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Conto 12 - Meu retorno à casinha pequenina


(Adaptação da música de Domínio Público “Casinha Pequenina” de Sílvio Caldas)

A vida é muito engraçada, posso até dizer que ela é como um jogo de tabuleiro, ela nos dá vários caminhos a seguir, quando escolhemos o caminho interagimos com as outras peças que vão aparecendo e dependendo do rolar dos dados, algumas dessas peças andam lado a lado conosco. Quando nosso trajeto muda repentinamente algumas dessas peças ficam para trás e, quanto mais avançamos um movimento em falso pode nos levar ao ponto de partida.
O telefone tocou naquela quente manhã de sábado enquanto eu fazia a faxina no meu apartamento, saí do quarto e fui até a sala atender a ligação:
- Alô.
- Terezinha é você minha filha? - Era a minha mãe do outro lado da linha.
- Sim mãe sou eu. O que aconteceu? A senhora parece aflita.
- Eu to bem filha, mas tenho uma notícia ruim pra te dar.
- O que aconteceu mãe? - Um arrepio me correu pela espinha, sentei no sofá esperando pelo pior.
O Emanuel morreu.
Permanecemos alguns segundos em silêncio até minha mãe perguntar:
- Você vai vir pra cá Terezinha?
- Vou sim – Respondi sentindo um vazio que nunca imaginei ser possível de sentir - “Bença” Mãe.
- Deus te abençoe minha filha.
Continuei a faxina. Enquanto limpava a casa e fazia o almoço fiquei pensando no que iria dizer ao Armando, meu marido com quem eu estava casada há dois anos.
Armando voltou do trabalho na hora que eu estava colocando a mesa para o almoço, me beijou e foi até o banheiro lavar as mãos. Sabia que aquela não seria uma conversa fácil, por isso caprichei na comida, sempre com a salada de alface e tomate e a bisteca acebolada que ele adora. Minha mãe sempre dizia que qualquer homem se torna um bom ouvinte quando está bem alimentado ou de calças arriadas. Ele estava terminando o segundo prato quando entrei no assunto:
- Armando, minha mãe ligou faz algumas horas...
- Sério? - Perguntou cortando – E como ela está?
- Ela está bem, mas preciso viajar até Campo Florido.
- O que aconteceu Terezinha?
- O Emanuel morreu – Respondi tremendo, com medo da reação de Armando.
Armando permaneceu em silêncio por alguns instantes e perguntou:
- Seu ex-marido?
- Sim – Respondi.
- E do que ele morreu?
- Mamãe não disse.
- E por que você tem que ir?
- Eu sinto que devo.
Armando ficou irritado, levantou-se da mesa e disse gritando:
- Você não devia nada a ele, muito pelo contrário, ele foi o machista que te tratava como uma empregada e não te deixou terminar os estudos. Você não tem por que ir Terezinha.
- Mas eu quero.
- Por quê?
Levantei gritando e respondendo a altura:
- Me separei dele com dor no coração... Eu era apaixonada por ele, indiferente de qualquer coisa, você não tem idéia de como isso foi difícil pra mim.
Armando começou a andar de um lado pro outro, eu sabia que ele não iria falar nada então continuei chorando:
- Eu amo você, o Emanuel não era nem metade do homem que você é, mas ele foi muito importante pra mim é o mínimo que eu devo fazer.
Meu marido foi até o quarto e ficou lá trancado por uns 10 minutos, saiu do quarto sentou-se ao meu lado no sofá, segurou a minha mão e olhando nos meus olhos disse enquanto me dava o dinheiro para a passagem:
- Faça o que tem que fazer – Me deu um beijo no rosto e me abraçou.
- Tem certeza?
- Mesmo morto eu ficaria feliz se estivesse no lugar dele.
Nasci em Campo Florido, cidade vizinha de Uberaba. Morava eu, meu pai, minha mãe e meu irmão mais velho Reginaldo em uma casa de alvenaria próximo à saída da cidade. Foi lá que conheci Emanuel, eu tinha 12 anos, ele seis anos mais velho do que eu, e morava num sítio fora da cidade com a mãe e largou a escola para cuidar da lavoura e ajudar nas despesas. Emanuel era melhor amigo do meu irmão Reginaldo, os dois viviam fazendo planos de crescer e montar uma transportadora. Lembro que meu irmão disse uma vez:
- Pode esperar vou ser o dono dessa cidade.
