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O Mistério do Guaporé

Acredite, eu não nasci aqui. Tampouco projetei viver o resto de minha pobre vida neste lugar esquecido por Deus. Ocorre que a vida tem dessas coisas. Ela se impõe. Quando atuei diante das circunstâncias que o passado me legou, procurando produzir circunstâncias distintas daquelas com as quais me deparei, vim parar aqui.
Era abril de 1969 quando as escolhas que me foram apresentadas eram viver ou morrer. Permanecer com vida, contudo, significaria partir para outro lugar. Os amigos com os quais partilhei a juventude e os mesmos ideais, ou estavam mortos ou estavam no estrangeiro. Não me agradava a ideia do estrangeiro, portanto, poderia continuar a luta que havia iniciado há uns cinco anos antes, porém, também não me agradava a ideia da morte. Por isso, busquei o meio termo e parti para a Amazônia. Rondônia foi o local escolhido, não por convicção, mas por puro acaso.
Virei operador de balsa, realizando o transporte de cargas e pessoas de Guajará, cidade brasileira localizada no lado direito do Rio Guaporé, à Guayará, cidade boliviana situada na margem esquerda do rio e vice-versa. Quando se atua neste tipo de serviço, você não tem hora para dormir e nem tampouco para acordar. Infindáveis foram as vezes em que me levantei no meio da madrugada para levar pessoas para a outra margem do rio. Na maioria delas o motivo era contrabando de produtos ou de drogas. Isso me importava pouco, pois, para um balseiro como eu ou qualquer um que ganha a vida cruzando o rio, interessa menos o conteúdo da carga e mais o valor da travessia. Cruzar o rio fora de hora me rendia um bom dinheiro.
Em alguma madrugada, porém, tocou o sino da balsa que estava ancorada na barranca do rio. Esse era o sinal de que algum passageiro estava à minha espera. Naquela noite, entretanto, depois da última travessia - 22 horas era o último horário - bebi mais do que devia, portanto, àquela altura da madrugada ainda estava meio grogue. Levantei depressa, tal ímpeto revirou o álcool que ainda estava armazenado em meu estômago e tive que evacuar toda a cachaça ingerida naquela noite no assoalho da casa. Fiz gargarejo com a água que sempre deixara em um balde sobre a mesa da cozinha na esperança de que pudesse eliminar o gosto amargo do vômito. Com a mesma água molhei minha cabeça, fingindo que havia penteado os cabelos, vesti a camisa branca de botão e marchei rumo ao cais onde estava ancorada a balsa.
A surpresa foi arrebatadora, tanto que ainda hoje me provoca episódios de arrepio. Uma ruiva de vestido vermelho, tal qual o batom que lhe desenhava a boca, com um cigarro aceso enfiado nos vão de seus delicados dedos, estava escorada no grosso poste de ipê que sustentava a estrutura de madeira que dava acesso a balsa. A surpresa não decorreu-se tão somente em razão de transportar uma bela dama àquela hora da noite, isso não era novidade para um balseiro veterano como eu. No entanto, de todas as mulheres que transportei fora de hora até aquele fatídico momento, ou eram prostitutas, ou era alguma "mula" fazendo o serviço sujo do tráfico, para logo ser desovada em alguma beira de estrada qualquer. Aquela, porém, sem incorrer em nenhum julgamento Lombrosiano, não tinha cara de mula, tampouco de prostituta.
Em que pesem ditas circunstâncias, não era meu serviço fazer análises de passageiros. Minha missão consistia em fazê-los cruzarem o rio em troca de dinheiro, nada mais nada menos, assim como toda e qualquer atividade econômica do mundo capitalista que tanto abominei. Portanto, não me interessava o que faziam ou, ainda melhor, qual razão os levavam atravessar o rio.
Apenas cumprimentei-a cordialmente, pois a boa educação foi a única coisa que me acompanhou a vida inteira. Antes que pudesse dizer o custo da travessia, entretanto, ela jogou sobre meus peitos uma nota de 500 cruzeiros. Achei estranho, pois aquela nota havia sido inserida há pouco tempo no mercado e a travessia custava muito menos. Contudo, "pecunia non olet" já dizia o professor tributarista no segundo ano do curso de direito que a ditadura não me permitiu concluir.
