Comestíveis e descartáveis:
A triste realidade dos novos deuses midiáticos!
Cerca de uma década atrás, levei minhas crianças ao parquinho recém-chegado em nossa cidade.
Como em quase todo interior, diversões assim só acontecem em eventos religiosos, políticos ou datas comemorativas, a exemplo do das crianças.
Por coincidência, ambos ocorrem praticamente na mesma emergência onde resido.
Na ocasião, meus filhos tinham entre 2 e 9 anos.
Sendo um deles ainda colo, me vi obrigado a sentar-me em um banco e esperar nossa vez na fila.
Enquanto aguardava, notei três conhecidos tomando cerveja em garrafas de vidro, bem ao centro da diversão infantil.
Apoiados lado a lado do gramado, eles bebericavam e ofertavam o conteúdo a cada um dos amigos que transitavam pelo percurso, como se ali houvesse barris infinitos daquele drink, quando, na verdade, menos de 5 garrafas estavam no chão, duas delas caídas, dando-se a entender que já estavam vazias.
Entre tantas ofertas e recusas, duas me chamaram a atenção: a primeira (a recusa) viera de um pai de família, um rapaz exemplar, bom marido, bom filho, bom funcionário...
Pessoa afamada entre os mais cultos, que priorizava os poucos momentos vagos com sua prole ao invés de desperdiçá-los de outra forma.
O segundo objeto em questão (o que aceitou a oferta) era um sujeito conhecido por suas malandragens, passagens pela polícia e envolvimentos com todo tipo de falcatruas, estelionatos e tudo aquilo que pudesse envolver dinheiro fácil e ilegal, fosse este de ordem pública ou privada.
Entre a patota, diversos xingamentos lhes foram proferidos pelas costas, do que rejeitara a bebida.
Impropérios como “metido”, “pau no c#”, “abestalhado” e “filhinho da mamãe” brotaram daquelas bocas com bafo de cachaça, em uma velocidade estrondosa, como se já esperassem por isso.
Agouros de que sua esposa lhe pusesse um “par de gaia” ou que o patrão o demitisse também foram entoados sem nenhum pudor.
De outro modo, o sujeito tortuoso, que aceitou sorver com os três, tanto na presença quanto em sua ausência, purpurinas lhe foram lançadas ao ar, como se um grande estadista ali estivesse.
Frases empolgadas, apertos de mãos, abraços, risos, tapas nas costas e toquinho de punho faziam reverberar uma harmonia nunca dantes vista, nem sequer entre consanguíneos daquele grupo.
Sentenças do tipo: “você é o cara”; “você é foda”; “gente boa pra c#aralho; “amigo do peito” e até profecias do tipo: “um dia você será o nosso prefeito”, foram derramadas àquela figura, como se estivessem em um rito sacramental.
Realmente parecia haver um tesão, um despertar de libido sexual naquele simples gesto de engolir um pouco daquela bebida.
Nada de proveitoso ou grandioso seguiu-se àquele rito de coroação.
Porém, o vigor físico e moral daquelas 3 almas que fizera a oferenda parecia haver sido renovado instantaneamente e de forma milagrosa.
Do jeito que chegou, o hipotético ídolo saiu.
A simbologia se repetiu: louros àquele Cesar, ainda não revelado ao mundo.
Menos de 2 minutos se passaram desta curta estadia, mesmo assim, a divindade parecia ter deixado “alimento espiritual” para toda a existência daquelas pobres almas.
Dava ânsias de vômito ver tanta bajulação.
Percebi que minha vez na fila havia chegado. Levantei-me para pôr meus filhos no brinquedo do parque.
Os três não haviam me notado até então.
Ao passar por eles, também fizeram a oferta que fizeram aos demais.
Obviamente, eu recusei.
Primeiro, que na ocasião ainda era evangélico e eles sabiam disso.
Segundo, pôr que, mesmo se não fosse um religioso, estava tutelando 3 crianças e aquele não era um local adequado para dar-se à embriaguez, muito menos valendo-se garrafas de vidro.
Eles já esperavam que eu fizesse a recusa pelo meu cunho religioso e aquela não era a primeira vez que eu negava tal interação.
