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Errância
Os parceiros musicais Mila Cox e Zími haviam conversado sobre adotarem ou não temas mais políticos em suas músicas.
Para ela, as músicas tinham abordagem política, mesmo com letras minimalistas e sem serem panfletárias, mas sempre enfatizando, entre outras coisas, uma posição antifascista.
Para ele, era preciso amplificar essa abordagem, pois estavam passando por um período perigoso e ameaçador, num país que nasceu de um projeto que podia ser chamado de protofascista, com invasão das terras e extermínio de uma civilização.
A conversa se deu na volta de um show que fizeram como o duo Crop Circles numa festa junina em Catanduva que deu espaço para quatro bandas de rock, de diferentes subgêneros.
Ele já tinha quase cinquenta anos e começou um outro dia praguejando sobre quanta merda uma pessoa tem que aguentar apenas para se manter viva.
Dessa vez a queixa era por conta de um pagamento não realizado por um trabalho que realizou como freelancer, como porteiro substituto num prédio residencial na Rua Aurora.
Então enfiou a mão entre o assento e o encosto do sofá, onde havia dormido à noite.
Correu-a por ali e encontrou uma moeda de dez centavos, um pente e uma tampa de caneta.
Logo tomou algum ânimo para procurar se atualizar um pouco sobre a situação do resto do mundo, através de fontes que ele confiava, para que isso melhorasse sua estima, pois isso o fazia lembrar que não tinha tantos motivos para lamúrias.
Era estranho, mas em dias ruins, ele ganhava sobrevida ao se deparar com notícias tristes, outras trágicas e outras constrangedoras, lembrando que problemas do cotidiano são para todos, mesmo que em diferentes circunstâncias.
Cada uma dessas notícias, um resultado crônico de repetidas ações que ele repudiava, idealizadas e comandadas por gente que ele também repudiava. Tudo isso seguido e praticado por um imenso rebanho humano cego, burro e passivo, desprovido de qualquer autonomia intelectual.
Nativo de um país agora regredido ao agrarismo da soja, sob ameaça de fascismo, e com o planeta à beira de um colapso climático.
Entendia a razão de poder ser considerado um fracassado, pois só seria vencedor no sistema excludente e perverso em que vive se não fosse a pessoa que é.
Apesar de estar cansado de lembrar que a falência do sistema é a origem de muitas mazelas humanas e saber que utopias não o tirariam daquela miséria existencial, sabia também que elas serviam ao menos para que não mandasse tudo às favas de uma vez, entrando propositadamente numa overdose letal.
O sistema educacional estimula a todos que a ele tem acesso, a buscar por um tipo de vitória, que por questão de índole, nunca o estimulou.
É necessário que haja milhares de derrotados para cada vencedor.
Milhares de almas atormentadas com pensamentos suicidas que também se perguntam o porquê de tudo isso, apenas para adiar a morte, que levaria a um esquecimento absoluto, até para quem era próximo, e que provavelmente terá o mesmo destino.
Isso tudo enquanto o que há de verdadeiramente heroico num ser humano é não pertencer a nenhum rebanho.
Não há lugar algum para chegar, não ser a tumba, e para depois disso, talvez a distinção pós morte para aqueles que deixam na Terra algum legado que também não caia no esquecimento, caso de um entre milhares, sendo que muitos dos quais chegaram a sonhar com a tal vitória, buscada por uma fé cega que os moveu até lugar nenhum.
Algo típico de quem é enganado durante muito tempo, e que tende a rejeitar qualquer prova de fraude, se desinteressando em descobrir a verdade, pois é doloroso reconhecer, ainda que para si mesmo, que fora enganado, às vezes por toda a vida.
Pelo menos as manhãs não eram todas iguais, porque para ele também havia aquelas em que podia acordar calmo, com o apagamento das urgências, das angústias e dos receios de irrealização, resultado de alguma pequena vitória recente ou da própria insolubilidade de questões perturbadoras.
O dia anterior havia sido de derrota, com muito tempo na porta de um supermercado esperando pelo pagamento do freela, fumando e verificando a todo momento o aplicativo do banco do qual era cliente, para ver se finalmente o pagamento havia sido efetuado.
