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Pen Drive

A historia se passa em São Paulo, numa tarde chuvosa de verão.

 

Trilha sonora:

 

Tell me once again (Light Reflections)

Sempre não é todo dia (Zizi Possi)

Mudanças (Vanusa)

 

Cenário:

Duas portas de vidro da entrada de um shopping. Uma do lado direito do palco e outra no lado esquerdo. Sobre as portas um letreiro com o nomeSky Shopping Bulevar.

Um automóvel, onde acontecerá a maior parte das cenas. Esse automóvel tem que estar de frente para a platéia. A frente do automóvel ficará fechada  até que as personagens entrem. Quando estiverem dentro do veículo a frente terá que ficar aberta para que a platéia possa ver a movimentação no Interior.

Personagens:

Julio Cesar– Médico de cinquenta e poucos anos anos. Tem cabelos grisalhos é clássico elegante.Veste calça e camisa de alfaiataria.Está carregando uma pequena sacola  de uma grife de jóias.

Carolina– Mulher de quarenta e poucos anos. Tem aproximadamente um metro e sessenta, cabelos e olhos claros).Ela veste calça jeans,mocassin de salto alto e uma camisa de algodão branca.Tem uma bolsa estilo carteiro transpassada no peito e um pen drive pendurado no pescoço preso por um cordão preto.

Primeiro Ato

Cena um

 

Passos femininos apressados em off.

 

Abrem-se as portas de vidro do lado esquerdo do palco. Carolina sai em direção ao carro. Está ventando muito e ouvem-se trovões a todo o momento, mas ainda não chove. Toca o celular que está dentro da bolsa. Carolina para olha o número no visor, revira os olhos como quem não quer atender, mas atende.

 

Passos lentos masculinos em off.

 

 Júlio Cesar sai pela porta de vidro do lado direito do palco. Ele caminha na direção do estacionamento. Ao ver Carolina ele a reconhece esboça um sorriso e passa observá-la. A atração que sente por ela fica evidente.

 

Carolina (no celular)– Fala!

Carolina começa a chorar compulsivamente. Ela desliga o aparelho coloca dentro da bolsa e sai correndo até o carro.

 

Dentro do veículo ela  tira um pen drive do pescoço e coloca no rário. Toca a música sempre não é todo dia. Carolina apóia a cabeça no volante e continua a chorar enquanto a música se desenrrola.

 

Julio César observa a cena. Em seguida caminha até o carro e bate no vidro do motorista.

 

Júlio César (preocupado)– Ta tudo bem com você?

Carolina ignora.

 

Júlio Cesar –Posso fazer alguma coisa pra te ajudar?

Carolina olha, mas não dá importância.

Júlio César– Abre, por favor!

 

Carolina seca as lágrimas com as mãos e desliga o rádio.

 

Júlio Cesar da à volta, abre a porta do passageiro e entra.

Nesse momento a parte frontal do carro é abertapara que o público veja o que acontece no seu interior .

 

Cena Dois

Dentro do carro

Júlio Cesar–(pergunta enquanto entrega um lenço).O que foi que aconteceu?

Carolina-(enxugando as lágrimas com o lenço oferecido)Nada.

Julio César– Eu vi quando você atendeu o celular... Foi alguma notícia ruim?

Carolina volta a chorar.

 

Julio Cesar –Por favor, não fique assim. Seja o que for que aconteceu você tem que ser forte para enfrentar.

Carolina (com a voz embargada)– Eu sei.

Silêncio

 

Julio Cesar– Às vezes existir dói.

Carolina– É.

 

Silêncio

 

Julio Cesar –Você é a Carolina não é?

Carolina– Sou.

Julio Cesar– Eu a reconheci assim que pus os olhos em você. Acho que você não se lembra de mim.

Carolina– Claro que me lembro. Você é o Julio César.

Silêncio

 

Julio César –Você está precisando de alguma coisa?Se eu puder ajudar?

Carolina– Obrigada pela preocupação, mas eu não preciso de nada.

Julio Cesar– Eu estou vendo a sua dor!

Carolina– A dor que eu to sentindo nem sua habilidade médica poderá curar.

Julio Cesar– Mas desabafar alivia.

Silêncio

 

Cai um pé d’água.

Sons de chuva forte, trovoadas e clarões de relâmpago.

 

Júlio Cesar –Há quanto tempo não nos vemos?

