso fosse capaz de te dar lucidez. Te vi num pesadelo, imerso num mundo e eu não conseguia te encontrar. Me vi pequena e frágil. O nosso entorno estava desmoronando e eu fui incapaz de salvar você.
Pude ver, nitidamente, ao som de “Mazzy Star — Fade Into You”, o nosso olimpo transformando-se em ruínas. O soar do despencar de cada pilar era uma facada no meu coração. Me desesperei com a ideia de olhar a trilha e vê-la desaparecer.
Naquela noite, reconheci da pior forma o quanto o amor pode machucar.
Você, por vez, exatamente na mesma coisa. Teu olhar me dizia “você está delirando”, como se eu quem estivesse num mundo de fantasias e somente naquele agora vendo a realidade. Ouvi uma série de ofensas, as quais, aliás, recordo com fidúcia.
Sei que tudo o que ouvi foi pautado não somente num imediatismo cego. Foram palavras ditas por alguém que estava indo na escuridão da noite e não importava o quanto eu corresse, não conseguia alcançar. Eu jamais havia estado naquele lugar.
Você não só se desfez a ponto de ficar cego, você se perdeu na escuridão daquela noite. Estranhamente te vi desaparecendo-se em si mesmo. Até que, nos destroços, não mais pude te tocar, sentir ou enxergar. Estava somente um estranho diante de mim.
E ainda assim, eu ansiava enfrentá-lo, pois sabia que você estava ali, em algum lugar. Queria te salvar dos devaneios. Faria o impossível para que não fosse coberto pelo negro daquele lugar.
Desejava ainda mais que os golpes cessassem. Não mais ser apunhalada. Desejava, sobretudo, gritar para o mundo, gritar e te fazer acordar. Parar.
Se as coisas que me foram ditas tivessem sido proferidas por qualquer pessoa, não teria me suscitado exatamente nada, pois tenho convicção de quem sou, sei o que fiz e o que jamais seria capaz.
O árduo foi por ser justamente você. A pessoa quem fiz refúgio e acreditei que sequer por um instante pensaria aquelas coisas a meu respeito. Colocar na mesma oração aqueles adjetivos e o meu nome. Quem imaginei que, ao contrário, diante de alegações sujas quanto ao meu eu, diria rigorosamente o extremo oposto, justamente por me conhecer.
O corte mais incisivo foi por ter sido uma das pessoas com quem eu muito me importava. O árduo foi cada palavra vir acompanhada do teu timbre. Pois, ainda que eu visse um estranho diante de mim, ainda se tratava do timbre do meu mais insano e desmedido amor.
Agiu de uma forma como quem me acusava de algo que repudio do princípio ao fim. Imputando-me um crime que eu jamais poderia executar, aliás, que sequer seria capaz de cogitar ou premeditar. Me desesperei com a ideia de VOCÊ atrelar aquilo a mim. Principalmente, por me fazer alguém quem não sou.
Desprezou que o próprio episódio mal interpretado confirmava que eu havia estagnado no tempo o “eu e você”. Sem contar o fato de tudo que ainda pulsava em mim. Sem contar que mesmo com a ruptura, de uma hora para a outra, você não havia se tornado qualquer pessoa. Sou muito fiel a mim mesma e ao que sinto.
Justamente por tudo o que compartilhei. Pela nossa troca. Por cada uma das luzes, travessas e edifícios da nossa cidade, você conhecia como a palma da sua mão cada fresta minha. Tenho certeza que deu para perceber que aqueles adjetivos (você sabe exatamente quais) induzem coisas que não condizem comigo.
Aliás, sou MULHER o suficiente para assumir os meus erros. Principalmente, para me conhecer, assim, engolir e “levar na cara” as consequências dos meu erros. Não me importaria se me julgassem por quem realmente sou ou por algo que fiz. Mas, não admito ser rotulada por algo que destoa completamente da realidade. Óbvio, se tratando ainda de um apontamento partindo de alguém com quem me importo, me fere e com motivo.
Sei me impor. Sei segregar as coisas. Infelizmente, à época, por me importar muito com o que você pensava a meu respeito, tentando nos salvar da mácula, agi no centro da cidade como se eu tivesse culpa. Como se tudo o que você falou ou pensou sobre aquilo fosse verdade.
