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QUERO SER PUTA, VÓ.
Mara tinha cinco anos de idade quando ganhou sua primeira boneca. Morava em uma rua sem saída, em uma casa na ribanceira do rio das Pretas. Contava-se que antigamente as mães jogavam os filhos indesejados nesse rio. No verão era um riacho entulhado de lixo. No inverno era um rio caudaloso que subia a encosta das margens e inundava as casas e a rua. Durante anos, o esgoto de fezes e água suja era despejados pelas manilhas no seu leito. Fios de água fedida, vindos do morro, atravessavam a rua e escorriam na ribanceira. As casas enfileiradas na margem esquerda do rio, corriam risco nas épocas de chuva, mas a casa da avó de Mara, a mais pobre do beco, estava com eminente risco de cair. A qualquer momento poderia desmoronar e deslizar para dentro do rio levando menina e avó.
A casa estava rachada nas paredes. A sala úmida tinha uma TV preto e branco quebrada e um sofá esburacado. Pendurado na parede o retrato velho do avô apertando o braço da avó submissa. No quarto, a cama de casal sem espelho tinha um colchão de espuma amarelada e manchada. Um lençol velho servia de porta. Na cozinha, um fogão velho e uma mesa de madeira escura, três tamboretes, panelas enfumaçadas sem cabo sobre uma cristaleira sem gavetas e vidros e uma forma de barro que armazenava água. O banheiro era sujo. Água encanada somente uma vez a cada quinze dias. O banho era de cuia com a água fria da forma. O piso da casa era um cimentado velho. As paredes úmidas pintadas com tinta de saco estavam manchadas e descascadas. A porta da entrada não tinha trinco. Os móveis eram velhos como a tristeza da avó.
Depois que envelheceu, a avó se tornou evangélica. Passava o dia chorando e se dizendo salva. Folheava a bíblia como se lesse. Ás vezes se jogava no chão com os braços abertos se confessando pecadora. Mara não entendia o que fazia a avó tão infeliz. Ela fazia tudo o que a avó queria. Não estudava. Tomava conta da casa nos dias de culto. Ajudava a cozinhar, a lavar os pratos, a lavar a roupa e a varrer o chão da casa e do terreiro.
Mara queria brincar com as meninas do beco, que eram pobres e sem boneca como ela, mas a avó não permitia. Quando se sentia só, imaginava que tinha uma boneca que sabia escuta-la. Sentava-se na soleira da porta e embalava a boneca imaginária nos braços, contando seus sonhos e suas descobertas.
Um dia, a casa desocupada no fim da rua, a melhor casa do beco, foi alugada por temporada a uma mulher jovem e bonita. Tinha mais de trinta anos. Talvez menos. Era uma mulher deslumbrante. Vestia saias e vestidos mullets que deixavam o corpo ainda mais bonito. Sua casa tinha poucos móveis. Parecia mais um escritório. Saia de noite e só voltava no dia seguinte. Passava poucas horas na casa. Na entrada do beco havia sempre um carro esperando aquela mulher que chamavam Loura, por causa da cor do cabelo. Durante o dia ela saia com uma bolsa de marca, máquina digital na mão, falando baixinho no celular. Devia está marcando encontro com os homens de carro que esperavam ou ficavam na entrada do beco. Nos primeiros dias que chegou, tirou foto das casas e da rua. Andava bem maquiada, cheirosa, vestida vestidos lindos e se ornava de belas joias e bijuterias. Seu cabelo louro tinha mechas castanhas. Seu sorriso era fácil. Seus olhos eram claros. Quando caminhava, parecia uma deusa dançando. Seu perfume suave e sensual invadia as casas da rua. As mulheres ficavam incomodadas com a moça loura. Usava salto alto, sorria leve, usava baton vermelho. Saia toda noite e não tinha hora de voltar. Nunca dormia em casa. Os maridos e as crianças eram proibidas de falar com ela. As vizinhas cochichavam quando ela saia ou chegava. Apontavam o dedo, ficavam de costas quando ela passava. Os homens não resistiam e olhavam para suas coxas alvas que o vento mostrava, balançando a saia. Alguns até assobiavam. A moça loura ignorava toda falta de respeito.
Mara achava a loura uma pessoa maravilhosa. Linda. Simples. Simpática. Santa. Desejou até ser filha dela.
Uma noite, quando passou na frente da casa de Mara, a loura cumprimentou a menina:
- Boa noite, menina. Seu nome é Mara?
- Sou senhora.
- Você tem boneca?
- Nunca tive não.
- Sou Flávia. Amanhã cedinho trago um presente pra você.
- Posso dizer que gosto da senhora?
- Claro que pode. Diga sempre o que sente. Eu também gosto muito de você.
Quando a avó viu a loura conversando com Mara, se encheu de raiva e gritou da cozinha, jogando na parede a panela velha que ariava com bombril.
- Não fale com minha neta não, sua vaca.
Flávia ignorou o insulto da velha, sorriu para Mara e foi embora em direção do carro que a esperava.
- Se conversar com aquela mulher de novo, eu lhe mato, viu?
- Porque vovó?
- Ela é uma puta, Mara. Uma puta. – dizia segurando com força os ombros de menina e olhando nos seus olho confusos.
Foi a primeira vez que Mara ouviu essa palavra, mas entendeu que era coisa ruim. Concordava não. Concordava não.
- A moça é boazinha, vó. Ela só fotografa as casas e escreve num caderno. Não faz mal a ninguém. Eu quero ser igual a ela.
- Ela não presta, Mara. Ela é uma puta. - Repetia chacoalhando os ombros da menina.
A avó estava furiosa.
- Então quando crescer quero ser puta, vó.
Mara ergueu os olhos e repetiu:
- Quero ser puta, vó.
A mão enrugada da avó bofeteou a boca da menina, que deu um grito de susto e de dor. Gemeu e tentou estancar com as mãozinhas o sangue que escorria da boca e descia pelo antebraço direito. Correu para um cantinho da sala e se encolheu, chorando baixinho, pressionando as mãos nos lábios machucados.
A avó foi dormir na cama e Mara adormeceu no chão, no cantinho da sala úmida.
No ouro dia, Flávia bateu na porta da casa e a avó de Mara levantou da cama parar ver quem era. A loura estava acompanhada de várias pessoas. Mara se acordou com o barulho. A boca estava torta pelo inchaço e a camiseta velha estava manchada de sangue, mas seus olhinhos miúdos brilharam quando viu Flávia na porta da casa.
-O que você quer na minha casa? Perguntou raivosa a avó de Maria, encarando Flávia. - Nunca gostei de loura. Sabia que a menina apanhou por sua causa.
Flávia explicou:
- Meu nome é Flávia. Sou presidente da ONG Construtores do Bem. Nossa ONG tem a honra de lhe entregar a chave da casa nova que construímos para a sua neta, Senhora. Esta boneca também é para sua neta. Se vocês continuarem morando nesta casa, vão morrer soterradas e tragadas pelo rio.
Uns vizinhos se aproximaram e aplaudiram quando Flávia estendeu a mão e entregou a chave e um envelope com documentos nas mãos trêmulas da avó de Mara.
- Mas você parecia... Meu Deus...Pensei que você fosse...
Mara se levantou do chão onde dormiu, deu um sorriso esquecida da dor e correu para ganhar sua primeira boneca.
Abraçada com Flávia e a boneca, Mara falou bem alto para ser ouvida pela avó e pelos vizinhos:
- Quando crescer quero ser igual a senhora, Dona Flávia.
Flávia sorriu e beijou o rosto machucado da pequena Mara.