Carolina–(sem olhar para Júlio Cesar)Sei lá... Uns vinte anos.

Julio César (num tom otimista)– Você não mudou nada. Os anos foram gentis com você.

Carolina – (esboçando um tímido sorriso) -Você também continua ótimo.

Julio César– Não. Eu envelheci.

Carolina– Eu envelheci também.

Julio Cesar– Se me permite, dizer você  continua tão bonita quanto antes.

Carolina– Como dizia a minha avó “Por fora bela viola, por dentro pão bolorento”.

Julio Cesar – Quanta amargura!

Carolina– Não é amargura. É constatação.

Julio Cesar– Pra mim você está sempre bem.

Carolina– ”Sempre não é todo dia”

Silêncio

Mais sons de trovão e claridade de raios

 

Carolina –Preciso ir embora.

Júlio César– Eu não vou deixar você dirigir nesse estado.

Carolina– Eu estou bem.

Júlio César– Não está. Suas mãos estão tremendo. Sem falar no aguaceiro que está caindo. Não é seguro sair dirigindo nesse tempo.

Carolina suspira agoniada.

 

Julio Cesar – (Olhando para fora como se estivesse apreciando a queda dos raios)Li no jornal que ontem durante o temporal caíram 745 raios só aqui na cidade de São Paulo.

Carolina– Eu tenho medo de raios.

Júlio Cesar– Se você estiver em lugar seguro não há porque ter medo.

Carolina– Dizem que dentro do carro estamos seguros porque a borracha dos pneus é isolante.

Julio César– O carro é seguro sim, mas não por esse motivo. Ele é seguro porque sua estrutura metálica funciona como uma gaiola de Faraday. Caso atingido por uma descarga elétrica protege tudo que está em seu interior,  porque conduz a corrente pelo exterior e a descarrega no solo.

Carolina– Ah... Eu gostaria de ter uma gaiola dessa para me proteger.

Julio César– Dos raios?

Carolina– Não, da vida.

 Silêncio

 

Carolina para de chorar, mas continua triste.

 

Julio Cesar– Esse seu jeito está me deixando preocupado. Eu quero ressaltar que se você quiser falar sobre o que está te afligindo...

Carolina– Já disse que não é nada. Mas obrigada assim mesmo.

Júlio César– Você continua com o mesmo ar de mistério de vinte anos atrás. Se abre comigo. Eu só quero ajudar.

Carolina– Eu não tenho nada pra contar. São problemas pessoais de foro íntimo, entende?

Julio César– Claro. Desculpe se fui invasivo.

Silêncio

Júlio César– Eu vim até o shopping comprar um presente pra minha filha. Ela está completando vinte anos. Fiquei mais de uma hora pra escolher. É muito difícil presentear uma jovem. A gente nunca sabe o que dar. Quando essa jovem é filha, fica pior ainda... Você quer dar uma olhada e me dizer o que acha? Uma opinião feminina é sempre bem vinda.

Carolina– Claro.

Julio Cesar tira uma pequena caixa preta aveludada da sacola e abre. Ele observa Carolina para ver sua reação.

Carolina– Deixa eu ver.Que anel delicado! Pode ficar despreocupado. Sua filha vai adorar! Mulher adora presentes delicados.

Júlio Cesar- Obrigado. Você me deixou mais tranqüilo.

Julio Cesar devolve a caixa dentro da sacola.

Silêncio

 

Julio César–  Eu senti a sua falta.

Carolina– O que?

Júlio César–. Eu senti a sua falta.

Carolina– Como assim?Não estou entendendo.

Júlio César– Quando eu fui transferido para outra clínica você ainda estava em tratamento comigo. Eu senti a sua falta.

Silêncio Torturante

Carolina (esfregando uma mão na outra demonstrando nervosismo e ansiedade)– Eu também senti a sua falta. Foi difícil me adaptar com o médico que ocupou o seu lugar. Me dava um aperto no coração quando eu passava pela porta do seu antigo consultório e via a luz apagada e a mesa vazia. Eu podia sentir a sua presença ali. Tudo ficou tão triste...

Júlio Cesar– Você só está dizendo isso para ser gentil.

Carolina– Eu não preciso fazer média com você.

Júlio César (surpreso)– Eu não imaginava que você pudesse sentir minha falta. Você sempre me pareceu tão distante... E eu era apenas mais um médico, entre tantos que você já deve ter conhecido.