Estava e estou saturada. Deixei bem claro que as coisas que pensou a meu respeito foi uma quimera. Jamais faria tal coisa. Jamais. Ferem os meus valores e princípios. Traí o que eu sinto. Traí a mim mesma.
Foi insano como de um instante a outro ateou fogo na nossa cidade. Se o seu intuito era me incendiar, conseguiu. Naquela noite, eu descobri como alguém poder ser o céu e o inferno de outro. Reconheci porquê dizem que o amor e o ódio são o mesmo sentimentos no extremo de seus pólos, o bom e o ruim, respectivamente.
Confesso. Demorei dias consideráveis para digerir o ocorrido. Muitas vezes questionei se as coisas podres que me foram remetidas tratavam-se do que você sempre pensou e achou o momento oportuno para descarregar. Matutei até mesmo pontos que acabavam por respaldar isso, em razão de tanto, memorei como detestava alguns detalhes frágeis do meu jeito, coisas simples.
Absolutamente nada, tão menos a minha “simpatia exagerada” deveria ser usada para fazer presunções equivocadas a meu respeito. Não sei o que via em mim de tão negativo para causar tamanha desconfiança a ponto de te fazer pensar e/ou cogitar tamanho desatino.
Naquela noite, suas alegações, assim como o seu agir, induziram que sou uma mulher “fácil” (estou ciente do peso dessa fala e é exatamente esse o peso que você impôs). No desprezível linguajar popular masculino, me fez “qualquer uma”. Senti desgosto e desprezo ao constatar tamanha imundice.
Outrossim, ainda que eu tenha lhe dito “nunca vou esquecer essas palavras”, ouvi um árduo “e você acha que eu ligo?”.
E não ouse dizer “se te atinge, acatou porque é seu”. DETESTO ser tratada e julgada de uma forma que não mereço.
Sei o quanto a sociedade é podre. Vivo, sobretudo, ainda que sem perceber, constantemente, para qualquer pessoa, justificando e explicando meu agir e escolhas, sem precisar — sem dever isso. Justamente para jamais ser rotulada de um forma que repudio. Para não ser rotulada como você fez. Para não me fazerem quem não sou. Eu quero esculpir a mim mesma, isso não cabe aos outros.
Não digo que você não tinha o direito de estar chateado. Aliás, em nenhum momento disse que não tinha esse direito. Não fui hipócrita. Eu pedi desculpas. Mesmo tendo plena convicção sobre o meu agir. Pedi desculpas de antemão para salvar o epílogo de nitidez daquela noite, pois vi tudo desaguando por uma situação mal interpretada.
Confesso, me sinto culpada. No seu lugar, tenho plena convicção de que me sentiria desconfortável, ainda que não visse o que você diz “ver”. Justamente por reconhecer isso que eu implorei para ser ouvida.
Sei que falhei, pois, ainda que eu não tenha tido qualquer má intenção, de forma repentina havia cogitado a possibilidade de ocasionar esse imbróglio. Uma situação mal interpretada. Balbuciei para mim mesma que você poderia distorcer tudo ao extremo no polo ruim. Era algo, por mim, esperado.
Mas, tolamente acreditei que, como sempre, conversaríamos e pronto. Imaginei exatamente o contrário. Acreditei que veria a minha intenção e ficaria “grato” pela existência dela, resgatar o “nós” ou ao menos não deixar se diluir o “eu e você”.
Admito. Somente depois da sua reação que fui perspicaz. Concordo que eu poderia ter usado outro mecanismo. Não que justifique, hoje, penso de forma distinta, mas, à época fui sim ingênua, boba… não sei. Reitero que não tive intenção errada alguma, sequer havia percebido o contrário, acredito que a recíproca foi a mesma.
No mais, afastando a minha gana quanto a nós, quanto ao restante, principalmente por se tratar de algo pequeno, que não me importava ou sequer detinha valor, eu poderia ter evitado. Me sinto mal. Me desculpa.
Independente do meu agir sem mais pretensões, independente do cerne ser você, ainda hoje sou despedaçada por me sentir culpada por parte do que você sentiu.
