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O Dom
Quem pode saber o que se passa na mente de uma pessoa? Quantos sentimentos? Quantos traumas? Quantos transtornos? Quantos distúrbios?
O que pode ser considerado um comportamento normal? Onde termina a normalidade e começa a insanidade?
Quem pode dizer que todo surto psicótico é anormal? E se for justamente o que a pessoa precisa viver e não pode mostrar por questões sociais, profissionais ou familiares? De repente o “eu” pode se rebelar em um surto psicótico. Gritar alto por liberdade, mostrar que está infeliz, dizer que não suporta mais.
Doutor César entrou no quarto. Inês estava acordando depois de ter sido sedada durante um surto psicótico em que ficara extremamente agressiva. Seus pais chamaram a ambulância da clínica para contê-la. Ela acordou agitada e os enfermeiros seguravam seus braços e suas pernas. Os pais presentes ali só faziam chorar. Pela primeira vez ela foi agressiva com eles, que temeram por suas vidas.
—Boa tarde, Inês! Como você se sente? — ela gritava, ele impôs as mãos sobre sua cabeça —Acalme-se. Olhe em meus olhos. — ela gritava e balançava violentamente a cabeça —Acalme-se Inês. Ninguém vai te fazer mal aqui. Só quero conversar com você.
—Solte-me. Eu quero sair daqui. Eu odeio todos vocês.
—Você nem me conhece, como pode me odiar? Estou aqui pra conversar com você. Não me obrigue a sedá-la novamente. Eu não gosto e nem quero fazer isso. Eu só peço que se acalme e olhe em meus olhos. — ela virou a cabeça para o outro lado
—Ninguém quer meu bem. Estão me machucando.
—Se você prometer se acalmar e não machucar ninguém nós vamos te soltar. Mas antes olhe pra mim, olhe em meus olhos. — ela se virou e o encarou com ódio, ele olhou bem nos olhos dela e penetrou em sua mente, aos poucos ela foi se acalmando —Saiam todos. Inclusive os pais. Quero ficar a sós com ela.
Eles conversaram tanto por palavras como mentalmente. Ele passeando em sua mente e conhecendo seus meandros. Ela calmamente respondia às suas perguntas. Sentia-se estranhamente bem, como se estivesse sendo visitada por um anjo.
Doutor César era um psiquiatra que realizava tratamentos humanizados em sua clínica. Vinha tendo excelentes resultados usando um mínimo de medicação. No entanto ninguém sabia que ele tinha o dom de penetrar a mente de seus paciente e ali trocar idéias e conhecer o que os afligia. Muitas vezes traumas que causavam depressão, surtos e algumas vezes reações químicas que levavam a distúrbios e doenças mentais. Extremamente ético ele só usava o seu dom para o bem e em sua prática médica. Estava com mais de quarenta anos. Era um homem bonito, físico atlético, cabelos castanhos bem claros, olhos azuis muito claros e vivos.
Os pais de Inês ficaram sabendo da clínica e resolveram tentar. Depois de vários tratamentos ela só piorava. Até que naquele dia ela os agrediu com violência e foi contida por vizinhos. Chamaram uma ambulância para levá-la. Ela tinha vinte e dois anos e estava cursando medicina para satisfazer a vontade dos pais. A mãe queria ser médica e como não conseguiu queria ver a filha formada e o pai a queria em uma profissão que pudesse lhe dar independência financeira. Eles lutavam com dificuldade para formar a filha, mas ela não dava valor. O que queria mesmo era ser arqueóloga e se sentia extremamente frustrada. Seus pais exigiam dela a perfeição e a criaram para ser a melhor em tudo. Desde os quinze anos começou a ter surtos psicóticos. Vinha então tomando medicações. Mas não adiantava muito.
—Gostei da nossa primeira conversa, mas quero que você fique aqui por uns dias. Precisamos conversar muito e quero retirar a medicação que você usa. Não precisa dela. Pra isto você precisa ficar em repouso. Podemos combinar assim?
—Vou ficar presa?
—Depende do seu comportamento. Se ficar agitada e agressiva, não vamos poder te deixar solta por aí. Mas se ficar calma, não vai se sentir prisioneira. Ficar calma e tranquila vai ser bom pra você. Assim não vamos precisar sedá-la. Eu não gosto de usar esse tipo de medicação. Só em último caso.
—Eu senti uma coisa estranha enquanto conversávamos. Parecia que o senhor me via por dentro. — ele riu
—Apenas olhei no fundo dos seus olhos. Os olhos dizem muito.
—Se vai mesmo tirar minha medicação eu vou cooperar. Além do mais senti uma grande confiança no senhor. Como nunca senti em outro psiquiatra.
