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O troco do pão

Capítulo 1- Mascate

Em 2019, pouco antes de a pandemia ser decretada, Emerson Martins tinha quarenta e oito anos e seu apelido ainda era Kimba.
Havia chegado um tempo estranho em que os dramas, tragédias e dores pessoais de Kimba pareciam não ser nada, agora olhados por ele mesmo, em retrospecto.
Sua desesperânça e falta de perspectivas pessoais só não era maior até aquele momento porque evidências científicas apontavam a iminência de catástrofes assustadoras, e Kimba achava que não viveria o suficiente para ver isso acontecer e consequentemente, sofresse as consequências.
O problema para ele era ver que a maior parte das pessoas que enriqueciam todos os dias destruindo o planeta eram apoiadas pelos governos do mundo e nenhuma dessas parecia se preocupar.
Seu presente até então parecia perverso como o iminente futuro desastroso do planeta, que no ano seguinte parecia ter sido antecipado em décadas pelas bandas de Rock que ele gostava, em subgêneros diversos, que em alguns momentos fizeram canções que anteciparam o caminho decadente e desastroso que fatalmente viria para um mundo movido por cobiça e ganância acumuladora.
A sordidez consistia no fato de que Kimba pensava nessa condição mundial como uma espécie de salvação para sua miséria existencial, uma vez que, em seu pensamento, o desastre mundial justificasse para ele mesmo seu desastre individual.
Kimba não esperava que acontecesse tão rápido, muito menos que fosse por um vírus, mas começava então um tempo que nem o mais cruel roteirista de terror teria concebido como ficção, o desastre agora já conhecido por todos.
Para o mundo, quem foi Kimba em seu tempo, em comparação ao que aconteceria com o planeta enquanto ele se tornava um homem de meia idade?
Um eterno anônimo, para quem a questão não era se ainda seria possível salvar nossa civilização, mas se isso valeria a pena.
O anonimato em si não o aborrecia, sendo este até mesmo necessário para o que realmente esperava da vida, e também para o que não esperava dela.
Fama era algo dispensável e até indesejável, que poderia ser facilmente substituída por algum conforto material e alguma segurança financeira.
Melhor ainda seria se por algum motivo o dinheiro deixasse de existir
Também podia ser o dinheiro a causa da ruína e extinção humana. Restava saber quanto tempo seria necessário.
Para sua companheira Karenina, Kimba era um homem que só amava clandestinamente. Ela usava essa palavra, mas nunca explicava o que realmente queria dizer com isso.
Para seu amigo Freitas, Kimba era sinônimo de um tipo de insubordinação só contida pela sua condição de pessoa reclusa. Condição essa que se cristalizou no fato do isolamento no tempo da pandemia não lhe ter afetado.
Todo o resto naturalmente o afetou, mas não o isolamento em si.
Considerava-se um camelô de si mesmo, uma espécie de mascate. Nada preparado para o mundo corporativo, como seu pai lhe disse por anos.
Nunca se considerou um artista, pois a banalização do termo o enfurecia, e era um tempo em que qualquer um se proclamava artista. Além disso, achava pretensioso demais e o nivelaria a pessoas que desprezava por banalizarem o conceito de arte.
Quando muitas máscaras caíram com o início da pandemia e seus posteriores desdobramentos, Kimba sentia que a partir de então sua vida seria uma continuação do período anterior, com a diferença que muitas das restrições as quais se submetia eram agora coletivas.
Àquela altura, os mentores e cúmplices da tragédia da pandemia ainda não haviam sido punidos na proporção em que mereciam. Nunca seriam, pelo menos não em vida terrena. A tragédia da pandemia ainda não havia parado de ceifar milhares de vidas diariamente e apenas um karma muito pesado seria suficiente como punição aos responsáveis.
Certamente a palavra ‘tragédia’ pode, nesse contexto, ser substituída por ‘genocídio’, já que suas proporções poderiam ser drasticamente reduzidas com um mínimo de decência e responsabilidade por parte do Estado.
Kimba nunca deixou de repetir que o Estado é uma doença que se apresenta como cura.
A sensação era de que o Brasil havia sido finalmente descoberto pela comunidade internacional, pois dessa vez não se tratava apenas do olhar do primeiro mundo sobre um país pobre, sofrendo de suas mazelas dentro de seus limites geográficos. Agora se tratava de uma ameaça mundial que não escolhia nacionalidade nem classe social. Nem mesmo a idade, como se acreditava no início.
Num determinado momento, pastores e generais assistiam à mais cruel devastação humana do século com a frieza de quem assiste a uma ficção, ou a justificavam como sendo uma vontade divina, enquanto seu rebanho esperava mais do que nunca por um milagre.
A real brutalidade da vida adulta, pelo menos na forma em que as pessoas lhe apresentavam verbalmente desde a mais tenra infância, se abateu sobre Kimba num tempo em que as incertezas passaram a ser cotidianas, na mesma proporção em que os governantes praticavam pataquadas numa sequência inverossímil.
A simples ideia de ser governado era algo de difícil digestão para ele. Crise era uma palavra tão recorrente em sua vida, que o sentido de situação provisória do termo se perdeu ou talvez nunca tenha se consolidado. Era algo perene, cuja agudeza se alternava nos diferentes setores da vida, podendo por vezes causar falsa sensação de alívio.
Algo para o qual ele atribuía quase todos seus problemas cotidianos. Não gostava nem mesmo de culpar apenas o governo pelo que quer que fosse, pois se tratava de um conceito tão desprezível que nem ao menos parecia merecer muita referência, por conta da redundância e, principalmente pela desesperança de viver o suficiente para ver alguma mudança nesse sentido.
Mas eis que finalmente uma gestão logo de cara se notabilizou pela superação no que diz respeito à insanidade administrativa, não apenas por índices de corrupção ainda mais elevados em comparação ás gestões anteriores.
Um tempo que colocou abaixo até mesmo a esperança que ele tinha de estar errado com relação ao que pensava de seu futuro e o de seu círculo social.
Se fosse possível deixar de lado a política econômica desastrosa e a escrotização da imagem do país no resto do mundo pelo conjunto da obra, apenas o descaso com questões ambientais imediatas seria suficiente para assustar o mais destemido niilista.
Era como se pelas razões erradas, agora estivesse nivelado às pessoas as quais ele atribuía exemplo de controle, segurança e sanidade. Não apenas e exatamente por algum mérito seu, mas pela queda de alicerces que ele próprio não tinha e quase invejava aos que tivessem.
E mesmo que na juventude não acreditasse no futuro, estava agora desapontado consigo mesmo.. O lado bom de ser considerado niilista era a possibilidade de estar enganado, e isso agora desaparecia como as perspectivas positivas para a época em que completaria cinquenta anos.
Num tempo em que seu desespero se tornou mais comum e passou a ser coletivo, ele se viu entre um estranho alívio e uma confusão pessoal ainda mais nebulosa.
Surgiram reflexões sobre o quão positivo era agora ter tido a desobediência como mote. Conclusões favoráveis a essa que era intuitivamente a força motriz para suas ações.