Recordo claramente do seu “você não vê problema em nada”. Não se tratou disso. Eu percebi tudo. Vi até demais. Como eu mesma te disse, vi problema por ter cogitado que aquilo iria te causar incômodo, sobretudo, por ter englobado algo que eu poderia ter evitado. Me sinto culpada por ter premeditado e você ter sido afetado exatamente nesse sentido.
O meu sentimento de culpa sempre esteve atrelado ao tipo de problema que constatei. Não vejo apenas os meus erros e acertos, também reconheço os meus deslizes.
Olhando com distância, refletindo quanto ao meu agir e pensando em tudo que te expus e mostrei com franqueza, na inversão dos papéis, digo com convicção que eu não teria qualquer insegurança. No entanto, somos pessoas diferentes, não te julgo por aquilo ter te trago um embaraço emocional.
Mas, o fato de eu sentir culpa nesse sentido não significa que eu acate os seus pensamentos nojentos. Aliás, reitero que não menti em nenhum instante, mesmo com o advento da ruptura, jamais ousaria abandonar o pacto, “nus e crus”.
Tendo consciência do meu agir, realmente não vi nem um pouco próximo a ti. Constatei problema por uma questão sentimental, pelo vínculo que tivemos e que, à época, eu acreditei que ainda possuíamos. Mas não o problema que você viu, não dá forma que você interpretou.
Meu bem, eu vi a situação. Vi até demais. Vi principalmente os pontos mais salientes que você aparentou ser incapaz de visualizar. Posteriormente, pontuei cada um deles, esclarecendo tentando sanar o vício que acometia aquela situação - do princípio ao fim, por ti, má interpretada.
Ainda reconhecendo que, pensando na nossa coisa, me pondo no seu lugar — preso num mundo de ilusões e movido por um imediatismo cego — o ocorrido seria sim de desconforto.
Assumindo o seu papel, imaginando e “visualizando” exatamente como você aduz , tenho convicção de que eu sentiria coisas dolorosas. Que o meu corpo seria tomado por uma mácula. Que seria dotada de sentimentos ruins - mesmo sem fazer ideia de quais seriam. Portanto, não ouso arguir que você não teria razão em ficar magoado ou mesmo me espantar por você ter sentindo fúria.
Exatamente por essa reflexão, ainda que eu não tenha tido intenção de causar aquilo, me desculpei. Me desculpei pela mácula que, sem querer, senti que te causei. Me desculpei mesmo tendo consciência do meu agir e sendo sensata o suficiente para saber exatamente o que a ruptura significava.
Porém, no seu lugar, apesar dos pesares, eu jamais seria capaz de te ferir da forma como você machucou. Desrespeitar quem amo, burlar as regras da minha própria cidade, sobretudo, ferir. Portanto, ainda me colocando no seu papel, me enoja recordar que você não só pensou, como falou, algo tão pútrido de mim.
Naquele eclipse, pouco a pouco as chamas da nossa cidade ficaram ainda mais calorosas e o vermelho mais insano. Deparei-me com o estopim. O extremo do meu limite. Havia cansado. Estava cansada de ouvir absurdos. Cansada de tentar futilmente te arrancar do negro daquele lugar, de te segurar e puxar para onde havia luz e te fazer enxergar as coisas.
Despedi tanta força física, emocional e psicológica que depois me senti arrasada. Cansada como se estivesse enfrentado uma batalha. Não, não travei uma batalha. Eu fui incinerada. Naquela noite eu gritei. Gritei com tanta força a ponto de sequer ecoar som. Gritei porque, naquele transtorno, as emoções e sentimentos mais robustos e intensos permeavam o meu corpo.
Estava em guerra com o meu mais insano e desmedido amor e isso me dilacerou. Gritei para você ficar, voltar, enxergar. Gritei, sobretudo, para expulsar cada pedaço e rastro do que percorria o meu corpo. Gritei vendo as brasas da nossa cidade. Gritei pelo meu amor.
Sem saber o que fazer, apelei. Corri enquanto queimava, implorando para ser ouvida. Gritei como se a minha voz pudesse afastar o estranho e te fazer acordar, internamente sibilava a mim mesma “ele está lá, em algum lugar”.
Mesmo depois que a cidade estava tomada pelo cinza, eu tentei. Tentei. Mas, acabei me rendendo após sentir o peso daquele olhar, dotado de fúria e desprezo. O olhar de um estranho. Exato instante que tudo se desfez.
