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ALCIMAR, CADÊ VOCÊ?

Disseram-me que de repente partiste. Foste para qual céu? Dos pretos velhos? Dos índios? Morar com a tua “moça”? Foi tão de repente, que surpreendido pela partida fiquei a imaginar qual seria o teu propósito: talvez algum enigma a ser decifrado, um sonho a ser realizado ou, quem sabe, num acesso de raiva por que não concordaste de que a vida não era bem do jeito que querias!

Aí me lembrei de uma poesia tua que em certo trecho dizia:

“Estou oculto aqui, no fundo

mais sutil que um espectro de regresso

a este mundo.

Recomposto da matéria do medo e do universo

ele é incompreensível e intolerável; e eu, não.

 

Olha o campo e vê crianças

que, inocentes, dão cursos ao seu brinquedo.

São lindas – ignoram o meu segredo:

disfarcei-me

em grama, em insetos, em sementes.

 

Estarei por toda parte – esta é a última arte

em que me empenho.

Quando desceres o rio, rema de mansinho;

teu vizinho aqui está, em meio às bolhas,

no dueto das folhas e do vento.

Parque agora já não sou ninguém “. (1)

 

Contaram-me de que tu foste tão de repente, deixando-nos por entender de como a vida é fugaz! Levaste contigo os sonhos, todas as possibilidades do irreal e o encontro do impossível!

Viste com absoluta clareza a marca da tua partida:

 

“Breve é a vida do homem sobre a Terra,

como o vôo da ave

entre duas árvores que próximas cresceram.

Porém, semelhante ao eco, que mais forte se faz que

o próprio grito,

torna teus passos e teus dias infinitos

na lembrança dos vivos e dos que ainda não nasceram.

Faze com que tua vida vença as mortes,

a tua morte e a dos justos que aprenderam” .(2)

 

Voltava a minha morada e viajava nas lembranças de quando te conheci: magro, empertigado, incisivo; havia um traço de orgulho a transparecer do teu saber. Recordei-me de como nos surpreendia quando afirmavas de que eras o Zorro - fleumático e misterioso herói de capa e espada nas lutas pela honra e justiça -, ou quando te apresentavas como o papagaio – atrevido, debochado, aventureiro - que pousado sobre ombro do terrível pirata percorria mares sem fim na busca de incontáveis aventuras; e por muitas vezes quando te transformavas no terapeuta que com as suas pedras coloridas, suas musicas, sons, luzes e cores, sinos e chocalhos, procurava nos levar ao encontro da nossa essência e a cura de nossas doenças, de todas elas! (chamaste de Merlin ao método com que nos tratava). Imaginei ver-te contar um segredo:

 

“Porque a face de Deus não podia ser contemplada

conformavas-te com o pouco que era dado.

Agora, salta sobre o abismo e sabe que depressa

serás levado como uma pluma.

 

Serás iniciado em todas as magias;

aprenderás o dom das profecias, porque deves conhecer

que, após o futuro, vem a noite e a chama.

É muito a habilidade de tornar águas em vinhos

e romper caminho sobre sargaços e a espuma

de um mar que, escravo teu, te obedeça” .(3)

 

Aprendi a te escutar e consegui aceitar as tuas idéias, mas, após intermináveis horas de exposição, eu, cansado, extenuado, sem energias, ficava feliz ao ver-te calar a boca.

Muitos desejavam que a tua boca se calasse! Medo da verdade nua e crua? A inveja sobrava e a coragem faltava àqueles maledicentes e covardes que viviam pelos cantos a te criticar. Proclamaste a todos os ventos:

 

“Não tenho de me explicar.

Vós é quem deveis compreender-me,

ignorantes.

Sou cego, mas não mudo.

Da minha boca jorram

bênçãos e anátemas,

mas todos aqui parecem surdos.

Por que não me enxotais logo daqui?

Subi ao palco

com espadas.

Que nada. Pagastes por isso, e aplaudis a tudo.