Capítulo 2- Status Cu


Emerson Martins, o Kimba, trinta e dois anos em 2005. A maioria de seus amigos não sabia qual era seu verdadeiro nome.
Desde os onze anos era mais conhecido como Kimba, apelido que ganhou na escola, dado por um professor de educação física. Apenas seus pais o chamavam de Emerson.
Foi nessa época que, em aparente solidão e tomado por muita desesperança, sonhava com algo que nivelasse almas desesperadas como a dele a outras que desfrutavam de um presente feliz e com perspectivas de um futuro próspero.
Conhecia pessoas que naquele momento tinham paz aparente, mas duvidava que essa alegria fosse amparada por uma esperança de longo prazo. Simplesmente não se pensava no futuro como também não viviam plenamente o presente.
Kimba temia não viver o suficiente para ver a mudança que almejava. Naquele momento, quinze anos antes da pandemia, uma tragédia ocorrida por questões ambientais serviria como elemento nivelador, mas a falta de preocupação geral por esse tipo de questão, tanto por parte das mídias como por parte dos cidadãos comuns tornavam seu anseio algo distante.
Por isso pensava que apenas uma tragédia de grandes proporções seria capaz de tornar visíveis os milhões de esquecidos nos mais variados tipos de miséria ao redor do mundo.
Embora não se falasse numa pandemia por vírus, não faltavam alertas por parte de ambientalistas sérios, que apontavam para iminentes tragédias por conta da maneira com que o planeta era tratado, e por mais que fossem embasados cientificamente, eram tratados com descaso e às vezes até como piada.
Kimba nasceu em 1973 e viveu a maior parte de sua vida em São Paulo, mas ao longo dela também havia morado em outros estados brasileiros.
Viveu por curtos períodos nos três estados da região sul, nas cidades de Curitiba, Londrina, Criciúma, São Leopoldo e Ijuí, onde tinha parentes pelo lado de sua mãe. Também viveu por algum tempo num sítio perto de Poços de Caldas, Minas Gerais, para onde um amigo alfarrabista de São Paulo havia ido viver anos antes.
As pressões para que finalizasse os estudos o fizeram voltar definitivamente para São Paulo. Era, afinal, onde tinha uma casa e podia trabalhar sem ter patrão ou empregados.
Desde a juventude tinha a aparência de um cafajeste típico. Costeleta, topete e bigode. Palitava os dentes. Tinha um metro e oitenta de altura, mas sua magreza fazia com que parecesse mais alto.
Também aparentava ser mais velho; a costeleta e alguns fios de cabelo nas laterais de sua cabeça começavam a embranquecer, o que contrastava com os outros fios no topo da cabeça que eram muito negros.
Os traços de seu rosto, que pareciam ter sido talhados em madeira, sugeriam que ele tivesse dez anos a mais. Seus hábitos pouco salutares certamente também contribuíam para que parecesse precocemente envelhecido.
Kimba vivia num apartamento extremamente estiloso na Rua Doutor Seng, no bairro da Bela Vista. Era um prédio pequeno, sem porteiro, sem elevador, daqueles em que as visitas interfonam do lado de fora e o sujeito abre ou não a porta através de seu interfone na cozinha.
Era um apartamento de oitenta metros quadrados, suficientemente aconchegante, poucos móveis, dispostos de modo que cada milímetro do espaço disponível fosse aproveitado.
Os poucos apartamentos do prédio, seis no total, divididos em três andares, eram habitados por pessoas idosas que saiam pouco de casa, ao contrário do prédio em que antes viveu por dezoito anos com os pais, em Higienópolis, onde os vizinhos eram numerosos e a movimentação era incessante, algo que o irritava, pois morava no décimo quinto andar e era muito difícil não encontrar pessoas que considerava desprezíveis ao entrar ou sair do prédio.
Pareciam nazistas camuflados por uma aparente indiferença com relação ao que ralmente pensavam.
Esse tipo de desprezo ficou mais justificável anos depois, quando do ápice da crise da pandemia. Ali muitas máscaras caíram, e o que eram apenas diferenças ideológicas não muito claras, passaram a indicar o quanto de humanidade havia nas pessoas, com novos parâmetros para que essa medida fosse mais clara.
Apesar de estiloso, era um apartamento escuro, porque a rua era estreita e o prédio à frente era grande e o sombreava, não permitindo que a luz do sol o alcançasse diretamente.
Seu novo apartamento tinha manchas de umidade nas paredes, que por essa razão e também por motivos estéticos, eram cobertas por colagens, posters e quadros, em sua maioria com referências ao Rock e ao cinema.
Leitor ávido que era, Kimba mantinha alguns livros, principalmente de literatura americana, alemã, russa e francesa numa pequena prateleira da sala. Os títulos mudavam semanal ou quinzenalmente, pois ele os trocava nos sebos do centro à medida que concluía a leitura.
Sua vida esportiva e social naquela época era calcada basicamente nas caminhadas pelo centro da cidade, que o ajudavam a balancear um pouco sua rotina, já que tinha fascínio pela reclusão.
Quando tinha tempo e condições de praticar um diálogo interno, era tal seu nível de abstração ao meio em que vivia, que só percebia o prazer que estava sentindo quando era interrompido por alguma ação humana, o que lhe chateava bastante e fazia com que prezasse cada vez mais por esses momentos solitários.
Havia poucos ítens decorativos em sua sala. Gostava mesmo era de colagens nas paredes, e por isso procurava as manter visíveis. Vivia ali desde os dezoito anos, a princípio com sua tia Clara, irmã de sua mãe, que era dona do apartamento e que também era sua madrinha, e que à época estava bastante doente. Sofria de câncer no pâncreas e estava desenganada.
Kimba se mudou assim que, a duras penas, concluiu o ensino médio no Colégio Rodrigues Alves, na Avenida Paulista. Um colégio estadual, que na época em que teve Kimba como aluno, era um retrato fiel das condições gerais da educação no Brasil.
Um prédio arquitetonicamente bonito, mas destruído pelo abandono do governo e pelo vandalismo dos alunos. Foi posteriormente reformado, muito mais por pressões relativas ao fato de ser localizado numa área rica da cidade do que por iniciativa governamental.
Antes Kimba havia passado por dois colégios particulares, mas embora fosse um bom aluno no que diz respeito às notas, tinha um comportamento não adequado àquelas instituições. Não porque fosse violento, mas era incisivo em seus princípios anarquistas e antagônicos a valores cristãos, o que incomodava os professores.
Seus pais então o matricularam no Rodrigues Alves como represália, e o que era para ter sido um castigo acabou por ser uma dádiva.
A proximidade que o colégio tinha da casa de Clara mudou sua vida. Visitava-a diariamente depois da aula. Em meio a muita maconha, cocaína e rios de goró, concluiu o ensino médio e se mudou definitivamente para a casa da tia.
Foi para a Bela Vista com o propósito de, a princípio, cuidar e fazer companihia à tia, única pessoa da família com quem tinha alguma afinidade, e também para deixar a casa dos pais, que seguiram vivendo em Higienópolis, num confortável apartamento próximo à Praça Buenos Aires.
Ali se sentia perseguido pelos vizinhos, por ser retraído e antissocial, por vestir-se de maneira diferente dos outros moradores, usando apenas roupas doadas ou compradas a baixo custo em bazares de igreja, além do fato de ter cultura e ser ideologicamente distinto daquelas pessoas.
Seus pais e vizinhos diziam que ele era esquizofrênico, mas Kimba se recusava a procurar a ajuda de um especialista. Foram anos ouvindo que alguma terapia o ajudaria a viver melhor.
Mas ele despertava curiosidade ali. Sofria muito quando subia ou descia de elevador com algum vizinho. Dizia que a forma como o olhavam fazia com que sentisse a dor de uma facada. Pior ainda era quando puxavam assunto no elevador, e então cada segundo ali parecia um ano.
Até os catorze anos, seu relacionamento com os pais era caótico, e depois, até que saísse de casa era praticamente inexistente, pois ia para lá apenas para dormir.
Esse período foi marcado por uma estranha sensação de que, ao contrário de seus amigos, voltar para casa era um castigo. Nesse ponto, idealizava a ideia de que seus amigos tinham no final do dia um oásis de tranquilidade ao chegar em casa para tomar banho, comer e dormir, enquanto ele entraria numa zona cheia de trincheiras.
No dia em que completou dezoito anos, mudou-se para a casa da tia que era irremediavelmente brigada com os pais de Kimba. Seus pais sabiam para onde ele tinha ido, embora ele nunca tivesse dado notícias de seu paradeiro e nunca tivesse sido procurado por eles.
Apenas imaginava que seus pais sabiam que ele estava com a tia e que isso era o bastante para eles.
Clara, professora de história que sempre se declarou anarquista, idolatrava mártires da classe operária e rompeu com a família pouco depois do nascimento de Kimba.
Aproximou-se do sobrinho quando ele entrou na adolescência. Morreu dois anos depois da chegada de KImba à sua casa, tendo vivido seus últimos meses afastada dos tratamentos convencionais, que pareciam debilitá-la ainda mais do que a doença, ao invés de trazer qualquer alívio, melhora da saúde ou esperança de cura.
Deixou documentado em testamento que o imóvel ficaria para Kimba quando ela morresse, além do fato de que queria ser cremada e não enterrada, desejo esse satisfeito pelo sobrinho, que espalhou as cinzas no parque do Ibirapuera.
Quando isso finalmente aconteceu, Kimba reformulou o apartamento, doando ou vendendo móveis, quadros, roupas e bibelôs que a tia acumulava ali.
Antes da morte da tia, Kimba dormia na sala e Clara ocupava o único quarto do apartamento. Davam-se bem, até porque Kimba passava boa parte do tempo fora de casa e fazia de tudo para não perturbar os poucos movimentos cotidianos de sua tia, que passava muito tempo na cama.
Ela notava e admirava esse tipo de comportamento, e gostava de tê-lo ali. Clara também tinha uma forte tendência para a antissociabilidade, potencializada pela doença. Alegava que o facismo estava se alastrando pelo país de forma desenfreada.
Para a tia, Kimba era como uma fagulha de vida em meio ao desengano em que ela vivia naquele momento, ainda que tal fagulha fosse oriunda de um sujeito que classificava o sumo de suas ideologias políticas e sociais como algo pertencente a uma ramificação evolutiva do que chamava de niilismo positivo, ramificação essa que ainda não tinha nome e a qual ele seria o único seguidor.
Aliás, não conseguia conceber a ideia de que duas pessoas no mundo pudessem ter exatamente as mesmas convicções ideológicas, religiosas e comportamentais.
Kimba nunca teve carteira de trabalho e geralmente arrumava trabalhos provisórios que pagavam por suas necessidades mais básicas e imediatas. Tinha predileção por trabalhar em sebos e bares da região central da cidade, onde conhecia e tinha amizade com um número suficiente de pessoas para que conseguisse trabalho quando preciso, ainda que provisório.
Quando passou a viver sozinho após a morte da tia, Kimba fez com que o apartamento parecesse mais espaçoso. Deixou um sofá de três lugares ao lado da poltrona de sua tia, posicionados diante da televisão que ficava encostada na parede oposta, sobre uma grande mesa antiga, de madeira de lei, que parecia ter sido feita sob medida para o tamanho do aparelho.
Sua tia havia lhe dado um computador de presente, e este passou a ficar no quarto. Kimba vendeu anéis e correntinhas de ouro da tia e com isso conseguiu passar algumas semanas desfrutando de uma alimentação melhor.
Em pouco tempo as paredes da sala estavam cobertas pelas colagens tiradas de revistas e posteres que trouxe da casa de seus pais. Eram fotos de bandas de rock, em meio a outras imagens de filmes obscuros e de baixo orçamento, sua eterna paixão cultural.
Havia deixado seus discos na casa dos pais e rendeu-se ao hábito de ouvir música pela internet. Era legal ouvir na íntegra os álbuns que até poucos anos antes ele não encontraria nem mesmo se viajasse o mundo todo, e caso os achasse, iriam lhe custar mais caros do que todo o resto da viagem.
Kimba frequentava os bares da redondeza, mas tinha predileção pelo Calçada da Fama, na Avenida Nove de Julho, que na verdade não tinha esse nome, mas foi assim apelidado porque na calçada à sua frente, ao invés daqueles desenhos com referência ao Estado de São Paulo, haviam ridículas lajotas brancas com uma estrela dourada no meio de cada uma.
Um lugar que exalava um sentimento misto do alívio pelo fim de mais um dia de trabalho para os moradores da região com a agonia e os olhares perdidos dos andarilhos que passam por ali sem qualquer perspectiva para as horas seguintes.
Geralmente ia sozinho, e às vezes se sociabilizava com algum amigo do bairro pelo caminho ou no próprio bar. Gostava de estar só encostado no balcão e ouvir histórias horríveis dos outros frequentadores. Gostava sobretudo de indiretamente fazer parte delas.
As ladeiras da Bela Vista faziam com que ao final desses passeios, Kimba estivesse pronto para se deitar, ler algumas páginas de um livro e dormir no começo da madrugada.
Apenas uma ou duas vezes por semana as madrugadas eram passadas em claro, em casa ou na rua.
Ele prezava o período da manhã, pois achava que até a hora do almoço sempre teria tempo para cumprir tarefas cotidianas não muito agradáveis, sendo recompensado à tarde com algum tempo livre para o ócio, fosse ele criativo ou não.
O ócio matutino lhe desagradava terrivelmente, enquanto o vespertino lhe era agradável.
Kimba tinha uma namorada e dizia a seu amigo Freitas, um dos poucos que tinha, que a garota tinha sido escolhida por causa de seu nome, Karenina, e também porque ela tinha aversão à ideia de ter filhos.
Freitas e Karenina foram apresentados tardiamente, o que a havia tornado mítica para Freitas. O mito só cresceu a partir do momento em que ele a conheceu pessoalmente, como veremos mais para frente. Comecemos então a apresentar Rodrigo Freitas.
Morador da Alameda Campinas (para o lado da Bela Vista, e não para o lado dos Jardins), Freitas era vizinho próximo de Kimba e também eventual frequentador do Calçada da Fama. Quando Kimba o conheceu, Freitas parecia um professor de matemática.