“Só queriam ser gentis”, disseram eles!
Porém, como grande observador do comportamento humano, aproveitei para sanar minha curiosidade científica, perguntei:
— Desculpe-me, só para saber, ao me afastar, serei rotulado como um “pau no c#” ou como um herói?
Eles se entreolham sem entender.
Daí eu falei:
- Não pude deixar de notar como vocês etiquetam quase todos que por aqui passam. Apesar disto, o que mais me chamou a atenção foi o caso de fulano e o caso de beltrano (disse o nome dos dois, pois sabia quem eram ambos).
Continuei:
- O sujeito que recusou a bebida, por exemplo, apesar de ser gente fina, vocês literalmente “tiraram dos cachorros” e nele puseram todos os rótulos depreciativos. Quanto ao sujeito que aceitou vossa oferta, apesar de todos na cidade conhecer seu histórico de vida, vocês o alçaram a um pedestal. Qual a diferença entre um e outro?
Eles notaram que mais alguém podia ter ouvido. Fiz menção de que não levaria adiante aquele assunto.
Achavam que, por estarem em praça pública, rodeados de brinquedos barulhentos e pessoas conversando, não seriam ouvidos, mas eu os escutei perfeitamente.
Quase todos que se embriagam não se dão conta de que aumentam o tom da própria voz à medida que o álcool faz efeito.
De pronto, eles demonstraram um certo rubor.
Depois se justificaram, como se aquela resposta já estivesse há séculos em sua mente.
Quase que em uníssono, os três usaram o mesmo palavreado para se justificarem, mas em resumo eles disseram o seguinte:
- O primeiro sujeito é um bosta, não porque recusou a nossa bebida, mas sim porque não compartilha sua própria vida conosco e faz isso sempre!
O segundo entre eles completou:
— Pois é: não sabemos quase nada sobre esse cara! Não sabemos ao certo o que ele faz, do que gosta, quem são seus amigos, os lugares que frequentas, se tem amantes, se tem filhos fora do casamento, para quais times torce... Ele quase não sai e, quando o faz, está sempre acompanhado dos filhos ou esposa. Parece não gostar de companhias como a nossa.
O terceiro atestou:
- Quando sabemos da vida dos outros, nos sentimos mais poderosos, pois se for coisa ruim, podemos usar isso ao nosso favor.
Como se revezassem a ordem de fala, novamente o primeiro arguiu com um ar de felicidade descomunal:
- Agora veja aquele outro: todo mundo sabe quem ele é; já foi preso algumas vezes; só vive metido em coisa errada; é cheio de raparigas; quase não vê os filhos e nem sequer paga pensão a eles; até já meteu os próprios parentes em problemas por sua conduta...
O segundo, outra vez, acrescentou:
- Poderia dizer que ele é o pior exemplo do mundo, mas digo que ele é um cara legal. Quando passa, para e nos saúda; se abre; diz o que pensa (ainda que esteja mentindo); fala putaria conosco; diz com quem está saindo...
Com ar de um crédulo religioso, o terceiro emendou:
— Ele disse até que um dia ele será a pessoa mais poderosa desta cidade e que, quando este dia chegar, churrasco e bebidas de graça não nos faltarão!
Em um só coro, os três fecharam a defesa:
— COMO NÃO GOSTAR DE UM CARA ASSIM?
— Ele é como nós! Quando falamos com ele, não nos sentimos tão inferiores. Sabemos tudo a respeito dele. Se ele cometer um deslize, a gente o derruba e, se ele crescer, já informou que, se descobrir um modo de roubar sem ser descoberto, vai compartilhar com a gente para que todos tenhamos a mesma chance de ter uma vida melhor!
Fiquei tão atordoado com essa fala que nem lembro qual dos três a citou.
Ouvi algo tilintar no chão e pensei ter sido o barulho do meu queixo caindo, depois de tanto descalabro que ouvi.
Por sorte, ele ainda estava lá. O barulho vinha de uma garrafa de vidro que um deles chutou ao fazer tão empolgante arrimo.
Me recompus.