Até parece clichê essa história de se apaixonar pelo amigo do irmão mais velho, mas foi assim mesmo que as coisas aconteceram, papai sempre que percebia alguma troca de olhares suspeitas entre nós dois dizia:
- Vê se te apruma menina, um rapaz desse não dá futuro pra ninguém. Você tem é que se casar com um “Doutô” ou um “Adevogado”.
Meus pais impediram o namoro, Reginaldo nem podia mais receber o amigo em casa, a partir daí começamos a namorar as escondidas. Meus pais me expulsaram de casa quando descobriram que eu estava grávida aos 14 anos, e Emanuel me levou para morar com ele no sítio. Vivíamos como marido e mulher, embora não fosse de papel passado.
Mesmo sabendo que não seria nada fácil Emanuel estava muito feliz porque iria ser pai, numa noite estávamos sentados na varanda da casinha pequenina conversando:
- Você acha que eu vou ser um bom pai? - Perguntou me abraçando.
- Claro que vai – Respondi – Por que a pergunta?
- Fico pensando no meu pai, quando ele abandonou minha mãe eu era muito novo, mal me lembro do rosto dele eu não quero que o meu garoto passe pelo o que eu passei.
- E como você tem tanta certeza que vai ser menino?
- Alguma coisa me diz que vai ser um garotão bonito e forte como o pai – Disse e me deu um beijo em seguida – Você está com algum desejo meu amor?
- Desejo de que?
- Sei lá, aqueles desejos que as mulheres têm quando ficam grávidas, por exemplo, frango com abobrinha e jiló, geléia de mocotó com rapadura...
- Que é isso Emanuel, detesto jiló, além do mais acho que essa história de desejo é frescura.
- É mesmo?
- Na verdade eu estou com uma vontade louca de comer coco.
- Coco? Isso a gente resolve.
No dia seguinte Emanuel trouxe uma caixa cheia de cocos e plantou uma muda de coqueiro do lado da casa, me lembro que ele estava cavando o buraco quando eu perguntei:
- O que você está fazendo? Quer me entupir de coco?
- Entupir não, assim você ter coco sempre que quiser.
- Então se eu tiver um desejo louco por limão você vai plantar um limoeiro pra mim?
- Continue tendo desejo por frutas e vamos ter um pomar logo logo.
Os quatro meses seguintes foram desastrosos em todos os sentidos, a mãe de Emanuel faleceu, uma geada sem precedentes destruiu toda a plantação de milho e algodão e minha gravidez que já era de risco foi se complicando cada vez mais. Estava entrando no quinto mês de gestação quando acordei de madrugada com uma hemorragia muito forte, no dia seguinte o médico confirmou que a criança havia morrido.
Depois daquele dia fatídico as coisas foram mudando, Emanuel cada vez mais distante, as plantações não cresciam da mesma forma, os animais não produziam tanto quanto antes e o nosso amor murchava junto, o coqueiro continuava crescendo, mas os cocos ainda não apareciam. Fazia dois anos que eu tinha saído de casa e não falava com o meu pai, somente mamãe e Reginaldo vinham me visitar e sabia que podia contar com eles naquele período difícil embora o Emanuel não quisesse ajuda dos parentes, principalmente em dinheiro, mas sempre minha mãe dava algum dinheiro para que eu fizesse algumas compras para casa.
Eu estava com 17 anos na época que comecei a pensar em correr atrás do tempo perdido e terminar os estudos. Preparei um jantar para Emanuel da mesma forma como fiz com o Armando, sabia que ele não era um bom ouvinte, mas não custava tentar, assim que terminamos de comer puxei o assunto:
- Emanuel eu queria conversar com você.
- Diga.
- Eu quero voltar pra escola e terminar os estudos.
- Pra quê? - Perguntou de cara amarrada, instantes depois continuou – Não precisa de escola pra ser esposa e isso você já faz bem.
- O que quer dizer com isso?
- Você sabe por que as pessoas estudam? Pra aprender um monte de coisas que nunca mais vão usar e depois ir pra faculdade pra aprender uma profissão e trabalhar fora. Você já tem uma profissão, é dona de casa e minha mulher, sua vida é aqui ao meu lado.
- Você não percebe que esse sítio não está sendo o bastante para nos sustentar. Se eu terminar os estudos posso conseguir um serviço na cidade e trazer dinheiro pra casa.
Emanuel se enfureceu e levantou da mesa esbravejando:
- Você vai fazer o que eu mando você é minha mulher e vai ficar aqui, cuidando da nossa casa.