Carolina– Essa frase se encaixa melhor no meu texto. Eu era apenas mais uma paciente. Você, era “O médico”.

Júlio Cesar sorri constrangido.

Silêncio

 

Sons de chuva e trovoada. Clarões no céu.

 

Júlio Cesar –Pelo visto esse temporal vai longe...

Carolina– É.

Júlio Cesar– Porque você às vezes é tão econômica nas palavras?

Carolina– Talvez porque eu não tenha nada de interessante para dizer.

Júlio César– Não acredito nisso. Todo mundo tem sempre alguma coisa a dizer. Geralmente as pessoas caladas são as mais intensas.

Carolina  – Acabei de descobrir contornos de Freud em você.

Júlio César ri.

Um estrondo de trovão acompanhado de claridade. Carolina se assusta e faz o sinal da cruz.

 

Silêncio

 

Júlio César –Quando eu era menino minha mãe costumava pedir ajuda a Santa Bárbara para cessar os relâmpagos.

Carolina– E a minha cobria todos os espelhos com um lençol. Ela dizia que os espelhos atraiam os raios. Quer dizer... Os espelhos, as tesouras...as facas...tudo atraia os raios na visão dela.

Julio Cesar observa Carolina com ternura. Intimidada ela olha pela janela lateral.

 

Silêncio

 

Carolina– Eu já me casei com você.

Júlio César –(surpreso)O que?

Carolina -Eu já me casei com você.

Júlio César– Você está me deixando confuso. Como assim casou comigo? Você fez algum tipo de regressão a vidas passadas?

Carolina - (com um sorriso tímido no canto dos lábios)Não, nas minhas fantasias.

Júlio César–( ainda surpreso)Nossa! Você agora me tirou o ar!

Silêncio

 

Júlio César- Porque você nunca me disse nada?

Carolina– Ah ta!Se eu fosse contar pra todo mundo minhas fantasias...

Júlio Cesar- Você além de me tirar o ar me roubou o chão...

Carolina– Você acabou de dizer que eu falo pouco, agora fica assustado porque eu consegui articular algumas palavras a mais?

Júlio César– Você não apenas articulou palavras. Você fez uma revelação.

Carolina– Foi você quem começou.

Silêncio

 

Júlio César– Eu nunca me casei com você. Mas já tive você em meus braços inúmeras vezes... Eu também fantasio.

Carolina –Faz de conta que eu acredito.

Júlio César –É a mais pura verdade. Se for pra fazer revelações, então vamos a elas...Me senti atraído por você desde sua primeira consulta. Você era tão jovem, tão bonita, tão cheia de vida!Era tão bom quando eu abria a porta do consultório e dava de cara com você  na recepção.

Carolina– Até conhecer você eu não gostava de médicos. Achava que médicos pertenciam a uma classe de pessoas não humanizadas.

Julio César ri.

Julio César– Vocêsempre foi uma pessoa tão calada... Mesmo quando você estava sorrindo eu percebia uma  tristeza no seu  olhar... Eu sempre quis saber o porquê.

Carolina– Por outro lado você sempre me pareceu tão seguro de si. E pra ajudar você foi sempre tão gentil...

Silêncio

 

Julio Cesar– Eu sou um homem seguro na minha vida profissional. Pra isso tenho minha formação técnica e muita experiência. Em relacionamentos pessoais também não tenho problemas. Mas no campo afetivo sou tão inseguro como qualquer outra pessoa..E já que você tocou nesse assunto,devo confessar que as vezes eu me sentia um idiota por pensar em você.

Carolina– Mas por quê?

Julio Cesar- Eu já tinha quarenta anos e você apenas vinte e poucos.

Carolina– Nunca pensei na sua idade.

Julio César– E eu não parava de pensar na sua... E de certa maneira, sua juventude  trouxe o lúdico para a minha vida.

Carolina– Que bonito isso que você está dizendo.

Julio César -É a mais pura verdade.

Silêncio

Júlio César– Você se lembra aquele domingo que nos reencontramos por acaso no parque?

Carolina– Claro que me lembro. Você estava com sua mulher e sua filha nos braços.

 Júlio Cesar– E você com seu marido. Você estava lendo um livro lembra?

Carolina –O velho e o mar. Ernest Hemingway. Você já leu?

Julio Cesar– Há muito tempo atrás. O texto fala basicamente do valor da persistência e da solidão.