Não me restava mais nada. Tudo havia se desmanchado. A nossa cidade perdeu-se em algum lugar no tempo. Fui embora frustrada.
Posteriormente, não bastasse, quando finalmente se propôs ao diálogo, me surpreendia cada vez mais com um absurdo diferente e de uma forma incrivelmente ruim.
Outrossim, o que eu dissesse ou fizesse já não mais te importava. Deixou muito claro que a minha fala não seria valorada, o seu “promete não fazer mais isso”, ainda na mesma madrugada, me escancarou isso. Você, notadamente, estava de saco cheio de justificativas e explicações, não sentiu sinceridade em mim, ainda apontou cinismo.
Sabe qual foi outro ponto ainda mais frustrante? Você recordou, assumiu, ter dito coisas imundas e ainda ousou colocar um “Foi uma simples briga. Deveria ter ficado entre nós. Isso está se tornando grande e não estou entendendo. Não era para ser assim. Eu estava com raiva e agi sem pensar”.
Me desagradou ainda mais te ver, mesmo que na tentativa de uma retaliação ou consenso quanto ao episódio, minimizando algo que nunca deveria ter ocorrido. Não sei se presenciar episódios como aquele te eram comuns. Não pude compreender como não conseguia entender que aquilo era inadmissível. Achei um absurdo o seu posicionamento. Desprezivelmente se pronunciou normalizando o inaceitável.
Naquela altura do campeonato, depois do que eu mais temia ter acontecido (perde-se o respeito), ouvir um pedido de desculpas ou arrependimento já não mais me importavam. A nossa cidade já havia se desfeito.
Fui dominada por um sentimento ruim e que ainda era desconhecido, foi a primeira vez que eu sentia decepção. Decepção com quem amava. Enquanto a minha mente vagava na última memória da nossa cidade, ao fundo, ainda ecoava “Mazzy Star — Fade Into You”. Você conseguiu me incendiar, morri naquela noite uma centena de vezes… a nossa cidade tomada por ruínas e brasas. Foi a primeira vez que havia me arrependido por sentir o mundo.
A nossa cidade, o meu mundo foi destruído. Não havia mais qualquer resquício. Como se a sua matéria prima tivesse sido a ilusão. O eclipse foi embora e a levou consigo.
Depois de tanto, tudo o que eu consegui sentir foi uma imensa decepção.
Não bastasse, já havia enfatizado “na hipótese absurda, se eu fosse capaz de algo tão desprezível ou mesmo digna de qualquer absurdo que você proferiu, sou mulher o suficiente para “‘mastigar e engolir’”. “Se o seu intuito é “caçar” motivo para me denegrir, não vai encontrar”. No entanto, independente de encontrar ou não, você já havia feito isso.
Recordo com precisão as últimas palavras que te remeti, assim que fui tomada pela mácula:
“Cansei de fazer isso aqui, pois sequer deveria estar acontecendo.
Continua a pensar o que quiser de mim.
Pelo óbvio, me recuso a impugnar as coisas que induziu.
Acredita no que você quiser.
Se martiriza por algo que não se é.
Grita para o mundo o quanto sou podre.
Conta como fui horrível para você.
Escancara que o arrependimento da sua vida é ter me conhecido.
Inventa o que você quiser.
Já me feriu e me ofendeu o suficiente ter cuspido equivocadamente “n” coisas na minha cara.
Não estou nem aí quanto a o que os outros vão pensar.
Faz isso…
Joga fora o quanto falei, chorei e desabafei no Recanto.
Joga a minha entrega e intensidade no lixo.
Joga fora tudo o que viu em mim.
Joga fora que você me conheceu.
Faz de mim o seu monstro.
Faz o que você quiser.
Me esquece.”
Me desculpa, teria sido melhor se eu tivesse acatado o silêncio.
Fiquei incrédula com todo aquele caos. Proferiu palavras horríveis — confesso que percebi a sua dor/desprezo por trás delas — até parecia que um vínculo entre nós jamais havia existido. Falou com quem nunca me conheceu.