- Não fui eu que escolhi isso – Disse em prantos – Não fui eu que escolhi engravidar e ser mandada pra fora de casa, nem mesmo foi escolha minha perder nosso filho. Você me apoiou não me abandonou me deu uma casa pra morar, mas agora as coisas são diferentes, você não me procura mais, me trata como um lixo. Eu só quero que as coisas melhorem e quero fazer minha parte pra isso acontecer.
Emudeci esperando que ele dissesse alguma coisa, ficamos calados olhando um para o outro durante alguns minutos que pareciam até uma eternidade. Emanuel se levantou abriu a porta e me disse:
- Você quer estudar? Quer arrumar um emprego? Tudo bem pode fazer isso, mas assim que passar por essa porta você não volta nunca mais, ouviu bem? Ouviu?
Emanuel deitou no sofá e dormiu lá mesmo, passei a noite inteira em claro e antes mesmo do sol nascer já estava decidida, fiz minhas malas, parei em frente à varanda e dei uma boa olhada em tudo o que estava abandonando principalmente o coqueiro que foi plantado em meio a tanto amor e que hoje estava quase sem vida. Só tinha um lugar para ir, a casa de meus pais, quando cheguei me receberam de braços abertos, inclusive meu pai com quem eu não falava fazia quatro anos. Eu esperava que o Emanuel aparecesse querendo se reconciliar ou até mesmo para levar de volta pra casa à força, mas semanas se passaram e nada.
Dois anos haviam se passado desde que eu tinha abandonado o Emanuel, nem sequer ouvi falar nele, se estava bem o que estava fazendo da vida, mesmo vivendo em uma cidade tão pequena. Nesse meio tempo meu pai faleceu com uma grave pneumonia, terminei os estudos através de um supletivo e arrumei um emprego de secretária no escritório de um advogado da cidade. Foi durante um congresso em Uberaba que conheci o Armando, começamos a namorar por correspondência, logo nos casamos e fui morar com ele em São Paulo.
Dentro do ônibus toda essa história me veio à tona, tantas juras e promessas que antes havia se espalhando como poeira no vento parecem ter sido sugadas de volta para o meu coração. Assim que desembarquei em Uberaba deparei com Reginaldo me esperando, dei-lhe um abraço bem apertado e fomos de carro até Campo Florido.
Fazia uns dois anos que eu não via minha família e fiquei surpresa ao ver o carrão que o Reginaldo estava dirigindo, Um utilitário zero kilometro, perguntei na hora:
- Que banco você roubou Reginaldo? De onde saiu um carrão desses?
- Muito trabalho minha irmã – Respondeu – Lembra-se de que depois que você casou comprei meu primeiro caminhão e comecei a fazer entregas?
- Claro que lembro.
- Depois de um ano eu tinha feito algumas economias e o meu único concorrente na cidade acabou falindo, aí fiz um empréstimo no banco e junto com as minhas economias comprei tudo, o galpão, os caminhões e as ferramentas tudo a preço de banana.
- Não acredito.
- Terezinha eu estou ganhando tanto dinheiro que se quiser posso usar notas de 20 reais como papel higiênico – Rimos juntos – E como anda a faculdade? Está gostando de fazer direito?
- Estou sim – Ficamos alguns segundos em silêncio então continuei – Eu me lembro daquela época que você e o Emanuel faziam planos de montar uma transportadora e quem diria que você conseguiria tudo sozinho hein?
- É verdade, eu até chamei o Emanuel pra ser meu sócio, sugeri que ele vendesse o sítio e usasse o capital pra investir na empresa, mas não quis nem saber. Aquele sítio estava praticamente sem vida, mas ele não arredou o pé.
- Ele te disse o porquê? – Perguntei.
- Aquele homem era mais duro do que pedra se ele tinha um motivo eu é que não ia conseguir arrancar dele, talvez você conseguisse.
- Do que ele morreu?
- Os médicos dizem que foi por causa da dengue, não me surpreende, o sítio dele se tornou um criadouro de mosquitos de tão mal cuidado.
- Reginaldo me leva pro sítio do Emanuel primeiro, por favor.
- Tem certeza? Não quer ir ver a mãe antes?
- Eu quero, mas sinto que preciso fazer isso agora.
Cada kilometro naquela estrada de terra criava um poço de nostalgia no meu coração lembro-me de cada momento feliz e triste que passamos juntos e por mais que algumas lembranças me machucassem precisava ir até o fim.