Usava óculos de aro grosso, tinha cabelo liso com franja, altura mediana e não era gordo nem magro. O típico nerd descompromissado. Depois deixou o cabelo e a barba crescerem, usava apenas óculos escuros de grau (dizia que assim ficava invisível) e se afundou na bebida com Kimba.
Menos de duzentos metros separavam os prédios em que moravam.
Aos trinta e cinco anos, Freitas ainda vivia com os pais e tinha alguma vontade, mas nenhuma perspectiva real de mudar-se dali. Como ele e seus pais não constituíam o que de fato pudesse se chamar de família, Freitas encarava a situação como se aquele apartamento fosse uma espécie de pensão na qual vivia de graça.
Não havia atritos sérios na ´'família', na mesma proporção em que não havia grande proximidade entre eles. Era como um acordo silencioso que visava não macular a individualidade e a privacidade daquelas três pessoas. Era estranho para Freitas que seus pais tivessem escolhido viver assim, mas considerava que fosse algo geracional e não necessariamente uma escolha de vida.
O apartamento era razoavelmente grande para três pessoas e os pais de Freitas dormiam em quartos separados. No entanto era comum tomarem café da manhã juntos e fazerem o que bem entendessem ao longo do dia. Doutor Ernesto, o pai, não tinha horários fixos para trabalhar. Era ele quem os determinava.
Doutor Ernesto, era um clínico geral aposentado por tempo de serviço que continuava trabalhando numa clínica da qual era o dono, localizada na Vila Mariana.
A mãe, Dona Rosa, era uma pacata, porém atormentada dona de casa que já não tinha motivos nem vontade de se preocupar com o que acontecesse fora dos limites de sua residência.
Para ela bastava que ali dentro tudo se mantivesse sob controle. Raramente gastava energia fora de casa, e quando o fazia, era para satisfazer pequenos prazeres mundanos do cotidiano burguês que para ela, num mundo ideal, deveriam ser acessíveis a todos.
Era a única pessoa ali que tinha uma rotina mais definida, geralmente com tarefas domésticas convertidas em atividade física. Tomava seus antidepressivos e conseguia aguentar o fato de os dias serem sempre iguais.
Já Freitas não tinha horários definidos para nada. Comia, dormia e bebia. Comprava as bebidas com o troco do dinheiro que seus pais lhe davam para as compras no mercado ou na padaria.
Não tinham empregada, contrariando uma tendência do prédio em que viviam. Tinham verdadeiro pavor da ideia. Prezavam muito pela privacidade e não admitiriam de maneira alguma que alguém de fora da família soubesse o que se passava dentro daquele apartamento, ainda que ali não acontecesse nada de extraordinário no dia a dia. E assim haveria de continuar.
Viam diariamente as empregadas do prédio contando para os porteiros e para as outras empregadas detalhes íntimos e muitas vezes sórdidos sobre a vida de seus patrões. Achavam aquilo repugnante demais.
Na cozinha da família Freitas cada um era responsável por louças e talheres que usassem. Freitas e Dona Rosa dividiam a limpeza da sala e dos banheiros quando necessário.
O pai contribuía mensalmente com o INSS para que o filho tivesse direito à aposentadoria quando essa lhe fosse necessária.
Curioso era o fato de que Doutor Ernesto não cobrava o filho com relação a procura de um emprego. Como que por alguma punição, dizia consideravar o filho inapto para qualquer função prática na vida corporativa.
Freitas, assim como Kimba, ouvia muitos conselhos sobre os benefícios que uma terapia poderia trazer. Nunca teve um emprego formal. Não chegava a pensar seriamente nesse assunto. Chegou a pegar um trabalho temporário de fim de ano, como Papai Noel no Shopping Eldorado.
Quem lhe arrumou esse trabalho foi o próprio Papai Noel que trabalhou ali no ano anterior, conhecido como Nunes, um idoso de barba branca que morava numa pensão na Rua Rocha, perto do Calçada da Fama, do qual era frequentador assíduo.
Kimba e Freitas costumavam se referir a ele como Willie Nelson. Para parecer mais gordo como o Papai Noel, usava enchimentos na roupa.
Embora Nunes tivesse algumas características como andar sempre limpo, ter grandes olhos azuis, quase sempre vestido com roupas pretas bem conservadas e ser educado para os padrões do Calçada da Fama, era de um modo geral, especialmente para Kimba e Freitas, a personificação da decadência humana.
Era uma figura carimbada na região. Tinha muitos problemas com a dona da pensão, Sônia, porque invariavelmente atrasava os pagamentos e encontrava refúgio no bar para não ter que aguentar as cobranças o dia inteiro. Tentava entrar e sair sem que ninguém o visse, o que era impossível. Sônia era barraqueira e não tinha classe nenhuma.
O sonho de Nunes era ser dono de um puteiro, e num período em que sua inadimplência na pensão chegou a três meses, propôs a Sõnia que ela reformulasse seu negócio, sob o argumento de que um puteiro seria muito mais viável financeiramente.
Sônia quase enlouqueceu de fúria com a proposta e jogou as roupas do velho pela janela, expulsando-o da pensão. Depois de algum tempo, sob pressão da vizinhança, que ajudou Nunes a amenizar sua dívida, ela o aceitou de volta.
Mas chegou a dormir por alguns dias na rua com Teodoro, um homeless que perambulava pela Bela Vista e mangueava bebida no Calçada da Fama. Tinha 30 anos na época e já vivia na rua havia três anos, depois de seus pais terem morrido.
Era um sujeito estranho, porque tinha um nível de debilidade mental moderada que poderia ser atribuída ao fato de viver na rua. Mas Kimba já o conhecia há muito tempo, quando Teodoro tinha casa e vivia com o pai na Rua Itapeva. Não sabia amarrar os sapatos, ou desaprendeu quando foi viver na rua.
Largou um emprego de segurança numa galeria do centro porque começou a fumar crack descontroladamente. A esse fato também pode-se atribuir sua demência, embora Kimba afirme que antes disso ele já tinha dificuldades intelectuais.
Foi internado por seu pai por seis meses. Segundo ele, nunca mais fumou pedra. Depois que saiu da clínica, dizia que apenas bebia e fumava cigarros.
Pouco depois seu pai morreu, e sua vida ruiu. Não havia herança e Teodoro simplesmente passou a viver na rua. Sentia ódio por seu pai não ter deixado nada para ele.
Recusava-se terminantemente a procurar albergues. Não passava fome, porque conhecia muita gente no bairro e as pessoas lhe davam comida e roupas. Mesmo assim vivia muito sujo, com os dentes todos estragados e as unhas inacreditavelmente sujas. Não havia nada nem ninguém que conseguisse motivá-lo a mudar de vida.
Freitas já tinha visto-o nas redondezas, mas o conheceu de fato quando Teodoro estava jogado na rua de Kimba, que o apresentou. Foi triste ver aquele sujeito em frangalhos, sujo, nocalteado por muito corote, com o olhar abobalhado, balbuciando debilmente que um conhecido dele, craqueiro, havia lhe roubado duzentos reais que ganhou pintando quartos na pensão.
Mas voltemos a Nunes. Tinha sessenta e seis anos e de acordo com ele próprio, havia sido um bon vivant na juventude. Pode-se dizer que em meio à clientela do Calçada da Fama conseguia se sobressair, pois ao menos falava o português corretamente.
Tentou algumas vezes uma aproximação de Kimba e Freitas, e o fez da pior maneira possível. Por ser um frequentador antigo e ter ficado intrigado com aqueles dois sujeitos que conversavam praticamente apenas entre eles mesmos, os abordava para falar de música, sobre as mulheres que passavam ali e sobre assuntos aleatórios, de uma forma quase desesperada para ter alguma atenção, porque percebia que os dois eram de alguma forma, pelo menos naquele ambiente, autosuficientes o bastante para não terem que recorrer ao tipo de popularidade a que Nunes ansiava enquanto sentia que sua finitude era cada dia mais iminente e próxima.
Logo nas primeiras tentativas de entrosar-se com aqueles caras mais jovens e que para ele pareciam misteriosos e até mesmo arrogantes, Nunes foi esmagado com a sutileza que só as palavras não ditas em resposta a suas investidas poderiam proporcionar. Era como se aquele velho sem moral alguma no bairro quisesse ter moral justamente com eles.
Nunes descuidou-se das cautelas mais elementares para que envelhecesse de maneira tranquila. Teve uma juventude nos padrões da classe média brasileira nos anos sessenta. A mais completa falta de informação política e cultural, somadas ao deslumbramento de um jovem imbecil.
Tornou-se alcoólatra aos dezesseis anos e dizia que nos bons tempos tomava apenas uísque de qualidade e que as mulheres o levaram à ruína. Já na época da pensão bebia pinga com limão e maria mole.
Sua saúde era muito debilitada. Tinha todos os tipos de doenças que se pode imaginar: Enfisema pulmonar duplo, hérnia de disco, trombose, úlcera e cirrose. Não tinha vesícula, baço e metade do pâncreas.
Sempre chegava no Calçada da Fama reclamando de dores terríveis por todo o corpo, mas na segunda dose de aguardente já parecia outra pessoa, alegre e falante. Todos ali se perguntavam até quando aquele refugo aguentaria esse estilo de vida e sobretudo porque ainda queria estar vivo.
A base de sua alimentação era o ‘bolovo’ preparado por Seu Alencar, o dono do Calçada da Fama. Tratava-se de um ovo cozido coberto com uma grossa camada de massa de coxinha. Era o maior e mais barato ítem da vitrine de salgados do Calçada.
Quando Seu Alencar os fritava, o cheiro de óleo reaproveitado invadia as casas vizinhas e engrossava a camada de gordura marrom no teto do bar. Certa vez Kimba não resistiu, e quando estava pagando por suas bebidas para ir embora, pediu um bolovo para levar para casa.
Ao chegar em casa, o saco de papel que envolvia o bolovo estava desintegrado, tamanha era a quantidade de óleo concentrada ali. Ele tinha comida em casa, mas aquela seria uma experiência mais antropológica do que culinária. Ele compreendeu o porque da obsessão de Nunes por aquele artigo.
Na verdade já sabia que se tratava de uma questão mal formulada de custo-benefício, mas comeu o bolovo inteiro antes de dormir, achou gostoso e não passou mal.
Era triste ver Nunes eventualmente caído na rua ao tentar voltar embriagado à pensão. Nessas ocasiões parecia sempre estar morto, entregue por completo ao cimento úmido e frio. Era difícil imaginar alguém mais solitário do que o velho Nunes.
Nunca foi casado. Kimba e Freitas tinham uma aversão visceral pela ideia de casamento, mas achavam que Nunes estaria melhor se tivesse uma companheira.
Nunes era bastante magro, e quando trabalhava como Papai Noel, usava roupas com enchimentos. Seu estado de saúde não permitia que suas idas ao bar fossem divertidas como em épocas anteriores, mas permanecer na pensão enquanto estava acordado era algo ainda mais difícil.
Gostava de ouvir boleros e música latina de um modo geral. Para parecer atualizado, fazia pesquisas na internet para saber quais eram as músicas em primeiro lugar das paradas pop do mundo. Cantoras adolescentes que não deveriam agradar nem mesmo ao mais estúpido dos pré-adolescentes.
Em resumo, era um senhor bêbado, triste, doente e que nunca soube transformar sua experiência em maturidade.
De qualquer forma bastaria Freitas esperar por mais alguns anos de contribuição para o INSS e estaria a salvo na velhice, além de contar com algumas reservas financeiras de seu pai, sempre cuidadoso com dinheiro.
Planejava viver a velhice em isolamento completo, num lugar de difícil acesso, sem vizinhos próximos, com uma companheira mais jovem, carinhosa e inteligente. Um sítio com piscina e cães. Contaria com algum serviço para a entrega de mantimentos.
Ele sempre achou que seu pai mantinha para ele um bom padrão de vida sem lhe cobrar qualquer tipo de responsabilidade empregatícia para que ele não deixasse de viver ali. Freitas apenas não compreendia totalmente a razão.
Freitas não era um rapaz 'trabalhoso' para seus pais. Formou-se jornalista pelo Mackenzie, com seu pai pagando pelo curso, que depois de concluído virou um papel enrolado numa gaveta.
Ele sempre achou que valeria a pena para o caso de um dia alguém vincular ao diploma universitário a credibilidade de suas opiniões. Mesmo assim, seus pais ficaram satisfeitos e diziam que caso ele fosse preso por alguma razão sofreria menos numa cela especial.
Depois disso, sua permanência ali não trazia despesas significativas. Preparava sua própria comida e evitava ao máximo comer fora para evitar gastos, ao contrário de seu pai, que quase diariamente almoçava em bons restaurantes. Vez ou outra levava Dona Rosa, ou Freitas, ou ambos.
Freitas usava para seus gastos o dinheiro que sobrava das compras que sua mãe lhe pedia para fazer. Comia em casa, então esses gastos eram apenas para a maconha e a bebida. A cocaína era fornecida por amigos, especialmente Kimba.
Entre os Freitas, pouco era conversado sobre acontecimentos cotidianos da vida de cada um. Para a manutenção da harmonia familiar bastava que nenhum dos três se envolvesse em problemas pessoais que afetassem os outros dois e o esquema da casa.
Freitas procurava se tornar invisível aos pais, que em menor proporção também adotavam essa prática. Essa antissociabilidade dos três se estendia ao resto do bairro. Não gostavam da vizinhança e procuravam fazer com que nada, especialmente fofocas dos vizinhos, interferisse em suas rotinas.
Tanto Kimba quanto Freitas odiavam tudo o que a família brasileira era, representava, pensava, fazia e pregava. A Bela Vista e o Bexiga proporcionavam a eles histórias e cenas que envolviam desgraças familiares que de tão repugnantes, fizeram com que ambos passassem a se interessar pelo tema e tomar conhecimento de certos fatos que os faziam se sentir melhor com suas vidas.
Quando essas cenas de terror entre familiares e vizinhos não eram explícitas, os próprios vizinhos contavam a eles com os mais sórdidos detalhes. É um lugar que mistura características de centro e também de bairros periféricos, mistura essa que resultava numa população heterogenia.
Esses certamente foram alguns dos pontos de intersecção que os tornaram amigos, juntamente com o fato de serem fãs de Rock, além de serem piromaníacos e obcecados por explosões e destruição em massa.
A questão da família brasileira (e do brasileiro de um modo geral) e algumas outras convicções inabaláveis eram divididas entre eles.