Havia agora, na porta de qualquer mercado de toda a região central de São Paulo, um número cada dia maior de pessoas desesperadas de fome, pedindo algum tipo de ajuda, e olhadas com perplexidade e rancor pela maioria dos que ainda saiam de lá com sacolas de comida para levar para casa.
Algumas dessas pessoas ainda são capazes de ostentar certos privilégios, em plena crise aguda numa terra sem deus nem lei.
Sempre que ele saía de algum desses lugares depois de alguma compra, carregava com sua sacola de mantimentos um tipo de culpa bastante incômodo, ao ver tanta miséria.
Nessas horas lembrava novamente do sistema, porque sabia que a miséria é culpa dele, e não de simples fracassos pessoais, como tanta gente está condicionada a acreditar.
Foi obrigado a desistir da espera quando a bateria de seu celular vagabundo acabou, de tanto que verificava o aplicativo do banco à espera do dinheiro.
Então, voltou pra casa, abriu as bitucas de cigarro de sua lixeira e bolou o recheio delas em guardanapos de boteco, como se fossem baseados, e depois dormiu com fome.
Nem mesmo esse tipo de perrengue era capaz de fazê-lo desistir de fazer esses bicos em vez de algum emprego com carteira assinada numa empresa que chama o empregado de “colaborador”, com longas jornadas de trabalho, baixa remuneração e assédio moral.
Enquanto isso, Mila Cox apenas se lembrava da frase que ouviu dele certa vez, em que dizia ter se enganado apenas uma vez, ao pensar estar enganado sobre um tema menos importante que a conclusão tirada dele.
Era um indício de que o problema dele não era falta de autoestima.
E aquele dia seria bom para ele, que ao encontrá-la, sempre revive sua sociabilidade, tão comprometida por tempos de escassez de tempo e dinheiro, o que então lhe fazia ter que gastar energia, completando a tríade que tanto prezava, que era tempo, dinheiro e energia.
Ela era muito mais jovem, e isso o levava, andando com ela, a fazer coisas que jamais faria sem sua influência.
Servia também, até certo ponto, como renovação no ânimo de viver.
Sair de sua zona de “conforto” não era tão dramático para Zími, porque não havia ali, de fato, muito conforto.
Havia, sim, uma rotina razoavelmente previsível, até para se preparar com certa antecedência para a chegada de perrengues, que para ele, eram sempre financeiros.
Vivia sozinho num apartamento no centro da cidade, sendo um consumidor minimalista e praticante do desperdício zero.
Já Cox tinha seus próprios problemas, e carregava bastante insatisfação, não exatamente pela vida que levava individualmente, mas pelas mazelas da conjuntura.
Mas ainda era jovem o bastante para gritar um pouco mais, por causa do retrospecto de vida mais curto e por teoricamente ter mais tempo pela frente, para enfrentar desdobramentos malignos de eventuais tendências equivocadas dos dias atuais e anteriores.
Tinha vinte e um anos, e apesar de ter um porte físico pequeno, era o tipo de pessoa que se reconhece de tão longe, quanto se possa enxergar, com o cabelo curto cuja cor era mudada quase semanalmente.
Ela tem um Chevette Jeans 79 que chama atenção por onde passa, desde shows que faz pelo interior de São Paulo, até estacionamentos de supermercado.
Quando questionada se era tímida ou premeditadamente antissocial, respondia que costumava conversar com quem realmente interessava, pois muitas pessoas hoje em dia vivem se sentindo insultadas, e quando não tem a resposta que querem ouvir, a tomam como uma afronta, e que a música a ajuda nessa questão, mesmo quando suas músicas geram dúvidas sobre o que realmente querem expressar.
Estudava Letras e era uma copywriter freelancer, com ganhos sempre superiores aos de Zími, e mora com os pais numa boa casa na Penha.
No atual momento, ambos apenas vivem, cada um à sua maneira, esperando o que há por vir para a humanidade, sem tanta esperança de dias melhores, mas com a certeza de que ainda não vimos nada em termos de tempos surreais, e que o pior ainda está por vir.
Atualizado em: Seg 25 Jul 2022