Silêncio

Carolina- Eu podia imaginar encontrar qualquer outra pessoa no parque, menos você.Aliás,nunca imaginei encontrar você aqui também.

Júlio Cesar- Eu me senti muito mal naquele dia. Você me ignorou. Nem parou para me cumprimentar. Confesso que fiquei mais de anos com isso martelando na cabeça.

Carolina– Não... Eu não te ignorei. Por favor, não pense isso! Não sei o que aconteceu comigo, mas eu não o reconheci!

Júlio César– Como não me reconheceu. Não fazia nem quinze dias que eu tinha me afastado da clínica?

Carolina – Eu estou falando sério. Eu não o reconheci. Quando você passou ao meu lado e sorriu eu pensei:Caramba!Eu conheço esse cara. Mas não melembro de onde!Eu juro que fiz força pra lembrar. Quando finalmente me lembrei eu pensei: ”Como eu sou idiota!” Tive vontade de dar meia volta e te procurar, mas a gafe já tinha sido cometida. E se eu realmente fosse atrás de você o que sua mulher poderia pensar... Ou meu marido?

Júlio Cesar– Eu achei que você estava aborrecida comigo por algum motivo... Sinto-me aliviado agora.

Silêncio

 

Carolina- E o pior você não sabe.

Júlio Cesar– O que foi?

Carolina– Eu havia sonhado com você na noite anterior.

Júlio César– Você está brincando comigo?

Carolina– Pior que não.

Júlio César– E o que foi que você sonhou?

Carolina– Você já ta querendo saber demais. Eu não vou contar.

Júlio Cesar– Agora eu fiquei curioso. Você vai ter que contar!

Carolina– Não.

Julio Cesar– Conta vai! Você me deixou curioso agora.

Carolina– (olhando novamente pelo vidro lateral do carro)No sonho eu trabalhava na clínica. Era meu aniversário e as enfermeiras haviam planejado uma festa pra mim. Você já tinha confirmado presença. Eu estava ansiosa esperando sua chegada. O telefone tocou e uma das enfermeiras atendeu. Ao desligar ela disse:”Ele não vem.A esposa não permitiu”.A comemoração tinha acabado pra mim naquele momento.De repente,tocou a introdução de uma música.Instintivamente eu olhei para trás.Você estava parado ao lado da porta me observando.Naquele momento eu não vi mais ninguém.Aliás,eu nunca via ninguém quando você estava por perto.Daí então você caminhou lentamente e me tirou pra dançar.E nós dançamos sob os olhares de todos.Eu podia sentir seu toque,seu cheiro,sua respiração...depois eu acordei.Foi o melhor sonho que já tive em toda a minha vida.Foi tão real.Até fechei os olhos na tentativa de resgatar o sonho,mas foi em vão.Fiquei decepcionada quando voltei a realidade e me dei conta de que meu marido que não se importava comigo era quem estava dormindo ao meu lado.

 Julio Cesar– Mesmo com esse sonho tão detalhado, você não se lembrou de mim. Como isso pôde acontecer?

Carolina– Sei lá. Explique você. O médico aqui não sou eu.

 

Julio César sorri divertido

Julio Cesar– Parece que foi uma premonição.

Carolina– Eu não acredito em premonições.

Julio Cesar– Alguns espíritas afirmam que durante o sono os espíritos saem do corpo e se encontram com outros espíritos. Você acredita nisso?

Carolina– Claro que não. Foi apenas uma coincidência.

Julio Cesar– Coincidência nada mais é que o universo conspirando a nosso favor, como agora por exemplo.

 

Silêncio

Julio César –Que música estava tocando?

Carolina– Como assim?

Júlio Cesar– Que música nós dançamos no seu sonho?

Carolina– Vou te mostrar. Tenho aqui no pen drive.

 

Carolina coloca o pen drive na entrada de USB do rádio.Apagam-se as luzes que iluminam o carro.

Cena Três

 Acende uma luz no centro do palco.

Carolina está de pé com a fisionomia triste. Quando a introdução da música “Tellme once again (Light Reflections)” começa a tocar ela olha para trás. Julio Cesar sorri, se aproxima e a tira para dançar.A luz do palco se apaga,só o casal é iluminado dando a sensação que só existem eles no universo.

Quando a música acaba as luzes se apagam. Quando ela acende novamente o casal está de volta no carro.

Cena quatro

Julio César olha com ternura para Carolina e ela evita a troca de olhares.

Júlio César –Eu sempre gostei dessa música.