Abri o cadeado que através de uma corrente prendia a balsa à margem e, segurado em sua delicada mão, ajudei-a caminhar sobre a estrutura de madeira que dava acesso a balsa, pois, embora ela fosse dotada de uma rara beleza, ao que parece, uma pequena deformação nas pernas a impedia de caminhar perfeitamente.
Rapidamente abri o cadeado da caixa de ferramentas, retirei de lá a manivela e acionei o motor. Somente 21 minutos separava-nos do outro lado da margem do rio. Àquela altura da madrugada uma fina brisa de fumaça repousava sobre a água. Era o período das cheias, portanto, haveria de tomar bastante cuidado, pois qualquer descuido e um tronco de árvore, arrancado de alguma margem pela força avassaladora das águas, chocar-se-ia com a balsa e poderíamos tombar.
Sem que eu percebesse ela chegou devagarinho atrás de mim. Quando dei por fé ela já havia me abraçado pelas costas e com as mãos acariciava meus peitos. O gesto causou-me espanto, porém, a maciez de suas mãos me acalmava, impedindo qualquer reação contrária, de tal sorte que acabei por ceder aos seus afagos. Já fazia um bom tempo que eu não sabia o que eram os carinhos de uma mulher. A vida havia me jogado para além da fronteira da solidão. Todo dia transportando centenas de pessoas e, no entanto, era terrivelmente uma pessoa só. Minhas únicas companhia eram a balsa, o rio e a cachaça.
No entanto, naquela noite, aquela estranha criatura me mostrou que ainda existia em mim vestígios do homem que um dia fui. Muito embora os cabelos e a barba requeressem uma maior higiene, eu ainda era bem apessoado, pois, o esforço físico exigido no serviço que desempenhava na balsa, manteve meu corpo em forma. Meu odor que era minha perdição. A vida de balseiro fez com que o rio entranhasse em minha pele e isso fazia com que as mulheres tomassem uma certa distância de segurança.
A enigmática mulher daquela noite, porém, não se importava com meu odor. Enquanto ainda me apertava as costas, perguntei-a se meu cheiro de rio não lhe causava mal-estar e ela prontamente respondeu que não. Explicou-me que sua família sempre viveu do rio e que foi exatamente meu perfume que a atraiu. Neste momento ela deixou as minhas costas e se pôs a minha frente. Pegou na minha mão e começamos a dançar a canção que ela mesmo entoava. Desliguei o motor da balsa e nos amamos até adormecer.
Quando o dia clareou estava a muitos metros rio abaixo. Minha sorte foi que a balsa encalhou em alguns arbustos em uma curva qualquer do rio. Olhei a minha volta e sequer havia vestígios da mulher com quem passei a noite. Quando compartilhei o acontecido, obviamente ninguém acreditou na minha história. Muitos diziam que adormeci bêbado na balsa e tudo não passara de uma invenção para justificar o porquê de ter ficado à deriva.
Os dias passaram. Nove meses mais tarde em um dia de muita chuva cujas águas do Rio Guaporé estavam bastante revoltas, de tal sorte que até abortei as travessias, quando descansava na rede de minha pequena palafita, construída sobre o rio, ouvi um barulho. Fui até a porta e uma criança, uma linda menininha, fora deixada na porta, olhei para todos os lados e vi quando algo não identificado submergiu nas águas escuras do rio.
A criança foi rejeitada em toda casa que tentei deixá-la. Portanto, tive eu mesmo que criá-la. Os primeiros anos foram fáceis, pois apenas leite e farinha era o suficiente para alimentá-la. Depois que ela completou cinco anos, no entanto, a pequena criança revelou uma abrupta mudança em sua dieta alimentar, desenvolvendo, consequentemente, uma estranha compulsão por carne. Não era por carne preparada ao fogo, cozida, frita ou assada, como deves pensar. Era por carne, crua e sem tempero.