Pode-se dizer que as tendências político-ideológicas de ambos eram indubitavelmente calcadas no anarquismo, mas procuravam evitar usar essa ou qualquer outra nomenclatura para classificar suas ideologias, evitando assim eventuais contradições em suas retóricas e principalmente as conversas sobre política com pessoas que não conheciam do assunto.
Odiavam tanto os coxinhas com tendências fortes para a direita como os estudantes de ciências sociais de barba que passavam o dia de chinelo discutindo Marx no campus das universidades públicas e jogando pebolim.
Kimba e Freitas só compareceram às urnas antes que as convencionais fossem substituídas pelas eletrônicas. Gostavam de anular seus votos escrevendo tudo o que pudessem naqueles pequenos pedaços de papel.
Demoravam propositalmente na cabine, para que preenchessem por completo os espaços em branco nas cédulas, e também para irritar quem estava na fila com camisetas de candidatos ou partidos.
Naquele tempo era possível voltar para casa com muitos isqueiros, canetas e chaveiros com propaganda de candidatos. Depois, com a implantação definitiva da urna eletrônica nem saiam mais de casa em dias de eleições. Seus anseios não cabiam em urnas.
Discorriam por um longo tempo quando alguém em período de eleições perguntava a eles sobre qual era o candidato escolhido. Não falavam sobre os candidatos nem sobre os partidos e sim como a urna eletrônica é uma indecência fraudulenta e questionavam como o povo podia cair numa cilada dessa.
Isso servia como desabafo e sobretudo para insultar e afastar quem eventualmente puxasse o assunto. Até porque a votação em cédulas não garantiam qualquer segurança contra fraudes.
Apesar do problema ser o voto em si, independente de ser eletrônico ou no papel, evidentemente o passar dos anos mostrou o que eles já sabiam: as massas jamais questionariam a urna eletrônica, e pior ainda, continuariam a discutir políticagem partidária, como se uma sigla ou outra representasse algo diferente entre elas, quando na verdade trata-se de pequenas larvas corrompidas e cegas pela possibilidade de alcançar o poder sobre essa massa que supostamente os colocou no poder.
Ainda pior, como tudo o que aconteceria anos posteriores, era que o governo da pandemia, pelos motivos errados, também questionava a urna eletrônica.
Uma vez assumindo seus cargos, são superexpostos por quem realmente tem poder, Poderosos anônimos com um poder calcado especialmente no anonimato e não apenas no dinheiro. São aqueles poucos que dão as ordens e ninguém sabe quem são. São aqueles que dão as cartas e decidem entre quatro paredes quem serão seus fantoches no governo. "O subdesenvolvimento brasileiro é um projeto dos bancos", dizia Kimba.
Enfim, uma macroestrutura que fugia por completo do microcosmo composto por Kimba, Freitas e Karenina, que embora soubessem que. quisessem ou não, faziam parte daquilo, procuravam ao menos se opor na medida do possível a certas regras sociais, tendo no isolamento um alicerce importante. Eram três vizinhos filhos únicos com alguns ideais em comum.
Naturalmente as diferenças entre os três também existiam, e em número muito maior que as semelhanças, especialmente no que diz respeito à personalidade.
Enquanto Kimba podia ser considerado um praticista, indo algumas vezes até as últimas consequências para defender algumas dessas convicções através da prática, sempre argumentando que tudo que o mobilizava tinha o status de guerrilha,
Freitas preferia esperar para que o tempo mostrasse que ele tinha razão quanto a certos fatos humanísticos, preferindo não se expor tão facilmente, pois pensava que fazer o contrário implicaria num envolvimento desnecessário com pessoas e situações que lhe causavam repulsa.
Achava também que essas pessoas não mereciam ter acesso às suas ideias, primeiro porque a maioria delas não as entenderiam, e também porque ele achava atraente que essas pessoas se afogassem no senso comum, fazendo tudo errado o tempo todo, financiando os próprios castigos.
De uma certa forma, Freitas acreditava que o inferno que essa gente cria era para ele um mal necessário, para que muitos outros humanos desprovidos de mínima inteligência e bom senso pagassem por isso.
“Se esses infelizes pensam que a simples maioria numérica representada por eles, um rebanho burro e passivo, merece ter suas ideias sobrepostas a de uma minoria mais esclarecida e inteligente, e ainda chamam isso de democracia, então que se fodam, e há pouco a fazer sobre o fato de os melhores irem junto para o ralo. Esse risco é iminente pra nós e até certo ponto temos que aceitar isso. O grande rebanho convencionou inconscientemente que a burrice é inerente à espécie. Acontece que essa burrice coletiva parte de uma burrice individual. O típico burro é aquele que quando eventualmente consegue alguma vitória, geralmente conquistada sobre alguém ainda mais burro, não sabe o que fazer com ela, voltando à estaca zero. Eles nunca vão muito longe, mas representam um perigo, que é colocar tudo a perder, e não só pra eles. Fala-se muito em democracia. Democracia é algo que aqueles que precissam dela nem sabem o que é. Os que sabem não precisam dela nem a querem.”, costumava dizer em seus monólogos.
Kimba parecia mais calejado e duro em relação ao que o fazia sofrer ou aos inconvenientes inevitáveis de sua vida. Praguejava horrores contra esses inconvenientes, mas acabava por enfrentá-los com mais naturalidade que Freitas.
Diferentemente do amigo, quando adolescente sonhava ardentemente com o dia em que finalmente sairia da casa dos pais, e o fez quando a legislação e a conclusão do ensimo médio o permitiram fazer, sem que precisasse despedir-se de seus pais, por quem já não tinha qualquer tipo de sentimento ou vínculo.
Tirou um peso enorme das costas, perdeu por completo o contato com os pais e sabia que a partir de então estava por conta própria e com menos tempo e motivos para reclamar da vida. Poderia cometer seus erros sem que precisasse encontrar um culpado que não fosse ele próprio. Nesse ponto assemelhava-se um pouco a Freitas, no que diz respeito a não se expor tanto.
Já Karenina parecia uma bonequinha européia. Vinte e três anos, um metro e setenta de altura, cinquenta e dois quilos, cabelos originalmente castanhos e avermelhados graciosamente com tintura importada, o que acentuava a brancura de sua pele que tinha textura de pêssego. Tinha grandes olhos castanhos. Usava camisetas de bandas de rock alternativo com a gola cortada, calça jeans gasta e tinha pares de tênis de modelos simples, mas de marcas desconhecidas no Brasil. Tímida e extremamente doce e educada, era uma cinéfila de marca maior, além de dividir com Kimba o gosto pela leitura. Passava horas lendo os livros de Kimba e fazia anotações em um caderno.
A primeira conversa entre Kimba e Freitas começou numa noite em que Freitas estava sozinho tomando cerveja na porta do Calçada da Fama vestindo uma camiseta do Rush, banda pela qual Kimba era fanático.
Desde o começo haviam assuntos que eram levantados por um e que interessavam ao outro também, o que a princípio camuflou as diferenças entre eles, como o fato de Kimba ser um tipo mais descontraído quando as circunstâncias permitiam, e rude em outros momentos, enquanto Freitas era mais reservado e cauteloso no que dizia respeito a relações interpessoais, fossem elas de qualquer espécie.
Ambos definiam suas vidas como “um pesadelo brasileiro” do qual a própria condição de brasileiros tornava-os integrantes, quer quisessem e gostassem ou não.
O fato de não quererem e não gostarem dessa condição era para eles um agravante para a situação. E cada um via na vida do outro motivos para não se sentir tão mal com sua realidade. Por outro lado, haviam fatores na vida de ambos que quase causavam inveja de parte a parte.
As conversas que tinham sobre isso sempre duravam horas e invariavelmente permaneciam inconclusivas.
Enquanto Freitas vivia questionando a própria sanidade mental quando lembrava que ainda morava com os pais e que não sabia nem por onde começar uma reformulação em sua vida,
Kimba dizia a ele que havia ali o mérito de manter uma vida minimamente tranquila, pelo fato de os pais de Freitas não serem pessoas muito descontroladas e que apesar de serem mais velhos, ainda procuravam algum sentido para a vida, apesar disso fazer com que o conceito de família mais uma vez caísse por terra, o que não era problema, tendo em vista o repúdio que tinham do conceito de família tradicional.
Já Freitas argumentava que Kimba não tinha tantos problemas porque só fazia o que queria, vivia sozinho num apartamento estiloso e além de tudo tinha uma namorada graciosa.
Kimba rebatia novamente dizendo que não eram poucos os fins de semana em que se alimentava dos restos da feira que era montada aos sábados na Rua Sílvia, bem próxima à sua casa.
De fato se aproveitava semanalmente desses restos, depois de ajudar os feirantes que eram conhecidos a desarmarem suas barracas e as guardarem em suas kombis.
Esses restos não eram nada repugnantes, já que nessas ocasiões levava para casa tomates, laranjas, tangerinas, morangos, bananas e pés de alface em bom estado, tantos quanto pudesse carregar, e sem gastar nada.
As japonesas que vendiam pastéis também o presenteavam com pastéis prontos que não foram vendidos. Não tinha restrições alimentares, de modo que para ele os alimentos eram apenas combustível para as funções vitais.
Kimba e Freitas já se conheciam havia algum tempo quando numa tarde de domingo, enquanto assistiam a um DVD do Steely Dan no apartamento de Kimba, a porta da sala foi aberta por uma garota trazendo várias sacolas de supermercado. Freitas a viu com dificuldades para segurar as sacolas e tirar a chave da fechadura, então olhou para Kimba, cuja indiferença diante da cena era tão fria que o deixou confuso por alguns segundos.
Sem tirar os olhos da tela, ele apenas ajeitou e coçou o saco. Então Freitas se levantou para ajudar a garota, enquanto Kimba nem ao menos tirou os olhos da tela. Continuou fumando o baseado e trajando apenas uma cueca encardida e com o elástico frouxo.
Na cozinha, Freitas a ajudou a guardar pacotes de macarrão, tomates, morangos, iogurtes, queijo, biscoitos, chocolates e maçãs. Ele já sabia que se tratava de Karenina.
Pele muito branca, olhos muito negros e grandes, cerca de um e setenta de altura ao longo dos quais uns cinquenta e poucos quilos eram distribuídos com harmonia. Era o que ele entendia por uma falsa magra. Seus cabelos castanhos escuros tinham algumas mechas vermelhas.
Era uma garota doce, meiga, educada e carinhosa. Era sensual e ao mesmo tempo discreta. Vestia uma camiseta branca do New Order com a gola cortada, com a alça de seu sutiã preto exposta em seu ombro esquerdo. Uma garota aparentemente incompatível com Kimba. Tudo neles parecia antagônico, exceto a loucura, que no caso de Karenina era oculta para leigos, enquanto a de Kimba era evidente.
Naquele período sua loucura consistia no interesse pela mente destorcida de Kimba. Estava disposta a suportar tudo que viesse dele, para usá-lo como molde para um personagem fictício para um livro que queria escrever futuramente.
Karenina morava na Rua Almirante Marques Leão, a três quarteirões de Kimba. Estudou no colégio São Luís e formou-se arquiteta na Belas Artes, concluindo o curso apenas para agradar aos pais, poucos meses antes de conhecer Kimba.
Ela rabalhava na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, na Avenida Paulista. Tinha planos vagos de fazer um mestrado.
Quando Freitas ouviu os passos de Kimba se dirigindo à cozinha, pensou que ele os apresentaria, mas ao invés disso perguntou a Karenina se ela havia trazido vodka e cigarros. A resposta negativa quase o levou a um ataque de fúria, o que chocou Freitas, mas não Karenina, que apesar da aparência frágil, parecia acostumada àquilo.
Ela apenas argumentou que não conseguiria carregar mais nada e que por isso trouxe prioritariamente produtos alimentícios. Então olhou para baixo, como uma garotinha tímida tomando uma bronca de um padre severo no interior da Itália do século dezenove.
Foram necessários alguns minutos para que Freitas acreditasse que aquela cena surreal realmente tivesse realmente acontecido. Era como contrapor uma vida primaveril e uma morte invernal.
Acordou do breve devaneio enquanto Kimba voltou para a sala praguejando horrores. Freitas virou-se para Karenina, que ainda olhava para baixo. Timidamente ela também o encarou, mas rapidamente voltou seus olhos para o chão.
Em meio a um silêncio constrangedor que já durava dois minutos, Kimba ressurgiu na cozinha depois de ter vestido uma bermuda jeans e uma camiseta vermelha e bastante puída da Suzy Quatro. Anunciou que estava indo ao mercado enquanto abria a porta sem olhar para dentro da cozinha. Freitas o seguiu depois de dizer em voz baixa a Karenina que logo estariam de volta.
Desceram o único lance de escada que os separavam do térreo e ao pisarem na calçada, antes que Freitas pudesse questionar Kimba a respeito do que havia acontecido, ou sobre o que estava acontecendo, começou a ouví-lo reclamar da fila que teriam que enfrentar no mercado.
Quando já estavam na fila do caixa do Extra da Brigadeiro Luís Antonio, Kimba começou a falar sobre o que havia se passado no apartamento. Explicou que Karenina era sua namorada e que no momento em que começou a se envolver com ela, vivia com a mente confusa. Disse que a conheceu num momento em que estava tomando decisões sem pensar nos seus desdobramentos. Decisões provisórias, paliativas e inconsequentes.
Foi então que Freitas percebeu que Kimba tinha muito mais motivos do que ele para temer por sua saúde mental. Muito mais por suas ações do que por suas palavras, que até aquele momento se resumiam a um contínuo lamento amargo e murmurado, quase incompreensível.
Quando finalmente chegaram ao caixa, Kimba imediatamente pediu à garota que chamasse o sujeito que trazia os cigarros, para que não perdessem tanto tempo ali. Ela o fez, e quando o rapaz chegou de patins para saber qual era a marca do cigarro, Kimba pediu dois maços de Marlboro sem olhar para ele. Então pagaram pela Orloff e pelos quatro pacotes de salgadinhos Torcida. O rapaz trouxe os cigarros e eles saíram apressados.
Freitas disse que iria voltar para sua casa alegando com palavras não ditas que Kimba tinha algo a resolver com aquela garota. Kimba não permitiu que ele fosse embora.

