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O caminho do mendigo - Capítulo 3 - A revelação
No dia seguinte, na hora do almoço, quando desci com o lixo de sobras de comida lá estava o Sr. Júlio Adriano. Limpo, vestido, de unhas cortadas e limpas, cabelo lavado e penteado, um par de chinelos nos pés. O povo da pousada, depois que eu paguei a diária e hospedei ele lá, resolveu ajudar também. Parece que a atitude de gentileza é mesmo contagiante afinal ele tinha mais que aquilo que eu havia dado porque outras pessoas resolveram enxergá-lo também! E eu olhei nos olhos dele e disse: Sr. Júlio o senhor não almoçou no restaurante? O senhor tem direito de almoçar lá hoje, te avisaram? E ele riu e respondeu: a senhora é sempre assim? Perguntei: assim como? Ele respondeu: julga, decide, comunica, condena e executa? E deu boas risadas. Eu não entendi direito na hora, levei uns segundos para perceber a ironia de que ele estava me dizendo que eu o havia julgado como faminto que ele sempre era todo dia, sem notar que naquele dia ele não estava ali para comer as sobras e sim por outro motivo. Ali naquele momento aprendi outra lição: ouvir, compreender, avaliar, analisar primeiro e falar ou me posicionar depois. Pedi desculpas e fiquei em silêncio, esperando que ele dissesse o que tinha a dizer. Ele, percebendo meu silêncio, perguntou: a senhora tem um tempinho para conversar? Eu estava no meu horário de almoço e então disse que sim. Propus que fôssemos sentar na sorveteria, tomaríamos um sorvete e conversaríamos. Ele aceitou. E a conversa seria a história mais incrível que eu já ouvi na minha vida!!! Nos sentamos e ele começou a me contar... "Tenho 46 anos, sou de BH em Minas Gerais. Lá eu estudei curso técnico de administração de empresas, me graduei em gestão de recursos humanos e trabalhei a vida toda nestas áreas administrativas. Nunca fui feliz fazendo isso, mas isso pagava minhas contas e garantia minha sobrevivência. Sempre me senti um estranho no mundo, meio fora dos padrões, um nadador da vida nadando contra a maré. Nunca me casei, porque nunca quis que um casamento acontecesse na minha vida por força das circunstâncias. Se fosse para casar, construir família, ter filhos, uma casa, um carro e dois cachorros, teria que ser uma escolha minha e dela (fosse ela quem fosse) e como ela nunca apareceu, eu não a encontrei em nenhuma relação que vivi, nada disso foi construído. E como eu não podia construir tudo isso sozinho, arrumei outras construções. Foquei na carreira, foquei na cultura, ocupei meu tempo com tudo aquilo que me acrescentasse conhecimento sobre a vida, sobre o mundo, sobre as pessoas e sobre mim mesmo. Rodei muitas religiões, transitei por todo tipo de charlatanismo, eliminei da minha vida família e demais pessoas que me eram nocivas, que me faziam mal, que me despertavam o meu pior e não o meu melhor. A consequência disso foi isolamento e solidão. Construí algumas amizades reais, com pessoas reais, que se parecem comigo, mas somente elas não me supriam o afeto, faltava alguma coisa. Achei que o que faltava era amar a mim mesmo e fui fazer terapia para aprender como se ama a si mesmo, e eu aprendi. Mas também aprendi, que depois que a gente aprende a amar a si mesmo, a gente quer compartilhar esse amor com outro alguém e de novo a gente cai na mesma busca: encontrar alguém que seja como nós, para amar e ser amado. Estranhamente quanto mais eu buscava isso, mais eu não encontrava. Um dia, olhei de fora pra minha vida e eu estava: doente emocionalmente, carente de afetos verdadeiros, mal nutrido de emoções saudáveis, numa vida sem prazer, sem gosto, amargo e amargurado. Nada tinha graça, meu cabelo tava caindo, minhas unhas lascando, eu engordava cada dia mais chegando a ter 120kgs, e eu vivia para trabalhar 10, 12, 15 horas por dia, 500 trabalhadores para administrar, uma gerente nociva, uma equipe cheia de pessoas falsas e competidoras inescrupulosas, onde eu ganhava um salário bom, mas tinha um alto custo de vida, e no tempo que sobrava eu só comia e dormia. A vida se resumia em trabalhar, comer, dormir e pagar contas. Nos finais de semana tinhas os churrascos com os amigos, mas isso não alimentava mais a minha alma. Fui ao médico e ele disse que se eu não mudasse minha vida, em 6 meses eu teria um ataque, um surto. Com medo, tomei decisões. Resolvi