Carolina– Para mim era apenas mais uma música até o sonho. Eu era criança quando ela fez sucesso.

Júlio César– E se não me engano eu fazia cursinho quando ela explodiu nas rádios.

Silêncio

 

Julio César –Tenho certeza que nunca mais vou me esquecer dessa música. E sempre que ela tocar, vou me lembrar de você.

Carolina– Isso já acontece comigo em relação a você.

Silêncio

 

Julio Cesar –Vinte anos... Para mim parece que foi ontem a última vez que estivemos juntos.

Carolina– Engraçado. Só agora é que me dei conta de que o tempo passou. Passou e eu não percebi.

Júlio Cesar– Ninguém percebe o tempo passar. Ele simplesmente passa enquanto você se distrai com a vida.

Carolina– É.

Júlio Cesar– E o que te distraiu esses anos?

Carolina– Sei lá... Tantas coisas me distraíram. Coisas boas e as ruins também.

Silêncio

 

Carolina –É verdade essa história que você ficou com nosso encontro no parque  durante anos guardado na cabeça?

Julio Cesar– Claro. Ninguém gosta de ser rejeitado, principalmente quando a pessoa  que nos  rejeita é uma pessoa que admiramos.

Carolina– Que bom que pude desfazer esse engano.

Silêncio

 

Carolina– Eu preciso ir embora e essa chuva não para.Já deve ter alagado tudo por aí.

Julio Cesar– Eu tenho uma cirurgia marcada pra daqui uma hora. Pela primeira vez na minha vida não estou preocupado com atraso. Não é sempre que se tem uma companhia tão especial.

Carolina– Gentil como sempre.

Mais trovão seguido por clarões de relâmpagos.

 

Julio Cesar– Você foi apaixonada por mim?

Carolina– Como?

Julio Cesar– Você disse que fantasiou comigo, sonhou comigo, mas você não disse se gostava de mim de verdade.

Carolina– E isso importa?

Julio César– Pra mim importa.

Carolina– Eu amava o meu marido. Eu sempre amei. Mas eu vivia um momento conturbado no meu casamento. Sabe aquela fase em que você se torna invisível para o parceiro?Aliado a isso um maldito tédio cotidiano. Casar precocemente não foi bom pra mim nem pra ele. Muita responsabilidade antes da hora nos torna maduros, porém nos endurece.E isso tudo não me permitia ser uma pessoa amorosa em casa.E esses sentimentos represados tinham que ser liberados de alguma forma.Pensar em você foi uma maneira inconsciente de liberar essas emoções contidas.

Julio César– Eu preferia que você deixasse a dissertação de lado e fosse mais objetiva.

Carolina– Ninguém fantasia com outra pessoa sem  envolvimento emocional.

Julio Cesar– Objetividade!

Carolina– Eu gostava... Mas nunca nutri nenhuma esperança. E mesmo que eu tivesse a mais remota indicação do seu interesse por mim meus valores éticos  e morais não permitiriam que eu  demonstrasse meus sentimentos.

Julio Cesar– Se você tivesse me dado algum sinal talvez as coisas tivessem tomado outro rumo.

Carolina– As coisas aconteceram como tinham que ser.

Julio Cesar– Acho que nossas energias foram mal direcionadas.

Carolina– Você ainda não aprendeu que as coisas nem sempre saem do jeito que a gente quer?

Julio Cesar– Você não tem idéia de quantas vezes tive vontade de beijá-la no consultório, de te acolher nos meus braços. Mas a ética profissional e o respeito que eu tinha por você me impediam de tomar qualquer atitude.

Carolina– Eu nunca percebi nada.

Julio Cesar– Não percebeu porque não quis. Essas coisas a gente pega no ar. Não é possível que você não tenha percebido a atenção especial que eu lhe dava.

Carolina (rindo)– Você era gentil com todos os seus pacientes. Eu me lembro muito bem que você tratava todos com carinho. 

Julio César –Não o mesmo que eu oferecia a você.

Carolina– Isso é você quem está dizendo.

Julio Cesar– Muitos deles passaram a se consultar comigo na outra clínica. Por que você não fez isso também?

Carolina– Alguma coisa dentro de mim dizia que eu tinha que me afastar de você e achei que aquele foi o melhor momento pra que isso acontecesse.

Júlio Cesar– Mas se afastar por quê?

Carolina– Porque eu estava passando pela fase do prazer negativo da dependência.