_ Vou contar o que está acontecendo. Gostei dessa menina no dia que a vi. Detesto admitir que naquele dia me sentia sozinho e carente. A solidão que se foda, porque eu sou de fato uma pessoa solitária, gosto dessa condição e procuro respeitar minha natureza. Mas carência é uma fraqueza. Tanto que agora nem me lembro da razão pela qual me sentia daquela forma naquele dia. Eu a conheci numa fila de mercado como essa que enfrentamos agora. Inclusive, o mercado era esse mesmo. Troco de pão, troco de cigarro... e essas moedas se acumulando. Um dia precisei delas mais do que nunca e fui comprar um Dreher. Ela estava na fila, estava bem atrás de mim. Chegou a minha vez na fila e despejei dezenas e dezenas de moedas pra infeliz do caixa contar. Minha moeda mais valiosa era de 25 centavos. Aí olhei pra garota dos moranguinhos e ela sorriu com timidez. No carrinho dela tinha essas mesmas coisas que ela levou hoje pra casa. Morangos, iogurte, granola e coisa e tal. Eu usava uma camiseta do Fugazzi, furada com brasas de cigarro, o que convenhamos é até certo ponto contraditório, porque até onde sei eles são straight edges e ela disse que gostava da banda, quase se escondendo de tanta timidez. Então descobri que ela é nossa vizinha, o que era de se prezumir pelo fato de estar fazendo compras ali. Mora na Marques Leão. Eu a ajudei a levar as compras pra casa dela e então saímos pra dar um rolê... Era um domingo, começo da tarde e ela queria ir à feirinha do Bixiga. Fui direto pras barracas que vendiam discos e devo ter ficado lá pelo menos duas horas, porque sou amigo dos caras que vendem LP’s. Enquanto conversava com eles e vasculhava os discos, quase esqueci que ela estava ali, escutando pacientemente conversas sobre bandas obscuras. Nos conhecemos há cerca de três meses, talvez um pouco mais... Fiquei intrigado com o fato dela ter se interessado por mim, e não foi só por causa das nossas diferenças mais imediatamente perceptíveis. Porque apesar delas, nossos problemas são basicamente os mesmos. Eu sei que citar alguns desses problemas é chover no molhado. Atritos familiares, desespero ao ter que lidar com gente obtusa, prestações que vencem antes de percebermos que mais um mês de vida foi desperdiçado. Eu sei que você deve ter achado que fui rude com ela. Mas, embora possa parecer absurdo, já conversamos sobre tudo o que tem acontecido em nossas vidas nos últimos tempos e também sobre o que aconteceu antes, aquilo que desgraçadamente nos tornou o que somos hoje. Tive que banir o uso de celular por parte dela. Ela não largava aquela porcaria de jeito nenhum. Aquilo me tirava do sério. Me dá calafrios ver na Paulista todas as pessoas internadas nessas porras de celulares, sem interagir com nada do que acontece ao lado. Se ao menos essas pessoas não fossem tão estúpidas e tivessem algo legal a dizer a quem quer que seja... Mas é uma comunicação instantânea a serviço do nada. Isso vai afastar cada vez mais o rebanho dos livros, algo do qual eles já estão e sempre estiveram a quilômetros de distância. Um povoque não gosta de livros é um povo zumbi, natimorto, sem o mínimo de categoria. Pra ser sincero, achava que aquela menina preferiria ficar com o celular do que comigo, e também não posso negar que eu queria que fosse assim. Muito me surpreendeu que acontecesse o contrário, e isso me comoveu de certo modo. Amor e razão são eternos inimigos. Lidar com esse fato é tentar resolver uma equação extremamente complicada. Um dos pilares da nossa frágil relação é o fato dela não gostar de maracatu e samba e essas coisas que me enchem o saco. Ela não gosta de saraus também. Num dia desses ela me contou que participaria de um sarau e que o faria para a ajudar a organizadora do evento, que é amiga dela. Certamente é uma dessas agitadoras culturais. Cachecol e boina. Uma hipster idiota como todos os frequentadores de sarais e simpósios. É claro que fui à porra do sarau, e ela só me viu quando já tinha acabado, porque eu fui disfarçado. Ela quase ficou brava. Pouco tempo antes uma menina me chamou pra ir a um sarau em troca de uma cesta de alimentos congelados. Quando chegou o dia, esqueci do sarau e perdi a cesta. De qualquer maneira a Karenina é confiável culturalmente. Isso me encanta. No meio da semana seguinte àquela em que a conheci não havia em minha vida qualquer resquício de carência, e queria que tudo que valesse a pena voltasse a ser como era. Sem saber, eu tinha algum controle sobre aquele caos perene e anterior ao dia em que a conheci. Era quase prazeroso tentar combatê-lo. A presença dela tem feito com que me sinta responsável por dar um retorno às coisas boas que ela faz pra mim, e já não sei se sou capaz. Mas para cada escolha, uma renúncia. As renúncias sempre me arrancam pedaços. As escolhas são um reboco nem sempre satisfatório. Eu escolhi tentar levar isso um pouco mais adiante e não sei o que pode acontecer. Ela nunca me chamou de bipolar, porque intuitivamente sabe que quando as coisas dão certo eu fico de bom humor e quando dá tudo errado fico puto. Se isso for bipolaridade, a minha é crônica e aguda. No fim das contas ela quer que eu não apodreça naquele apartamento cultivando meu ódio pela espécie humana. A liberdade é solitária. Estou longe de ser livre, e isso me corrói. Mas o primeiro passo é entendermos que liberdade é também um conceito abstrato. Não gosto de divagar e filosofar sobre o sentido da vida porque muitos já fizeram isso e nunca se chegou a uma conclusão definitiva, mas estou convencido de que essa corrosão que um dia termina com a morte é a razão pra estarmos aqui. Todo esse processo de perecimento. Veja esse bairro... É superpopuloso e superpovoado. Olhe quantas janelinhas... em cada um desses quadradinhos acontecem coisas muito mais bizarras do que sequer poderíamos conceber um dia. E muitas dessas coisas estão acontecendo agora. Eu não deveria ter dito que sou solitário de fato. Sou recluso até certo ponto. Nunca vou entender como alguém pode reclamar de solidão morando aqui. Conheço muitas pessoas que conseguem. É a maldita carência... - foi o que Kimba disse a Freitas, que imediatamente tentou imaginar como seria Karenina ouvindo esses monólogos épicos e típicos de Kimba.
O sujeito se punha a falar e então nada o podia deter. Freitas ainda ouviria muitos desses monólogos. Quando concordava com a retórica, dizia a Kimba que era importante mesmo ter princípios inabaláveis. Quando discordava, dizia que Kimba era recalcado.