Dei um leve sorriso de canto de boca, balancei a cabeça e apenas falei:
- Pois é: cada um, cada qual! Semelhantes se reconhecem e ambos se comprazem!
Continuei:
— Não os julgo. Não os culpo! Cada um só dá o que tem! Seria impróprio exigir de alguém aquilo que ela nem sabe existir. Só queria ouvir de vossas bocas a própria descrição dos fatos. Queria saber se vocês têm consciência interna do seu comportamento e percebi que sim. Tudo bem. A gente se vê. Até outro dia!
Eles acenaram para mim e, antes que eu me fosse, virei outra vez e disse:
- Vocês sabem que o meu comportamento é semelhante ao do primeiro cara, não é? A minha vida é de casa para o trabalho. De casa para a igreja ou de casa para a escola. Quando não estou dando aulas, estou matriculado em algum cursinho. Aprendendo para depois ensinar e assim propagar o conhecimento. Quando raramente apareço em eventos públicos, estou sempre acompanhado de minha família e pouco compartilho sobre minha vida pessoal.
Acho que eles entenderam onde eu queria chegar, pois quando virei, um deles falou:
— Ei, calma lá! Não vamos falar de você pelas costas! Você é gente boa. Não pense bobagens. Não iremos denegrir vossa imagem.
Eu me virei outra vez e, rindo, disse:
— Não, claro que não! Vocês não são assim. Vocês são pessoas boas. Só estão seguindo exemplos ruins...
Eles silenciaram.
Notei uma certa confusão no rosto deles. Não sabiam se aquilo era um elogio, um conselho ou uma repreensão.
Entre o barulho dos brinquedos e a algazarra da multidão, deixei com eles meu sorriso enigmático, trazendo como a última lembrança daquele instante, a confusão entre seus olhares.
...
Este é apenas um conto (real) que usei para ilustrar o raciocínio a seguir.
Vejamos:
Pense em uma sub-estrela atual.
Certamente você pensou em algum influencer, não foi?
Agora pense em alguma virtude que este personagem possui.
Pensou?
Quais suas qualidades?
Qual o legado que elas deixarão para o mundo?
Quais são os valores reais que estas pregam e vivem...?
Acredito que, nesse momento, sua mente entrou em bug e você não consegue localizar no tempo ou espaço alguma virtude pessoal que possa ter levado tal pessoa ao pódio, ao lugar dos deuses, onde a fortuna, a fama e o luxo se misturam e somente os bem-aventurados poderiam chegar.
Admita: talvez nunca tenha se dado conta, mas, ao grosso modo, o que possibilita certos famosos “brotarem do nada” e ascenderem ao recanto dos deuses, é justamente que elas se dão ao consumo!
O conteúdo que elas produzem pouco importa, mas o modo como elas se deixam digerir pelos que manuseiam sua imagem e voz é o que vale nesse universo subconsciente.
Um mortal comum geralmente vive em busca de duas coisas: alguém para idolatrar ou alguém para odiar!
Nossos ídolos atuais podem preencher simultaneamente esses dois quesitos.
Se você, de alguma forma, conseguiu (ainda que sem querer) alcançar um desses dois extremos, você estará hábil para subir ao Olimpo e compartilhar com as divindades todos os despojos tirados dos mortais à sua volta.
Se por doação voluntária ou por imposição, isso não importa: o tempo, a atenção e os recursos dos idólatras estará à vossa disposição para usá-los como bem entender.
Você só precisa entender o básico: provoque-os fazendo-se parecer que você é algum tipo de salvador e os encha de esperança (ainda que tardia), ou faça fluir neles a semente do ódio contra algo, ou alguém, inclusive você mesmo.
Desta forma, mais da metade da população ensandecida seguirá você.
Se com ancinhos, tochas e porretes ou com dádivas, isso só dependerá de ti.
Tem sido assim desde sempre, mas com o avanço da internet, nos últimos 10 anos, isso aumentou em milhares de vezes o alcance.
Você conhece pelo menos 3 dúzias de pessoas que ascenderam desta forma ao mundo da fama. Só não se deu conta ainda de tais detalhes.