Assim que chegamos no sítio percebi que muitas coisas haviam mudado, não tinha mais nenhum animal ou plantação, o capim tomou conta do lugar, a casinha pequenina estava caindo aos pedaços comida por cupins. O que mais me surpreendeu foi ver que ao lado da casa o coqueiro estava de pé, grande bonito e frondoso. Entrei na casa sozinha o cheiro daquele homem que tanto amei estava por toda a parte, tudo estava ali, o sofá velho onde Emanuel se deitou depois da nossa última briga, a mesa onde jantávamos a cadeira de balanço onde a mãe dele faleceu, a cama e a colcha de retalhos com a qual dormíamos todas as noites. Procurei em vão pela casa alguma coisa que Emanuel tivesse deixado para mim, uma carta dizendo que se arrependia muito, que sentia saudades ou coisa parecida, mas lembrei que ele não sabia escrever.
Fui até a varanda da casinha pequenina, o sol estava se pondo, nunca senti tanta melancolia, de lá mesmo perguntei para Reginaldo:
- Irmão, o Emanuel foi enterrado no cemitério? Você pode me levar até lá?
- Ele não foi enterrado no cemitério Terezinha.
- Então aonde ele foi enterrado?
- Emanuel fez questão de ser enterrado debaixo do coqueiro.
Naquele mesmo instante uma coco caiu, o único da árvore. Não sei dizer se foi um sinal, ou se foi uma forma de dizer que aquele amor que foi tão importante e especial para nós estava vivo de certa forma. Esse jogo da vida nos surpreende a cada rolar de dados, e para mim, essa foi à etapa mais importante de todas.
Jamais me esquecerei da casinha pequenina onde o nosso amor nasceu e que tinha um coqueiro do lado, mas dessa vez o coitado de saudade não morreu.

(Não perca semana que vem o Conto 13 - Não sei dizer que te amo)
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Atualizado em: Sex 15 Jan 2010

Comentários  

#21 ViniciusMachado 26-02-2010 09:17
Gracias para ti também minha cara Kokranne, é sempre um prazer ter sua participação, volte sempre, te agradeço pela visita, o comentário e o voto.
#20 Kokranne 25-02-2010 23:06
Lindo, Vinicius...doce e triste...mas verdadeiro. Parabéns. Estrelei.
Gracias pelas belezas que escreves. Abraços.
#19 ViniciusMachado 03-02-2010 15:53
Rackel você sempre me deixa sem jeito com os seus comentários, é gratificante saber que o meu trabalho está calando fundo cada vez mais para os meus leitores. Te agradeço a visita, o comentário e o voto. Volte sempre, sua participação é mais que importante pra mim.
#18 ViniciusMachado 03-02-2010 15:51
Obrigado Juarez, estou em dívida com você e varios outros amigos do site, a monografia está tomando muito do meu tempo e não estou conseguindo nem ler e nem escrever com a mesma frequência, mas assim que puder te faço uma visita. Te agradeço muito pelo comentário, pela visita e pelo voto, um abraço, fiquei muito feliz que tenha gostado do conto.
#17 rackel 03-02-2010 11:59
Vinicius, tu nos transporta para o universo relatado no texto, com uma maestria que só se vê nos grandes escritores. E mais, com distanciamento e alteridade típicos dos melhores do ofício. Parabéns. Dez, prá ti.
#16 Juarez_do_Brasil 03-02-2010 07:59
Hoje tirei um tempo para ler este maravilhoso texto. Comovente e bem real. Muitos romances são desfeitos, mas o amor permanece vivo na lembrança. Parabéns!
#15 ViniciusMachado 21-01-2010 12:11
Obrigado Santiago, fiquei muito feliz de saber que gostou do texto, sua participação é muito importante pra mim, apareça sempre. Te agradeço a visita, o comentário e o voto.
#14 ViniciusMachado 20-01-2010 11:45
Obrigado Magia, fico muito lisongeado com as suas palavras, estou fazendo o melhor possível a cada trabalho, volte sempre, sua participação é muito importante pra mim, te agradeço a visita, o comentário, o voto e a favoritada, mil bjos.
#13 magia 20-01-2010 11:34
Vinicius queria ter sempre uma nova palavra para cada texto, mas não consigo...Simplesmente ADORO...Seja drama, humor, sátira...Menino, você a cada conto se supera...Parabéns!!!Estrelei e favoritei... :D
#12 ViniciusMachado 18-01-2010 19:04
Obrigado Oliva, é sempre um prazer receber sua visita, fico muito feliz que tenha gostado do conto, apareça sempre, te agradeço também pelo comentário e pelo voto, um abraço.

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