O monólogo finalmente cessou quando estavam a poucos metros do prédio de Kimba. Quando entraram no apartamento, viram uma transformação inacreditável na cozinha, que minutos antes estava um caos completo, com todos os pratos, talheres e panelas sujos sobre a pia. Karenina havia colocado ordem ali e muito graciosamente picava tomates sobre uma táboa que Kimba nem se lembrava que tinha em casa.

_ Oi, vou fazer lasanha! - disse ela, de maneira doce.

Enquanto Freitas se oferecia para ajudá-la, Kimba pegou um pote de sorvete vazio e o encheu de gelo. Pegou dois copos e foi para a sala com a garrafa de vodka.
Depois de ter descascado uma cabeça de alho, picado uma cebola e lavado três pratos, Freitas voltou à sala, onde Kimba, novamente trajando apenas cueca, fumava maconha, bebia e assistia a um DVD.
Passou pela cabeça de Freitas que aquele era o casal mais estranho que já tinha visto, e que jamais entenderia o descaso com o qual Kimba tratava Karenina, e como ela suportava isso, por mais que o ouvisse discorrer sobre o tema por dias seguidos.

_ Freitas, venha ver isso! É o Van Morrison ao vivo em Budapeste! Ele nem precisava ser acompanhado por essa orquestra. Se fosse outro cara poderia soar ridículo e pretencioso, mas ele parece que tenta fazer com que o resultado final dê errado, mas nunca consegue... - disse Kimba, enquanto Freitas sentava no sofá.

Era um show recente, Van Morrison já estava velhinho, mas sua voz estava intacta, cristalina, e o repertório era incrível. Sua banda era acompanhada por uma orquestra, ingrediente que às vezes mais atrapalha doque ajuda. Mas não no caso do autor de Astral Weeks.

_ Eu adoro o Van Morrison. Já assisti a esse show na internet. Virou um disco ao vivo. Eu sempre tive um pé atrás com esses shows em que o cara é acompanhado por orquestra, mas o Van Morrison é sobrenatural. Ele colocou essa orquestra porque sabia o que fazer com ela. Outros caras grandes arruinaram discos que deveriam ter sido maravilhosos, porque não souberam usar esse tipo de recurso. Fica a impressão de que nos últimos anos ele tem se esforçado pra fazer um disco ruim e não consegue. - disse Freitas.