Figuras como Jair Messias, Gabriel Monteiro, Marçal, D’acunha e tantos outros iguais preenchem simultaneamente os dois perfis.
Conseguem obter lucro, fama ou projeção de ambos os públicos. Adorares e detratores construíram junto esses personagens e, não importam o que digam, eles sempre sairão no lucro, simplesmente pelo fato de preencherem essa dualidade nas mentes dos que buscam salvadores ou objetos de expurgos.
Seus seguidores costumam ser pessoas que acreditam que os problemas do mundo partem sempre dos outros e nunca deles mesmos, bem como a solução de conflitos virá de figuras messiânicas, que têm em suas mãos o poder para criar ou destruir qualquer coisa, pessoa ou sistema.
Pessoas que acreditam que seus atos individuais não têm efeito no coletivo (ou vice-versa), mas que a resolução (extermínio) de tudo o que os incomodam será pelo braço forte de algum príncipe ou Deus imaginário, montado em seu cavalo branco e ao dispor de suas vontades.
Vale ressaltar que qualquer populista que adote um dos dois caminhos citados (ou os dois) será uma pessoa extremamente palatável.
Quando alguém com esse perfil senta à mesa para “comer alguém”, ele também está sendo consumido pelos seus admiradores ou algozes.
São indivíduos que geram cortes midiáticos (principalmente ridículos), que alimentam as redações de jornais sensacionalistas ou blogs e sites de fofocas.
Alguém que, além de fazer fortuna para si, consegue enriquecer redes inteiras de “produtores de conteúdos”, que se lambuzam em “seus corpos” e deles repartem infinitamente com os que desta fonte também querem beber.
O milagre da ressurreição e da multiplicação dos pães, dos peixes e da água que jorra da rocha ocorre toda vez que um consumidor assíduo procura mais “noticias” sobre o seu objeto de consumo.
Um processo infinito de retroalimentação acontece a todo instante entre o fornecedor (blogueiro, jornalista, influencer) e o seu público, que, sedento por informações positivas ou negativas, anseiam por mais e mais daquilo que diariamente lhes sustentam.
Acredito que ascensões midiáticas como as de empresas como Jovem Pan e BP ou de canais como Thiago dos Reis, Jumentinho Amarelo, Allan dos Santos, Nicolas Ferreira e o da Srta. Hasselman seriam improváveis, sem que de forma involuntária (ou não), o Jair e seus seguidores deixassem de fazer tantas besteiras (ou acertos) como fizeram.
Em outras palavras, eles comem do Jair, bebem do Messias e expelem o "Bozo" por todos os orifícios.
Para o bem ou para mal, todas as suas falas, trejeitos e frases de duplo sentido têm sido o Maná celestial dos que buscam alimentar-se dessa fonte inesgotável de memes.
O fluxo de hates e seguidores de tais afiliados só foi possível por conta dessa atividade. O ostracismo de um poderia levar à falência de tantos outros que vivem em função disso.
Um simples aceno de mãos por uma figura tão populista, pode ser interpretado como um simples “olá”; ou pode incendiar ideais nacionalistas como alusões ao nazismo, dependendo de quem vai “consumir e compartilhar do corpo”.
Do ódio irracional, ao apego descomunal, à projeção estúpida do próprio “EU”: quem o descreve sempre deixa um pouco de si ao conteúdo que compartilha.
Para o bem ou para o mal, a falta dessa consciência faz afetar o ambiente em que vivemos o tempo inteiro.
Depois de tudo ferrado pela idolatria (ou regurgitar demasiado abobrinhas), gente assim recorre às entidades, todas elas abstratas (politicas, sindicais, religiosas ou empresariais), pedindo que derrotem os monstros que coletivamente construímos.
Nesse quesito, ainda que você não seja o objeto principal de consumo, se você compartilha da “carne de algum deus”, você merece tanta veneração quanto se um deus fosse.
Se você é do time do ódio ou do “time do bem”, pouco importa: se você é capaz de dissecar alguém e compartilhar com outros dessa mesma fonte, rios de dinheiro, fama e beatitudes lhes seguirão.
Contínua...