Julio Cesar– Como assim?

Carolina– Eu só me sentia bem quando estava ao seu lado.

Julio Cesar– E isso era ruim?

Carolina– Naquele momento da minha vida era.

Silêncio

 

Julio Cesar– Meu casamento não durou muito tempo. Seis meses depois eu estava separado. Aquele passeio no parque foi uma das inúmeras tentativas de reconciliação.

Carolina– Eu não sabia.

Julio Cesar– Você não era a única que tinha um casamento conturbado.

Carolina– Não é fácil a gente se dedicar tanto tempo a uma pessoa e ver tudo de uma hora pra outra desmoronar.Da uma sensação de vazio e de incopetência...

O barulho de chuva e os trovões vão cessando aos poucos.

 

Carolina –Você se casou novamente?

Júlio Cesar– Tive ao longo desses anos vários relacionamentos que não deram certo. Acho que o ser humano tem que ter o direito de experimentar mesmo que seja só pra saber que não é aquilo o que ele quer pra sua vida.

Carolina– Você está certo.

Carolina olha pela janela.

 

 Carolina –A tempestade já passou. Preciso ir embora agora.

Julio Cesar– Infelizmente tenho que ir também. Um paciente me espera para a cirurgia. Você vai ficar bem?

Carolina– Claro.

Julio Cesar– Posso confiar?

Carolina balança a cabeça afirmando que sim.

Julio Cesar tira da carteira um cartão e entrega a Carolina.

 

Julio Cesar–Aqui tem o telefone da clínica e do hospital em que trabalho. Você tem uma caneta?

Carolina tira uma caneta da bolsa e entrega a Julio Cesar. Ele anota algo no verso do cartão depois lhe entrega a caneta de volta e o cartão.

 

Julio Cesar –Eu anotei o número do meu celular. Me liga pra dizer se chegou bem.

 

 

Carolina ( enquanto coloca o cartão na bolsa) -Eu ligo.

Julio Cesar– Mas é pra me ligar mesmo!

Carolina– Ta.Eu ligo.

Julio Cesar olha insistente para Carolina depois tira outro cartão da carteira.

Julio Cesar –Me empresta novamente a sua caneta?

Carolina entrega.

 

Julio Cesar –Da última vez que pedi pra você me ligar pra me dizer o resultado de um  exame você não ligou.

Carolina– Não liguei porque você me abandonou.

Julio Cesar– Eu não te abandonei. Eu fui transferido de uma clínica pra outra... Vai fala.

Carolina– Fala o quê?

Julio Cesar- O número do seu celular.

Carolina– Pra quê?

Julio Cesar– Se você não me ligar ligo eu pra você.

Carolina olha carinhosamente para Julio Cesar enquanto  diz o número.

Carolina–  Oito meia três quatro trinta e oito quarenta.

Julio Cesar anota o numero no cartão,logo após tira o celular do bolso da camisa e disca um número. O celular de Carolina começa a tocar dentro da bolsa. Ela pega  ao ver o número no visor olha para Julio Cesar.

 

Julio Cesar –Só pra me certificar.

Cena cinco

Julio Cesar sai do carro e Carolina sai também. Ela fica encostada na porta do carro e ele fica parado a sua frente, bem próximo.

Julio Cesar– Já  vou. Mas antes me responde só uma coisa?

Carolina– Faça a pergunta. Se eu achar que devo responder eu respondo.

Julio Cesar– Porque você me confidenciou coisas tão íntimas?

Carolina– Sei lá... Me deu vontade. Acho que  faz parte da maturidade a gente dizer coisas que não conseguia dizer aos vinte anos.E não foi só eu quem fez confidências aqui.Uma coisa levou a outra.

Júlio Cesar olha com ternura para Carolina.

Julio Cesar– Posso te dar um abraço?

Carolina– Por favor!

Julio Cesar abraça Carolina com intensidade e carinho. Eles permanecem abraçados por um longo tempo como se não quisessem mais se afastar um do outro. Julio Cesar faz mais umapergunta, essa ao pé do ouvido.

 

Julio Cesar– Por que você estava chorando daquela maneira?

Carolina–(sussurrando)Acabei de receber a notícia de que meu divórcio saiu.

Apagam-se as luzes.

 

Toca a música Mudanças (Vanusa)

 

 

 

Fim

 

 


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Atualizado em: Ter 3 Abr 2012

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