Sabe. Não sei o que estamos fazendo. Não sei onde chegaremos. Estamos somente revivendo algo doloroso. Tenho medo do seu intuito hoje, assim como foi o meu na noite de lucidez, acabar por só inflamar tudo. Já passamos. Á época eu cansei de dar explicações para alguém que se recusava a ouvir. Isso não mudou. Sempre estive e permaneço com a minha consciência tranquila.
Não importa o transcurso do tempo. Nada que eu diga vai mudar sua visão. E nada vai apagar você me vê e me rotular daquela forma.
Jamais te julgaria por sentir se frustrado quanto ao episódio. Tanto que eu mesma me desculpei pela parte que reconheci que poderia ter evitado. Me desculpei justamente pensando em não afetar a nossa coisa, por não querer te causa qualquer sentimento ruim, por não querer apagar as luzes da nossa cidade.
Mas, à época eu não iria, tão menos agora, “confessar” algo que não é verdade. Claro, se eu visse da sua forma, se aquela atrocidade que alegou fosse a realidade, lógico que teria um problema. Vimos de forma diferente e você ignorou o contexto e, horrivelmente, quem sou.
Reconheço que, à época, quando caiu em si e notou que a cidade já havia se desfeito, procurou incansavelmente por um mecanismo de burlar o tempo. Você desejava encontra-la, sabia que ela havia existido em algum lugar no tempo. Sabia que o “nós”, tão menos o “eu e você”, não se tratou de um delírio.
Não fomos os únicos a notar o perecimento da cidade. Todo aquele caos suscitou reflexos. Fatores alheios a nós, ainda que horrivelmente atrelados a mim, contra a minha vontade, desprezivelmente atingiram a ti. Aliás, os quais tomei conhecimento somente quando você já estava despedaçado.
Não faz ideia do quanto foi árduo reconhecer que sangrou por golpes quais eu sequer via que estavam sendo desferidos. Não bastasse, quando os percebi, fui incapaz de cessá-los. Em proteção do meu eu devastado, feriam o meu mais insano e desmedido amor. Não importava o quanto eu implorasse. Me vi de mãos atadas. Foi horrível conviver com a gana em querer contornar todo o imbróglio enquanto era cerceada.
Aliás, confesso que quanto a isso, tive medo. Pois, naquela noite, justamente tentando cozer a ruptura, acabamos por agravar ainda mais a cisão. Tive receio que os reflexos dilacerassem a nós dois — se é que isso era possível. Eu não sabia como nos salvar. Desculpa.
Desculpa. Desprezei o que sentia e o que havia se desfeito, não embarquei contigo na jornada, recusei a viagem no tempo e eu sabia que você, sozinho, jamais poderia encontrar, resgatar, sequer reerguer, a nossa cidade.
Sabe, não quis ser hipócrita. Lamentavelmente, estava convicta de que qualquer conduta comissiva minha somente iria unir os resquícios de poeira daquele caos, gerando um explosivo que de um instante a outro iria eclodir.
Em razão de tanto, fiz algo que destoa completamente da minha maneira de lidar com as situações. Nada. Permaneci inerte. Não fiz absolutamente nada. Me limitei a implorar ao Universo e ao tempo para tudo aquilo se acalentar. Isso me destruiu.
Foi duro tomar essa decisão. Senti que havia renunciado a nós. Me vi uma fracassada. Os dias corriam e não foram poucas as vezes que pensei em voltar atrás, tomada pelo pensamento repentino de “Tenta, mais uma vez. Por amor. Antes tarde do que nunca.” caçava e matutava meios de estancar o sangramento. Sobretudo, a minha hemorragia.
As estações mudaram e, aparentemente, o Universo havia catado as minhas preces. A monotonia da vida em meu entorno prosseguia, como se o caos jamais tivesse existido. No entanto, ainda que diante da pacatisse dos meus dias, não havia um templo em mim.
Não faz ideia do tormento em meu interior. Sabe, naquela noite, você me condenou ao inferno e vivi torturosos dias nele. Todos os dias revivendo o mesmo epilogo. O caos. Em momento algum fechei os olhos.
Ouvi todos os dias uma centena de vezes suas alegações daquela noite. Reprisei com atenção cada cena. Refiz cada um dos meus passos e cassei em cada minúcia motins que pudessem atrair para mim o peso e a culpa (em sentido amplo) daquele atrito.