 

Ah, a língua! Sem ela, nada de temperos,

e adeus a alguns vícios.

Mas, com esse músculo na boca, o impulso de falar

é irresistível.

E a palavra costuma tirar o sabor de alguns momentos,

Mesmo de uma vida “. (4)

 

Será que ainda nos ronda, tentando despertar em nós o desejo por conhecer segredos e mistérios ou por entender de coisas que nos parece ser de difícil compreensão? (Como é pequeno e limitado o nosso mundo!).

 

Ainda desejas a tua loira encantada? “Modelo de calendário”, como dizia ironicamente uma conhecida!

 

Já encontrastes com Jung para discutir sobre a teoria dos arquétipos?

 

Ainda achas de que o Dire Straits é o viajante intergaláctico que invadiu o nosso planeta azul com sons e músicas de outras esferas?

E a tua veneração por Bob Dilan continua a te arrepiar a pele e afagar ao coração?

 

Recordas-te das viagens e experiências sensoriais do Santo Daine? Da “bagunça” que aprontaste na Fraternidade Eclética fazendo o Mestre Yokaanam tremer?

 

E a tua banda, o “Holandês Voador”, que no único vinil gravado – “Cinderela” – trazia na contra-capa a tua foto e eras o “Cícero Fernandes”, letrista, compositor, guitarrista e cantor?

No teu livro de poesias “O vinho antigo”, novamente o teu verdadeiro nome não aparece: agora és RAMA, o iluminado, o senhor dos mistérios, que em meio à natureza recebe o prana divino e as energias do cosmo!

 

E as críticas a Elomar, escritas em um jornal de Brasília, ainda doem na tua consciência?

 

Continuas a ter inveja dos Augustos por causa de suas mulheres?

 

A tua casa lilás, os quadros, as imagens, os enfeites e o altar de Iemanjá se transformaram em tesouros para muitos ou viraram poeira nas mãos de poucos?

 

Centenas de pequenas lembranças, estranhas idéias, conceitos por vezes extravagantes - não sabíamos como entendê-los - sobraram de ti. Entre alguns achados, pequeno trecho de uma poesia me emociona e me faz voltar ao encontro do meu Deus:

 

“Não perdeste Deus; tão pouco foste por Ele preterido.

Agora, reconstrói o Deus de tua história

antes que a memória se esvaeça,

com a mesma força e piedade igual.

De tua humana dor recria a divina glória, e não faz mal

que ele te apareça feroz ou te beije docemente;

não importa que ele venha do Cáucaso ou do oriente,

que fale línguas que ninguém conheça.

Quando Deus bater à porta, dá-lhe teu regaço.

Ele virá entediado da longa caminhada pelo espaço,

da dura travessia pelo tempo.

 

Se perguntares, talvez ouça testemunhos

sobre galáxias ignoradas, sobre oceanos distantes e medonhos;

saberás de estrelas flamejantes por Ele mesmo arquitetadas.

Indaga-lhe sobre o retrato mais exato

do paraíso.

Talvez haja uma foto; toma-a nas mãos e esquadrinha

a paisagem.

 

Descansa e poupa a ti e a Ele.

Veste a tua alma e a tua melhor roupa.

Então, segue-O na viagem “. (5)

 

Recordações que transformo em homenagem a Alcimar Fernandes Pereira e que ele possa tomar conhecimento dela, se ainda houver tempo. Como ele mesmo disse: “que está por toda parte e sendo a última arte em que se empenha”, talvez esteja seguindo a Deus nessa viagem em que a imaginação não tem limites.

 

 

(Créditos: trechos 1,2,3,4 e 5 – transcritos do livro O Vinho Antigo-Copyright 1994 by Alcimar Fernandes Pereira e Céu dos Índios-Produtora de Bens Culturais)

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Atualizado em: Seg 26 Out 2009

Comentários  

#1 tania_martins 01-12-2009 14:29
Um belo texto.
Parabéns!

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