pedir um acordo no trabalho, peguei o dinheiro do acerto, decidi mudar de cidade, fazer alguns cursos e tentar mudar de profissão. Mudei para cá, um lugar paradisíaco, interior, sossegado, silencioso, longe de todo o estresse que o médico havia diagnosticado. Quando cheguei aqui, tinha uns primos que ajudaram, mas a ajuda tem um preço, sempre tem. O preço era afetivo, eles ajudavam mas se sentiam livres para fazer trânsito na minha vida, invadir minha privacidade, limitar e/ou tirar minha liberdade. Os trabalhos que apareceram eram subempregos, eu não queria voltar para minha área de formação, o curso de barbeiro do Senac que custou 6 mil reais ao todo, somando mensalidades, materiais, equipamentos, transporte e alimentação, não era suficiente para conseguir um trabalho numa barbearia e para fazer outros cursos e melhorar a qualificação eu teria que ter mais dinheiro, pois os cursos custam em torno de 2 a 3 mil reais. Pensei em trabalhar cuidando de idosos e prestando serviços de barbearia, mas não encontrei oportunidades na região. Estava vivendo sob pressão, ansioso, infeliz, solitário, pensando em suicídio... E assim, um belo dia, eu surtei. Tive um ataque, perdi a memória, fui pro hospital que me socorreu e depois me pôs na rua. Eu não sabia quem eu era, não tinha para onde ir, não me lembrava de nada a não ser de que havia uma cidadezinha boa de se morar. Imaginei que essa cidadezinha fosse o lugar onde eu morasse e vim para cá na esperança de que alguém me reconhecesse. Ninguém reconheceu, afinal os primos não moram aqui, apenas têm casas de veraneio aqui e quase não vêm para cá. Além deles eu não conhecia mais ninguém, então fui ficando pelas ruas, dormindo debaixo das marquises dos hotéis e pousadas, nas portas do comércio e ninguém me reconheceu, mas também ninguém me agrediu, ninguém me expulsou, então fui ficando. Depois de uns meses eu retomei a memória, mas já estava vivendo a identidade de um mendigo e ninguém havia me procurado, ou seja, eu não era importante para ninguém, logo não fazia sentido retomar aquela vida da qual agora eu me lembrava. Caí em desespero, pois eu tinha fome, sede, fedia e não tinha onde dormir, onde tomar banho, onde ficar, onde ser acolhido, onde ser ajudado. Ninguém sequer olhava para mim, então não concebia qualquer possibilidade de pedir trabalho, me vi cego na minha própria realidade, sem saída, sem perspectiva, sem solução. Morrer parecia a melhor escolha, mas eu não tinha coragem de resolver isso. Eu não entendia porque a vida me colocou nessa condição indigna! Me revoltava com isso e não enxergava saída. Apenas acordava todo dia, tentava conseguir comida e dormia para fugir. Até então, era invisível, às vezes incômodo. Todas as noites pedia ao universo que isso acabasse logo. Me perguntava até quando? Não cria mais em deus, não tinha esperança em nada nem em ninguém. Só queria que tudo acabasse. E aí, um dia a senhora me enxergou e eu queria só dizer obrigado. Obrigado por me ver e querer me olhar mais de perto." Eu, muda, não sabia o que dizer. Sempre me perguntei porque a vida nos coloca em situações indignas? Ainda que pareça que não merecemos. Porque? E eu aprendi que porque é a pior pergunta que se pode fazer. A resposta para um porque tem sempre o objetivo de apontar um culpado, de acusar alguém e nos colocar no lugar da vítima. Não somos vítimas, construímos a nossa realidade com as escolhas que fazemos. Pagamos um preço por isso e às vezes esse preço é alto demais. Mas alto ou baixo, ele é sempre nosso. Alguém tem que pagar. Esse alguém somos nós. Mas, às vezes, é possível pagar com ajuda. Reconhecer-se necessitado de ajuda é o primeiro passo. Pedir ajuda é o segundo. À partir daí o céu é o limite. Uma ajuda abre novas perspectivas, possibilidades, probabilidades, oportunidades. E todo caminho, quando se começa a caminhar leva a algum lugar. Saber em que lugar se quer chegar, é um bom começo para saber a quem pedir ajuda. Encontrar a ajuda e saber usá-la é a melhor escolha. Tomar atitudes para consolidar a mudança é a única decisão. O final desse caminho pode ser em qualquer lugar do mundo. O que importa é que os passo dados sejam conscientes. Viver é um exercício diário de desafios por caminhos tortuosos, mas se a gente reparar bem, sempre tem flores em algum acostamento.
Atualizado em: Qua 23 Jan 2019