_ Pois é... Quando eu vivia com meus pais, tentei por algum tempo fazer com que eles assimilassem o que realmente era e é legal na música, no cinema, na literatura e na maneira de se comportar. Me arrependo amargamente de ter tentado algo tão inútil, superestimando a inteligência de pessoas que viveram uma época negra, num país imundo, isolado... mas como essa tentativa aconteceu na minha adolescência, olho em retrospecto e aceito esse fato em parte, e hoje o tomo como aprendizado. Não sei como posso ter sido tão ingênuo. Eles sempre viveram numa seara de podridão, em todas as esferas da vida. A parte cultural era constrangedora demais. Eram ridículos o bastante pra gostar de Geraldo Vandré e Maria Bethania. São artistas muito regulares, porque tudo que gravam é ruim. A minha casa foi o primeiro lugar em que vi alguém falar que gostava de rock quando era jovem. Claro que não sabiam o nome de nenhum disco dos Beatles. Nem de Elvis. Insistiam que isso era resultado do amadurecimento. Na verdade era alguma otra coisa. Algo pior que apodrecimento, porque algo que já nasce podre sempre consegue apodrecer mais. Depois comecei a ter contato com aqueles tiozinhos ridículos que pagavam de roqueiros, que quando eu esperava que falassem algo sobre Rare Earth ou Flying Burrito Brothers, ou algo que eu não conhecesse, citavam Credence e Janis Joplin, e mesmo assim não sabiam nada sobre eles. Foi quando me dei conta que era um problema geral, um país moribundo atolado numa metástase cultural. O resultado crônico disso é que as gerações seguintes pensam que o Evandro Mesquita inventou o rock nacional. Outras topeirinhas juvenis pensam que surgiu em Brasília. E o pior de tudo são os jovens que gostam de Maria Bethanea. - foi o que respondeu Kimba.

Alguns minutos se passaram e o cheiro do queijo da lasanha derretendo chegou à sala. A indiferença de Kimba beirava a desumanidade. Bebericava vodka, fumava e tinha os olhos fixos na TV. Freitas sabia que não teria sorte nem ao menos para conhecer uma garota como aquela em circunstâncias favoráveis para uma aproximação.
Menos ainda conseguiria fazer com que ela se apaixonasse por ele. E ainda menos conseguiria não se apaixonar por ela, e nem conseguiria conceber qualquer possibilidade de tratá-la com descaso.
Por fim, o fato de Karenina parecer-lhe inatingível confortava-lhe, visto que assim jamais correria o risco de manifestar uma postura tão rude e fria como a de Kimba, que também encantou-se num primeiro momento, para que em seguida se tornasse indiferente.
Freitas, intimamente e de um modo geral, gostava da vida que tinha. Suas insatisfações não eram suficientes para que se sentisse carente. Afinal, essas insatisfações eram em parte causadas por fatores externos e alheios à sua vontade.
O resto era o resultado de suas próprias escolhas, fossem elas acertadas ou não. Sua principal escolha era, na medida do possível, fazer apenas o que quisesse, na hora em que quisesse.
Era um sujeito solitário, sem dúvida, mas sabia que sucumbir à carência seria sua ruína. Aprendeu a lidar com isso enfrentando situações desagradáveis, cujo exemplo mais recorrente eram as noites que passava no Calçada da Fama e não conseguia se desvencilhar de seus companheiros de copo quando sentia vontade de ir embora, pois ali sempre havia alguém que morava longe e precisava de um lugar para dormir imediatamente e que não tinha qualquer pudor em pedir a Freitas que lhe desse abrigo por algumas horas antes que tivesse que voltar para algum bairro longínquo.
A ideia de negar a eles esse tipo de pedido não lhe agradava muito, mas agradaria-lhe menos ainda a ideia de atender a esses apelos interferindo na vida de seus pais, maculando o mais sagrado e consistente código de valores de sua família.
Não fosse por isso, até poderia oferecer sua solicitude de vez em quando. Afinal conseguia colocar-se no lugar daqueles infelizes que para chegarem às suas camas teriam um árduo caminho pela frente, enfrentando cansaço e embriaguez. Também havia o fato de que prezava muito por sua privacidade.
Não foram poucas as vezes em que ele deixou o bar quando percebeu que não estava sendo visto, para não ser enquadrado com andarilhos que não tinham onde dormir. Kimba tinha muito mais facilidade para lidar com isso. A resposta negativa era sempre direta e imediata, às vezes sem a necessidade de dizer uma só palavra.
Eles nunca entenderam a razão pela qual alguém se deslocava tanto para frequentar o Calçada. Para eles próprios já parecia melancólico o bastante, mesmo morando a poucos minutos dali.
Era um lugar ideal para olhar em volta e em seguida olhar para si mesmo e sentir-se bem com o que era. Um exercício antropológico. E ali sempre encontravam Napoleão, que vendia cocaína, a única de qualidade razoável na região.
Napoleão vendia para sustentar seu vício. Era metido a roqueiro, nunca tirava sua camiseta do Sepultura. Era um sujeito parecido com o Luís Caldas, especialmente por causa do cabelo.
Conheceram-no numa noite em que perceberam que o sujeito passava muito tempo no banheiro, onde entrava caindo de bêbado e saía revitalizado, pedindo mais vodka e coca-cola. Quando os passarinhos já estavam cantando, Napoleão chegou até eles e tirou um bilú do bolso, onde haviam pelo menos três gramas de pó.
Disse a eles que caso não aceitassem o bilú de presente, jogaria fora, pois se desse mais um tiro, entraria em overdose. Aquilo veio bem a calhar, pois os dois já estavam bêbados, cansados e com vontade de ir embora.
Nos dias que se sucederam, souberam que ele vendia, e como Napoleão simpatizou com a dupla, facilitava as negociações sempre que podia. Ele vivia na mesma pensão que Nunes, segundo o qual Napoleão comia Sônia, a proprietária.
Mas Freitas quase nunca conseguia ir embora sem que algum conhecido lhe pedisse alguma satisfação, que seria sucedida pelo pedido de abrigo até o amanhecer, pois muitos dos frequentadores sabiam que ele morava nas redondezas de modo que ele geralmente esperava os ônibus voltarem a circular para que saísse sozinho e sem ser visto.
Muitas vezes essa espera era desgastante, mas quando o cansaço se manifestava de maneira mais incisiva, ele parava de gastar dinheiro, e bebia apenas o que lhe oferecessem. Era nessas horas que sua embriagues ficava realmente aguda, e a única coisa em que conseguia pensar era nas ladeiras íngrenes que precisaria enfrentar no acesso à Alameda Campinas.
Curioso para Freitas era o fato de que antes que quisesse ou pudesse aproveitar o resto do tempo para escrever sobre isso, publicando um livro de forma independente, lá estava ele novamente. Se um dia o fizesse, então seu desejo de criar um trabalho artístico autoral estaria finalmente satisfeito e aquela fauna triste de esquecidos ganharia uma fagulha de vida para a posteridade sem que jamais sabessem.
Tanto Freitas como Kimba tinham verdadeiro repúdio à Rua Augusta. A Nove de Julho era mais suja, abandonada, fúnebre e não havia nem sombra da juvestude estúpida e descontrolada da Augusta. onde grupos abomináveis de adolescentes andam com camisetas de bandas ruins e bebem vinhos de garrafa de plástico e playboys fumam cigarros de cravo e vestem camisas polo.
Tinham gosto por todo tipo de decadência. Gostavam de vê-la de perto para depois voltarem para casa e pensarem naquelas pessoas, em como seriam suas noites. Assim aproveitavam melhor o descanso ao voltarem da rua.
Na Nove de Julho não faltavam drogas, e as mulheres pareciam mais acessíveis pela falta de hype do local e às vezes mais perigosas. A conjuntura humana era mais popular e quando algum tipo de hostilidade se manifestava, era porque alguma boa razão existia.
O fato de Kimba e Freitas a princípio destoarem desse ambiente era um ingrediente do qual conseguiam tirar algum proveito. Eram vistos como sujeitos estudados e cultos. De um modo geral, eram bem tratados ali. Não se envolviam em problemas, gastavam pouco dinheiro e voltavam para casa plenamente saciados.
Talvez o melhor de tudo fosse o fato de morarem próximos dali. Voltar da Augusta era mais sofrido por causa da distância a ser percorrida a pé e com a embriaguês no limite do possível. E tudo ali era mais caro.
Na Augusta a violência era burra e gratuita, porque a qualidade humana era muito baixa, e a predominância de jovens zumbificados e escravizados era assustadora. Era uma região mais visada peça juventude.
Inexplicavelmente se buscava ali um tipo de glamour que não existia e uma quantidade enorme de pessoas se deslocavam de áreas distantes para lá, prova definitiva de que a cidade é carente de opções de diversão e entretenimento, se é que se pode dizer que há algo na Augusta que remotamente se assemelhe a entretenimento, pelo menos para as pessoas menos abonadas. As mais abonadas tem ou deveriam ter opções muito melhores.
Almas penadas e solitárias (ainda que em meio a uma multidão de criaturas semelhantes) perambulando a esmo sem nem ao menos saber o que buscavam ali.
Era impressionante como algumas pessoas argumentavam que o que as atraía na Augusta era a diversidade humana, quando na verdade aquela massa se tornou tristemente homogênea. Um aterro sanitário com as proporções de Júpiter. É como se aquela rua fosse um grande imã que atraía seres inertes e sem alma para povoar sua órbita. Aquelas pessoas não ligavam para isso.
O que quer que acontecesse, estariam lá no fim de semana seguinte. O que significava se dar bem ali? Seja lá o que fosse, tratava-se de um conceito difícil para Kimba e Freitas.
Já na Bela Vista era possível ouvir histórias épicas de retirantes saturados pela fome e que cheios de bravura vinham a São Paulo e à sua maneira se adaptavam, driblando a saudade de seus lugares de origem e enfrentando a crueldade e a rudeza da cidade grande e ainda assim se adaptando e se incorporando a ela.
O cheiro de churrasco barato preparado na calçada e as crianças que tarde da noite ainda corriam por ali enquanto seus pais, geralmente pobres de direita, bebiam Cynar e rabo de galo enquanto assistiam a televisão instalada sobre uma prateleira de bebidas atrás do balcão, ajudavam a tornar aquela atmosfera ainda mais estranha, porque as pessoas ali exaltavam a importância da família, e no entanto as constituíam de uma maneira completamente louca, sem qualquer tipo de planejamento.
Aos olhos de Kimba e Freitas, aquelas pessoas restringiam o conceito de família a um teto sob o qual se armazena alguma comida porque alguém se casou, teve filhos e passou a consomir tanto quanto possível.