César conversou com os pais de Inês. Conversava com eles, olhos nos olhos e os via por dentro. Deu muitos conselhos e explicou que Inês não tinha nenhuma doença psiquiátrica grave. Apenas alguns traumas e muita insatisfação. Eles sentindo uma força, prometeram cooperar. Saíram de lá como se algo tivesse se aberto em suas mentes.
Inês caminhava pela Clínica e conversava com outros pacientes. A maioria sentia que o médico conseguia enxergá-los por dentro, sentiam-se bem e em paz. Alguns recebiam medicamentos, outros apenas conversavam e recebiam as vibrações de César. Um ou outro estava resistente ao tratamento, não se deixava ver e conhecer e algumas vezes precisava ser sedado.
Semanas depois ela teve alta
, voltou para casa e percebeu que seus pais estavam mudados. Conversaram muito e ela disse que iria terminar seu curso. Faltava apenas um ano pra se graduar. Continuou frequentando a clínica e se consultando com César. Sentia-se cada vez melhor. Cada vez que saía de seu consultório sentia que ele a conhecia mais e a ajudava a se conhecer. Um ano depois ela teve alta do tratamento.
—Vou te dar alta hoje. Você não tem nenhuma psicopatia. Apenas os traumas e insatisfações com as quais você não sabia lidar e nem se libertar. Agora já está apta a viver.
—Eu termino meu curso de medicina em breve e tomei uma decisão. Eu vou me especializar em psiquiatria e pretendo exercer. Fiquei encantada com o tratamento aqui e me apaixonei pela especialidade.
—E a arqueologia que você tanto quis e se sentiu injustiçada por não poder cursar?
—Fica pra depois. Agora tenho uma nova paixão. Quem sabe a arqueologia será apenas um hobby? Eu poderia fazer um estágio aqui? Sei que aprenderia muito com o senhor.
—Você foi uma cliente muito especial pra mim. Sempre cooperou e quis se libertar do que lhe afligia. Eu aceito você trabalhando comigo e posso te passar meus conhecimentos, experiências e vivências. Mas um dom não se pode transmitir. Ele é apenas meu.
—O senhor fala de ver seus pacientes por dentro, de penetrar e conversar com a mente deles, não é? É este dom que eleva tanto o percentual de cura?
—Você promete que não conta nada pra ninguém? — ela prometeu — Sim. Eu tenho uma facilidade de enxergar o que outros não enxergam. Quando olho nos olhos do paciente eu consigo um diagnóstico preciso. Através dele é possível conseguir a cura de quem pode ser curado ou a medicação exata que traz qualidade de vida a quem não pode ser curado. A mente é território vasto e intrincado. Talvez possa, de certa forma, ser comparado à digital. Não há uma mente igual a outra ou pelo menos eu nunca vi. Ações, atitudes, conceitos, preconceitos e comportamentos as pessoas aprendem com os pais. Cada um tem seu caráter, sua índole. A educação torna a pessoa o que ela é no convívio social. Mas as reações são muito específicas de cada um. Ninguém reage de uma forma preestabelecida a um problema, um conflito ou uma dor. O que pra um é bem pequeno pra outro é enorme. Algumas pessoas, por diversas razões, não querem ser acessadas ou curadas. Talvez o mundo da chamada “loucura” seja mais fácil e conveniente. Ser considerado louco dá um certo passe livre para muitas atitudes ou falta delas. Tem pessoas não conseguem lidar com a realidade que lhes parece muito pesada e dolorida. Então o que podemos fazer é um tratamento paliativo para que sigam sem prejudicar ninguém e tenham um mínimo de qualidade de vida. É preciso discernimento ao penetrar na mente de alguém. Muitas vezes penso que não queria ter este dom. No entanto eu sei que já fiz o bem para tantas pessoas, o que me ajuda a carregar o peso e a responsabilidade que é lidar com isso. Muitas vezes saio de uma consulta exausto, algumas vezes cheguei a desmaiar depois de um diálogo assim. Se eu recebi este dom deve haver nele algum propósito para o meu crescimento como ser humano. Você, com o tempo, mesmo não podendo acessar a mente, pode aprender a tirar da pessoa seus segredos mais inconfessáveis, seus fantasmas mais pavorosos para chegar ao diagnóstico e cura ou tratamento. Fico feliz que você tenha se decidido pela medicina e mais, pela psiquiatria. Seja bem vinda.
Ela saiu dali com a certeza que César era especial. Tinha um dom sobrenatural que tão bem fazia às pessoas e se dedicava de corpo e alma à cura e ao bem estar delas. Talvez fosse um anjo que caiu do céu e ter o privilégio de ser tratada e curada por ele fez a diferença entre a vida plena que agora tinha e a escuridão em que estava mergulhada. Tinha certeza que trabalhar com ele seria um privilégio ainda maior. E que seria uma excelente psiquiatra trabalhando ao lado de um anjo.
Atualizado em: Qui 3 Out 2024