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O lado obscuro...
Passava das três da madrugada, quando ele conseguiu chegar em casa, meio trôpego, mal conseguia encaixar a chave no buraco da fechadura, as mãos tremiam, como sempre...lívido de medo e pavor, o suor escorreria do seu rosto, nos olhos, uma cor avermelhada forte, como se fosse ele todo de uma única cor, rubra e brilhante, os cabelos em desalinho, amontoados do lado esquerdo, mas de todos os acontecimentos que vinham incomodando até o momento, esse era o que mais lhe atormentava, não lhe dando trégua dia após dia, num interminável desfilar de imagens, e figuras das mais bizarras e desconexas, que pareciam tomar forma dentro da sua cabeça, e sair rua a fora...
Seu corpo agora parecia dar o sinal de alerta que já não agüentava mais, algo dentro de si, dizia que deveria parar, porque sentia calafrios e tremores por todo o corpo, e não conseguia concentrar-se numa simples atividade, como abrir uma simples fechadura... Nessas horas, sentia um grande nó na garganta, e como se não bastassem, aquelas dores constantes por todo corpo, e os espasmos que o impedia de permanecer firme. Num esforço enorme, tateou mais uma vez, girou a chave, e “zás” finalmente, ela o obedeceu...
Respirou o ar aconchegante daquela que deveria ser a sua casa, o seu lar, mas que agora, muito distante disso, assemelhava-se mais a uma pocilga, tão era o odor desagradável que provinha do banheiro em desordem total, com vestígios de roupas sujas espalhadas arrevelia entre pia e assoalho, e da cozinha, num amontoado de louças e utensílios sujos, com pequeninos restos de alimentos empilhados, disputados freneticamente por insetos e roedores famintos, que iam e vinham com familiaridade pelos escaninhos dos ladrilhos e compartimentos do pequenino cômodo, que outrora reluzia de luminosidade e cheirinho de aconchego de casa limpa, aconchegante e asseada...
Balançou negativamente várias vezes a cabeça, como que a espantar os pensamentos sombrios que ainda passeavam pela sua mente, ao se recordar de tudo aquilo que se transformara a sua vida...
- Vida!!! Se é que se pode se chamar isso de Vida !!!
- Mas que Vida !!!
- Argh...isso não é casa, não é vida, não é Naaaadaaaa !!!...E, num balançar mais fortemente de cabeça, sentiu-se como que pequeninos golpes de martelos imterropensem incessantemente dentro de sua cabeça, fazendo a explodir em uma dor descomunal que parecia vir de dentro de sua alma, e sem conseguir se firmar em pé, tentando seguras as têmporas com as mãos, como que se esforçando para fazer parar aquela dor irritante, num gesto abrupto, rodopiou e se não fossem as duas paredes que segurou firmemente, tentando equilibrar-se, teria caído com tudo no chão, velho companheiro, acostumado a acomodar seu corpo trêmulo, e esguio noites a fora...
Mas hoje,
- Não !!!
- Definitivamente Não !!!
Não iria se render a isso, pois seu corpo todo exigia um aconchego melhor, que o velho e empoeirado assoalho da pequenina sala de estar não poderia lhe oferecer...
Decidido, e ainda cambaleante, seguiu pé ante pé, sustentando-se como era possível, pois de suas mãos, vertia aquele suor gélido, que fazia com que as paredes deslizassem ao toque delas, se perdendo em meio a um ziguezaguear de pernas pelo pequenino corredor, mas, determinado, procurou seguir adiante, até que finalmente chegou a seu destino, e a enxergou, entrecortada pela penumbra do luar, e de uma pequenina fresta que vinha da antiga veneziana:
- Simmmm, ela ainda estava lá, sua cama...aiai...suspirou...
- Nooossaaaa !!! quanto tempoooo...pensou..., parecia que fazia uma eternidade que não dormia nela, deu uma olhada a volta, tateou pelo interruptor, tinha certeza que era por ali... Apalpou mais um pouco, e pronto !!! num clic...e se fez a luz !!!
Mal se sustentando em pé, deixou-se cair abruptamente, se jogando com tudo, em sua velha cama, que encoberta pelo emaranhado de roupas e bitucas de cigarros, mal se notava completamente..., e esta rangeu lentamente desacostumada desse leve e antigo fardo...instantaneamente adormeceu profundamente.
O insistente latido dos cachorros lá fora, e o sol entrando pelo buraco da janela, o acordou, sem se dar conta de onde estava, ou que dia era, ou melhor, que horas eram???
Procurou respirar fundo, afastando os cabelos em desalinhos da testa, olhou calmamente a seu redor, tentando buscar na mente uma única explicação para tudo isso, afinal de contas, o que foi que eu fiz!!! Ou melhor, como eu vim parar aqui!!!
Perguntas, perguntas e mais perguntas, e nada de resposta, apenas aquela enorme sensação de vazio, que parecia vir de dentro de sua alma, ou de sua cabeça, sei lá...não importa, mais uma vez, o vazio, cada vez mais e enormemente parecendo aumentar dia a dia dentro de si mesmo, vazio, vazio, assustadoramente e demasiadamente um grande vazio...
Ficou ali nesse estado de profunda apatia horas a fio, procurando se concentrar nos ruídos externos que vinham da rua, como que o convidando a sair dali, e a recomeçar também o seu dia, da maneira habitual como a maioria das pessoas faz... Mas nada... O vazio, o nada, parecia persegui-lo e preencher todos os espaços possíveis de sua mente, de sua vida, e como se livrar dele? Novamente a mesma pergunta que martelava em sua mente, depois dessa rotina interminável que se transformou os seus dias, como???
A garganta seca reclamava... Exigia que fizesse algo, que se levantasse a procura de algo “solúvel” que lhe contentasse... Mas, o corpo dolorido, frágil e cansado demais o impedia de se levantar... Revirou-se de lado, tateou acima do pequeno criado mudo, os dedos deslizando-se entre os objetivos e de repente, um estilhaçar de vidros pelo chão... E lá se vai mais um copo...
Virou-se de lado, a canseira e a sonolência pareciam intermináveis e dispostas a não deixarem reagir por um bom tempo, aquietou-se, resolveu deixar-se ficar mais um pouco, afinal que diferença fazia... Pensou...
À noite, sua velha e constante companheira haveria de lhe fazer companhia a mais uma jornada solitária e incansável rumo ao extermínio do grande e impetuoso vazio que se tornara a sua existência.