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Descanse sem paz

Do alto da ponte, Elis rezou pela última vez. Nada aconteceu. Naquele breu de solitude, apenas um assaltante sairia às ruas, mas ela não carregava nada de valor, nem mesmo sua própria vida. Ser assassinada pouparia trabalho, mas responsabilizar terceiros era inviável — afinal, ela tinha bom coração.
Elis acompanhou sua família inteira sair pela porta da frente. Primeiro, seus pais. Depois, seu marido. E filhos. Todos engolidos pela escuridão. Para se proteger do caos contagioso e persecutório, ela construiu um santuário no quintal, com pequenas lápides sobre a grama mal aparada. Ela lutava contra a apatia e reverenciava os corpos imaginários que jaziam sob a terra, mas algo sombrio crescia no coração do vilarejo.
Os estatísticos não carregavam informações precisas, mas, em meados do verão de 2025, o Sol nunca mais voltou. Não houve despedida nem aviso prévio; era só mais um dia comum. Em qualquer esquina, qualquer viela desconhecida, alguém morria. Não havia fome, pobreza ou violência. Mas a felicidade deixou de visitar o vilarejo — e todos foram engolidos pela escuridão.
Os adolescentes foram os primeiros — confinados no próprio quarto e sufocados por uma música mais alta que seu desespero. Em uma sequência óbvia, seus pais foram os próximos. E vizinhos, professores, policiais. Todos submeteram-se ao vazio. Algumas crianças sobreviveram ao massacre voluntário, talvez por covardia ou esperança. Nenhum cientista sobreviveu para buscar soluções. Loucos fizeram sacrifícios aos deuses insatisfeitos. Outros, antes exemplos morais, contrabandeavam paliativos. E os religiosos eram os únicos capazes de abraçar o conforto. Quem sabia enganar a si mesmo, sobrevivia.
Elis terminou sua oração. Anos atrás, aquele era o lugar perfeito para assistir ao pôr do Sol de mãos entrelaçadas a um romance. E hoje era palco de seu marginalizado espetáculo. Suas lágrimas tinham medo de altura. Quanto tempo demora uma queda? O que acontece quando o corpo encontra o rio? Ela arrastou seus pés um pouco mais, esfarelando o concreto que sustentava a enorme ponte. Elis fechou os olhos e se equilibrou em um pé só.

