- Literatura - Contos
- Postado em
Apolo
Num lugar onde a noite era desconhecida, tudo resplandecia em brilho, com objetos translúcidos e uma atmosfera cristalina. Este lugar era chamado Ópio. As pessoas habitantes desse local nunca experimentavam o descanso, pois a luminosidade constante envolvia tudo em um movimento rítmico e incessante. Não havia melodias, apenas ruídos e frequências sonoras destinadas a manter as mentes desprovidas de pensamentos. Uma existência enfadonha e anestesiada dominava a vida, enquanto alguns se sentiam embriagados e tontos.
Em meio a esse reino de luz, a sombra tornou-se um refúgio. Era habitada por indivíduos considerados loucos e subversivos, encontrando alívio e tranquilidade temporários nas áreas mais escuras, apesar das incessantes perseguições promovidas pelos "homens-luz", cuja missão era erradicar qualquer vestígio de sombra e inquietude, transformando o espaço em uma luminosidade homogênea, onde todos marchavam no compasso das frequências.
O aspecto mais intrigante dessa luminosidade não era proveniente do sol, mas sim de uma imensa tela chamada Apolo, o redentor. Emitindo uma luz branca e intensa, essa tela passava por variações de cor e intensidade ao longo do tempo. A escuridão era inexistente.
Num dado momento, um ser hermafrodita concebeu um dispositivo denominado antena de Hertz, com o propósito de desconfigurar a grande tela e suas ondas sonoras, extinguindo assim a luz incessante. Os doze anos dedicados à construção do dispositivo foram os mais sombrios de sua existência. Recordou-se de não ter o direito de questionar, de viver numa realidade onde tudo estava pronto e acabado, e sua única função era consumir sem reflexão. Esses pensamentos a impulsionavam, alimentando uma melancolia persistente, uma indignação que não se dissipava.
Após concluir a antena de Hertz, meticulosamente planejou o dia para ligar o dispositivo, escolhendo o dia de Apolo. Quando o dia finalmente chegou, uma emoção avassaladora a envolveu. Tudo parecia novo e fresco; o vento tocava seus cabelos, o cheiro penetrava suas narinas, e ela sentia o suor escorrer pelo rosto, apesar da ausência de calor. Esse dia destacava-se, e, de repente, algo escapou do âmago dela, percorreu seu coração até a cabeça, e ela experimentou a vida pela primeira vez. Seus olhos brilhavam com lágrimas, compreendendo que a vida se manifesta com intensidade quando se aproxima do fim. Como uma flor desabrochando ao amanhecer para, ao final do dia, retornar à terra, ela percebeu a efemeridade da existência.
Com esses pensamentos, colocou o dispositivo na mochila e dirigiu-se à praça central, onde ocorriam as celebrações, próximo a uma estátua imponente que abrigava o coração de Apolo, vigiada atentamente pelos homens-luz. Ao se aproximar, ativou seu dispositivo. O que se seguiu foi um estridente chiado, como um canal fora do ar, e uma explosão luminosa desfez toda a vida artificialmente iluminada por Apolo. No final, restou apenas a escuridão e o silêncio.
Após a explosão, a escuridão e o silêncio tomaram conta do lugar que antes pulsava incessantemente com luz e som. As pessoas, habituadas à constante claridade, foram subitamente mergulhadas em um mundo desconhecido, onde a ausência de luz era palpável e o silêncio ecoava de maneira perturbadora.
No início, houve confusão e desorientação. As pupilas se dilataram, tentando se ajustar à escuridão recém-adquirida, enquanto os ouvidos ansiavam por algum som que quebrasse o silêncio opressor. Gradualmente, os sentidos adaptaram-se a essa nova realidade, revelando um ambiente envolto em sombras que, para muitos, eram mais acolhedoras do que a luz implacável que dominava antes.
As pessoas começaram a redescobrir sensações há muito esquecidas. O toque da brisa em seus rostos, os aromas que antes eram encobertos pela luz intensa e até mesmo a sensação do solo sob seus pés tornaram-se experiências revigorantes. A escuridão proporcionava um refúgio para reflexão e introspecção, algo que fora totalmente banido pela incessante luminosidade.
A sociedade, outrora movida por um ritmo constante e desprovida de individualidade, começou a se transformar. As interações entre as pessoas tornaram-se mais significativas, uma vez que a escuridão permitia que se enxergassem além das aparências superficiais. Ideias antes obscurecidas pelo brilho artificial agora podiam ser discutidas e exploradas. A escuridão tornou-se espaço de criatividade, gerando uma explosão de expressões artísticas e pensamentos inovadores.
No entanto, nem todos receberam a escuridão com aceitação. Aqueles que estavam acostumados à luz constante sentiram-se perdidos e desconfortáveis, resistindo à mudança. Houve resistência por parte dos "homens-luz" que, agora desprovidos de sua missão anterior, tentaram, sem sucesso, restaurar a luminosidade perdida.
Com o tempo, a escuridão revelou-se uma dádiva e uma maldição. Para alguns, representava a libertação do jugo opressor da luz, permitindo que a verdadeira essência da vida emergisse. Para outros, era um desafio constante, uma luta entre a aceitação do desconhecido e a nostalgia daquilo que conheciam.
Assim, a explosão de Apolo não apenas apagou a luz artificial, mas também acendeu uma nova chama na existência das pessoas, levando-as a explorar o equilíbrio entre a luz e a escuridão em busca de uma verdadeira e significativa experiência de vida.
Atualizado em: Qua 13 Mar 2024