Quando os peixes já não eram mais o suficiente para saciar o seu estranho paladar, ela experimentou pela primeira vez a carne humana. Em tal ocasião tinha doze anos de idade. Posterior a isso, uma a uma as crianças dos ribeirinhos que viviam próximos das margens do rio começaram a desaparecer.
Embora eu soubesse o real motivo dos desaparecimentos não podia revela-lo, pois, por mais que tentava, um estranho encanto que inclusive desafiava a minha lógica racionalista, acabava me impedindo. Isso me incomodava muito. Ora, logo eu que estacionei neste lugar esquecido por Deus em razão de lutar contra a exploração do humano pelo humano, era conivente, quando debaixo do meu nariz, a vida de uma era à custa de tantas outras. Mas, inerte por uma força sobrenatural, eu nada podia fazer.
Na noite em que ela completou quinze anos fiz um bolo com apenas nós dois de convidados na varanda da casa. Tive, evidentemente, medo de que minha filha devorasse algum convidado e entregasse nosso segredo. Antes de cortar o bolo, no entanto, ouvi um barulho na água. Como era a temporada da cheia, a água do rio dava até o quinto degrau da escada. Foi por aí que emergiu uma mulher das escuras águas do rio. Sacou a toalha que estava pendurada no varal da varanda e tapou sua nudez. Era ela! A misteriosa mulher que me pediu para cruzar o rio há mais de quinze anos atrás.
Ela chegou até mim, tinha as mesmas feições, parece que o tempo não lhe havia sido cruel como fora comigo. Deu-me um beijo e agradeceu-me por ter cuidado de nossa filha. Disse que nossa garotinha já havia completado a sua fase humana, estava pronta, portanto, para assumir a sua verdadeira natureza. Depois disso as duas sumiram nas águas e desde esse então jamais as vi.
- Acabou a entrevista almofadinha – interrompeu o carcereiro. Tenho certeza que ele deve ter contado a mesma ladainha de sereias e botos de sempre. Mas a verdade é que esse monstro matou a filha e mais de 20 crianças. A história é bem contada. Talvez seja por isso que essa criatura atraia tantos jornalistas. Mas lhe garanto é só a mente fértil de um assassino.
Juca era mais um de mais de uma dezena de jornalistas a entrevistar o folclórico Carlos da balsa, buscando evidenciar as mortes do caso que ficou conhecido como "O Mistério do Guaporé". O referido caso foi encerrado, levando Carlos a júri popular com a consequente condenação do mesmo a mais de 600 anos de prisão pela morte de 22 pessoas, sendo uma delas Iara, sua filha adotiva. Algumas pontas soltas, no entanto, como por exemplo: o corpo da filha que nunca fora encontrado, bem como alguns desaparecimentos coincidirem com as travessias de Carlos no rio, somado as bem articuladas histórias do balseiro, rendiam várias teorias da conspiração. O fato é que as ossadas de 20 crianças estavam no fundo do rio próximo a sua casa, sendo que uma estava debaixo do assoalho de sua própria casa, bem como o misterioso sumiço de sua filha adotada, foram motivo o bastante para endossar a sua culpa. E mesmo que não houvessem provas robustas, havia-se uma convicção coletiva de que o judiciário deveria dar uma resposta à altura para a população que estava sedenta por vingança.
Após o término da entrevista Juca resolveu passar a noite naquela cidade, procurando inspiração para a matéria sobre Carlos que redigiria para a revista que trabalhava cuja edição sairia no mês seguinte. Marchou até a boate Flor de Cogumelo, único lugar da cidade que podia-se trocar dinheiro por sexo e bebidas, construída onde no passado fora o cais da balsa – inativa depois da construção da ponte que interligou as cidades – sentou-se onde iniciava o envernizado balcão de carvalho, de costas para o salão. Sentiu uma palmadinha nas costas, dessas quando se chama um amigo. Virou os olhos e uma ruiva de vestido vermelho tal qual o batom que lhe desenhava a boca, com um cigarro aceso enfiado nos vão de seus delicados dedos, sussurrou suave em seu ouvido:
- Procurando alguma história, bonitão?
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Atualizado em: Qui 16 Abr 2020

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