***
Klaus estava perdido. Dez horas na rodovia e nada de encontrar seu destino. Seguir em frente era sua única opção, mas a verdade é que aquela rodovia era responsável por lendas aterrorizantes, daquelas que só podem ser contadas ao redor de uma fogueira. Dizem que o último desavisado desapareceu sem deixar vestígios. A sabedoria popular alertava sobre monstros inimagináveis e assegurava que ninguém sobreviveria. Mas Klaus estava lá. Porque era louco, de acordo com sua família. E também porque ouviu boatos. Boatos sobre uma paisagem tão bonita que os olhos mal suportariam. Sobre uma floresta tão receptiva e tão livre que ele se sentiria em casa. Na companhia de um carro velho — e chocolates — ele não pensou mais do que três vezes e seguiu viagem. Klaus estava confiante, curioso e perigosamente feliz. E estava perdido.
O sono era inevitável; sua sensatez decidiu que dormir seria uma boa ideia. Parou no acostamento para dobrar à direita e encontrar um lugar para dormir. A placa indicava uma cidade amigável, mas que passava por sérios problemas de eletricidade. Klaus procurou por algum sinal de vida, mas essa era a última coisa que aquele vilarejo poderia oferecer. Contornou os parques da cidade, que mais pareciam cemitérios, e retornou à ponte. Na metade do caminho, a luz de seus faróis encontrou uma mulher. Klaus desceu do carro, sentindo uma estranha necessidade de ajudar.
— Olá.
Elis quase perdeu o equilíbrio.
— Oi — ele repetiu. — Tudo bem?
Sem saber se gostaria de contar sua história, ela pensou em pular. Mas e se a curiosidade retornasse durante a queda? E se ela quisesse conversar? Elis relembrou de todas as suas mentiras sobre estar bem e deixou a raiva percorrer todo o seu corpo — um sinal de que algo ainda vivia ali dentro.
— Não — sussurrou.
E ela pulou. Bateu a cabeça em uma lasca de concreto. Aos poucos, Elis se levantou e suas lágrimas correram sãs e salvas. Sua respiração sentiu o triste ar do vilarejo, permitindo a alforria de sua voz.
— Eu preciso de ajuda.
Klaus franziu as sobrancelhas; ajudar não era sua especialidade. Ele quis pedir desculpas, indicar um terapeuta e ir embora. Mas algo mais forte que a gravidade prendeu seus pés naquela ponte, e tudo o que ele conseguiu foi construir um sorriso inseguro. Elis sorriu de volta e apontou o caminho para retornar ao vilarejo.
O local indicado era uma espécie de trincheira ocupada por crianças esfomeadas. Com o carro abastecido de chocolates, cada criança energizada era motivo de comemoração. O estridente som de risadas arrancou a vizinhança do sono quase eterno, despertando a ira de alguns que não queriam acordar.
Elis caminhou até o centro do vilarejo e retornou com latas de tinta. Seu rosto esboçava novos tipos de sorriso: fé, cautela, esperança. Uma parte da vizinhança se aproximou para reconhecer as cores — há quanto tempo não enxergavam o verde! Elis pintou a calçada e os carros abandonados com os dedos, fazendo gestos desorientados e insistentes. As crianças copiaram seus movimentos e, num minuto, todos participavam do mutirão de pintura, ainda desconfiados, como se fosse errado.
Em pouco tempo, o vilarejo reuniu pintores amadores, crianças desordeiras e sorrisos satisfeitos. O estoque de chocolate, devorado até o último pedaço, estendeu a pacífica convivência por horas. Quando as crianças caíram ao chão, todos já estavam em silêncio — e então veio a crítica.
— Isso não muda nada — alguém comentou, cruzando os braços.
Certos de que aquilo não passava de uma histeria ilusória, os vizinhos mais próximos foram os primeiros a retornar aos seus esconderijos particulares, depositando mais infelicidades na conta. Elis se aproximou de Klaus e respirou fundo.
— Achei que fosse acontecer alguma coisa.
— Tipo o quê?
— Achei que o Sol voltaria.
Klaus não entendeu. Ele olhou em direção ao horizonte assombrado e, imerso em sua trajetória, teve um vislumbre do que ouviu tempos atrás — quando a vida era mais fácil e os mais velhos contavam histórias ao redor de uma fogueira. Seriam os monstros inimagináveis pregando peças no pobre vilarejo? Seus olhos brilharam; Klaus não era de se apegar aos fatos.
— Talvez seja um teste, sabe — ele hesitou — , pra ver se você consegue continuar.
— Continuar?
— Sim, continuar a viver.
Elis sorriu. Voltou sua atenção ao horizonte, como se o desafiasse, e agradeceu Klaus pela ajuda. Ele se despediu de todas as crianças e retomou seu caminho com sintomas de saudade. Embora sem repouso, ele sentia que era hora de seguir viagem e enfrentar seus próprios monstros.

***
Sobre a ponte, todos os sobreviventes aguardavam a chegada dos fogos de artifício. Meses de preparo foram suficientes para que o vilarejo acreditasse que a noite de ano-novo era o recomeço perfeito. É claro que eles ainda enfrentavam problemas — o júbilo de uns não freou a desistência de outros. Mas, dessa vez, os sobreviventes ostentavam, com orgulho merecido, seus largos sorrisos e braços abertos para acolher qualquer alma desamparada.
Elis se debruçou sobre a ponte e imaginou como seria o dia seguinte, quem sabe, um dia ensolarado. Ela imaginou como correria até o santuário para contar as boas novas, como sua família festejaria até não poder mais e como agradeceria todos os dias pela delicadeza de que é feita a felicidade. Do alto da ponte, Elis sorriu.
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Atualizado em: Sáb 4 Jan 2020

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