Fiz isso por mais de uma estação. Aliás, continuei a fazer enquanto você já havia virado a página. Durante meses fiquei atordoada com a ideia de que a “noite de lucidez” ao invés de renovar o suporte do nosso sentir, esfarelou os nossos sentimentos.
Assumo para mim mesma que eu busquei, desesperadamente, por semanas, um pretexto para embasar a minha vontade em abandonar a inercia e agir na tentativa de salvaguardar ao menos o “eu e você”, mas não encontrei . E isso me destruiu ainda mais, pois, apesar de tudo, eu havia guardado cada fragmento do meu sentimento esfarelado.
Eu desejei estar completamente equivocada e errada só para ter uma justificativa em te implorar para permanecer ao meu lado. Mais uma vez, trazer o peso de uma faceta ainda mais densa da ruptura para mim. Mais um fardo para carregar e me tortura por sei lá quanto tempo. Sobretudo, mais um motim para me arrastar de volta para você. Para buscar em algum lugar no tempo a nossa cidade.
Foram inúmeras as noites em que queimei em intensidade jogando fora o ocorrido e desejando você. Sóbria, questionava baixinho a mim mesma que se você fosse um serial killer, então o que de pior poderia acontecer com uma garota que já estava machucada? E que se você realmente fosse atroz como ouvia dizer, eu só podia estar amaldiçoada. Insano, não é? Exatamente assim, ao decorrer de cada frenesi, ao fundo se podia ouvir “Happiness Is a Butterfly — Lana Del Rey”.
Felizmente, ainda que em devaneios de amor, eu seria capaz de qualquer coisa, exceto aquilo. Você desejava, no mínimo, um espécie de “confissão” do crime que me imputava, juntamente com um pedido de perdão. Desculpa. Meu mais insano e desmedido amor, jamais faria tal coisa para resgatar algo que, notadamente, estava fadado ao fracasso e desapareceu em algum lugar no tempo. Jamais iria me vestir da desprezível versão que criou de mim naquela noite somente para te fazer permanecer aqui. Jamais trairia a mim mesma dessa maneira.
Por isso, eu prometi. Prometi a mim mesma que nunca qualquer pessoa iria apontar o dedo na minha cara e me fazer desprezível, a ponto de quase cogitar me difamar. Prometi não admitir ser acusada de coisas que eu jamais faria. Nunca mais ser vista como alguém sem valores.
Nunca mais quero ouvir alguém quem eu amo descaracterizar o meu eu. Horrível o outro falar de você como se fosse imunda. Mais horrível ainda isso vir de alguém por quem você sente o mundo. Não quero, novamente, ser magoada dessa forma.
Não bastasse, ainda há outra parte na dor. Odeio perceber que sempre vai usar quem eu fui com você e generalizar que sou ou serei assim com qualquer pessoa. É horrível te ver normalizando e desprezando a minha entrega, o meu sentir, o que me rasgava o peito.
É um imenso pesar notar que tudo de mais puro, profundo, belo e imenso que pulsava em mim por ti, ao final, me renderam uma incrível e desmedida decepção com o seu “eu”.
Sabe… depois que o alvo do meu amor apontou o dedo na minha cara, induziu uma série de absurdos e equivocadamente me fez imunda, quando nunca fui digna de qualquer daqueles insultos, eu já não espero mais nada.
Forte, não é?
Aliás, depois de um tempo considerável eu entendi que não vemos as coisas como são. Vemos como somos. E isso explica muito.
Você não é um homem atroz. Não construí uma imagem desprezível sua para me polpar de sentir qualquer remorço, culpa ou arrependimento. As minhas desculpas naquela noite não foram vazias. Ainda se trata do homem com quem construí uma cidade. Reconheço que o advento foi movido por sentimentos e sensações efêmeras, de ambos.
No entanto, ainda assim, acredito que me deva desculpas pelo epilogo de desprazer.
Sabe, você dizia não conhecer, sempre duvidei. Mas, agora, tenho convicção de que jamais ouvira Paralamas do Sucesso. Príncipalmente, “Cuide bem do Seu Amor”.
Não foram palavra minhas, ditas em voz de veludo, que destruíram o amor.
Janaina Couto ©
[Publicado — 2020]
@janacoutoj