Capítulo 3- The Damage Done


Em 2019 eles já eram velhos o bastante para saber que o gênero Rock não rejuvenesse ninguém, e que quando chegasse o momento, eles morreriam igual a qualquer sertanejo ou pagodeiro, e talvez muito mais perdidos e confusos.
Eram também jovens demais para dizerem que haviam visto muita coisa ao longo da vida.
Freitas nunca tinha contado a Kimba sobre seu pavor de mulheres grávidas. Esse era o modo pelo qual sua mente manifestava distúrbio.
Teve a oportunidade muitas vezes, especialmente quando o assunto de suas conversas envolvia a família, e em especial a família brasileira tradicional. Mas até então nenhuma situação relacionada ao tema tinha o incomodado a ponto de mencionar esse sentimento.
Numa terça-feira à tarde os dois estavam a caminho da casa de Kimba e desciam pelo começo da Alameda Campinas, quase dobrando a esquina com a Doutor Seng, quando uma mulher com cerca de trinta anos, grávida de sete ou oito meses dobrou a esquina no sentido contrário e distraída que estava se assustou ao vê-los descendo com o impulso da ladeira e conversando sobre conspirações aos berros.
Freitas também se assustou, mas quando viu aquela mulher grávida a menos de dois metros dele, assustada e com as mãos na barriga, parou diante dela e empalideceu subitamente. O sangue sumiu de seu rosto.
Em seguida, desmaiou. Uma pancada bruta e seca de sua cabeça contra o chão fez com que Kimba e a mulher, perplexos, pensassem que estava morto. Se não por algum mal causado pelo susto, estaria morto pela pancada. E lá estava ele no chão, entregue, e pedaços de seus óculos espalhados ao redor.
Era um óculos caro, daqueles cujas lentes escurecem conforme a luminosidade do ambiente aumenta. E era resistente. Quebrou porque todo o peso da cabeça de Freitas e o impulso da queda foram implacáveis. Sua cabeça era grande.
Depois de alguns segundos de histeria e descontrole, Kimba conseguiu fazer com que a mulher fosse embora dali, alegando que conseguiria sozinho dar um jeito na situação.
Quando o porteiro de um prédio próximo chegou para tentar ajudar, Freitas retomou alguns sinais vitais, para em seguida acordar em definitivo, com um corte na sombrancelha direita e sem enxergar nada. Tinha plena consciência do que havia acontecido.
O ferimento sangrava como uma cachoeira e num primeiro momento tentou formular uma frase para explicar a razão da crise, e ficou bastante aflito e perturbado enquanto não encontrava palavras. Não enxergava quase nada sem os óculos e logo percebeu que sangrava. Kimba, que àquela altura estava aliviado por ver o amigo vivo, tentou acalmá-lo. Contou-lhe o que aconteceu e tentou convencê-lo a ir ao posto de saúde.

_ Tem um posto de saúde ao lado do prédio da Karenina, ali na Marques Leão. Vamos... - disse Kimba.

_ Tá doido? Tenho pavor desses lugares. Vai ter uma fila de espera com várias mulheres grávidas e com crianças de colo. Aquelas mulheres gordas, cheias de doenças, aqueles velhos homens que lutam por mais alguns dias de vida enquanto perdem o tempo de vida restante na fila... Se eu me deparar com essa cena agora, morro imediatamente. Vou pra minha casa, lá eu tenho um óculos reserva. Não sei porque eu nunca tinha te contado que não posso com mulheres grávidas muito perto de mim. Achei que você sabia disso intuitivamente! - disse Freitas.

_ Certo... Eu provavelmente morrerei sem entrar num posto de saúde pra ser atendido, mas agora sou responsável por te levar até lá... Largue de ser teimoso. - disse Kimba.

_ Esqueça, não vou em hipótese alguma. Apenas tive um colapso nervoso, porque aquela grávida assustada me deixou em pânico. Agora você já sabe, e não me importo com o que as pessoas podem pensar sobre o fato de eu ser clinicamente louco, especialmente você, que caso fosse examinado por um médico alopata seria diagnosticado louco também. E não sinta-se responsável por eu não querer ir ao posto de saúde. Detesto dizer isso, mas tenho plano de saúde e nem assim vou ao médico. Eles me enchem de agonia e medo de fazer com que descubra que tenho alguma doença que nem sabia que existia. Me passam muito mais angústia do que confiança. Vão mandar eu parar de beber e vão me fazer tomar remédios. Eu gosto de enfermeiras, dessas bem boazinhas, que nos tratam do jeito que a gente merece. Elas carregam aquela tristeza por estarem hierarquicamente abaixo dos médicos e isso desperta nelas uma humanidade que os médicos e médicas não tem. Aqui onde moramos tem muitos hospitais e há muitas enfermeiras. Tem uma no meu prédio que eu gosto bastante, mas geralmente a encontro de madrugada, quando ela está voltando do plantão e eu estou voltando bêbado do Calçada. Se ela me visse assim agora, iria querer ajudar. - disse Freitas.

_ Eu também não gosto de mulheres grávidas. Eu sempre soube que não gostava, mas em meus pensamentos eu nunca tinha me aprofundado no assunto. O que mais me atormenta é a gravidez compulsória. Essas mulheres se sentem na obrigação de se reproduzirem, e isso começa na infância, até que essa ideia se cristaliza na cabeça delas tornando-se uma obsessão. Essas merecem ter filhos como nós. Gostaria que a cena que vi hoje tivesse sido engraçada... Se acontecesse num filme talvez eu tivesse dado risada... mas estou realmente preocupado. Você vai ter que ficar sem dormir por algumas horas. A pancada da sua cabeça contra o chão me deixou chocado demais. Quanto ao fato de ser louco, devemos lembrar que no Beasil tudo é tratado como doença mental, menos as doenças mentais. - disse Kimba.

_ Vamos até minha casa pra eu pegar meus óculos, e depois seguimos nossas atividades normais, esquecendo esse episódio. Um dia, talvez amanhã, possamos rir disso, mas hoje o importante é fazer com que o resto do dia valha a pena. - disse Freitas.


A esquina onde Freitas teve o colapso era um ponto equidistante entre seu apartamento e o de Kimba. Como não havia meios de convencer Freitas a ir a um posto de saúde ou a um hospital particular, Kimba concordou em acompanhá-lo até seu apartamento.
Seria a primeira vez que entrava lá. Entraram e não havia ninguém em casa. Dona Rosa estava provavelmente no mercado.
Era muito claro que Freitas não se sentia à vontade com o fato de morar com os pais. Cruzaram a sala rapidamente e entraram no quarto de Freitas, onde ele olhou-se por alguns segundos no espelho da parte interna da porta de seu armário, atentando para o ferimento na sombrancelha direita.
Em seguida tirou a camiseta empapada de sangue e a jogou de baixo da cama, para que depois a jogasse no lixo. Então encontrou seus óculos de reserva, que era parecido com o outro, com lentes especiais.
Só o encontrou depois de bater o joelho na quina da cama e derrubar uma lata cheia de canetas que estava em sua escrivaninha.
Freitas praguejava horrores enquanto Kimba olhava seus discos e livros com atenção e curiosidade. Freitas então perguntou a ele se queria água, cerveja ou algo para comer. Pegou uma lata de cerveja para cada um e sugeriu que ganhassem as ruas novamente.
Assim que pisaram na calçada, Kimba não resistiu à vontade de comentar sobre o quanto aquele prédio lhe parecia burguês. Freitas sabia que de fato o prédio era burguês e sabia acima de tudo que Kimba pensaria isso quando fosse até lá.
Não ligava a mínima para isso. Disse apenas o seguinte: “É um pombal de cimento como os outros ao redor. Como você mesmo diz, dentro de cada um desses apartamentos acontecem as coisas mais bizarras. São famílias brasileiras de classe média. Quantas coisas piores do que isso você é capaz de enumerar?”
Naquele momento, Freitas pensava mesmo era no fato de ter manifestado de maneira mais acentuada a sua loucura, ou excentricidade, ou o que quer que seja. O que lhe incomodava era o fato de Kimba não ter feito isso antes na sua frente e em grande estilo.
Mas Kimba não se surpreendeu tanto, porque pensava a mesma coisa, e de certa forma se sentiu aliviado por Freitas ter aberto esse precedente.
Freitas acabou por se tornar o protagonista da cena mais estranha realizada por um dos dois na frente um do outro desde o dia em que se conheceram até aquele momento.
Entraram no apartamento de Kimba e lá estava Karenina no sofá tomando chá branco e assistindo a um dvd dos Kinks. Estava descalça com os pés sobre a mesa. Freitas nunca tinha visto pés mais bonitos em sua vida. Ele olhava para os pés dela e ela olhava o talho acima de seu olho esquerdo.
Ela levantou-se enquanto perguntava o que tinha acontecido com Freitas, e Kimba prontamente resumiu a história, o que deixou Freitas envergonhado e constrangido. Karenina foi ao banheiro e voltou com esparadrapos, um saco de algodão e mertiolate. Foi ela quem havia deixado aquele material ali para alguma eventualidade como aquela. Sabia que Kimba jamais se preocuparia com isso.
Enquanto isso Kimba vibrava intensamente com a escolha musical dela e aos berros disse que "Kinks é uma das coisas mais inglesas já produzida na Inglaterra!!!", e então deu um beijo caloroso na garota enquanto ela passava por ele rumo ao banheiro. Era a primeira vez que Freitas a viu sorrir daquela forma. Então ela anunciou: "Trouxe uma vodka pra vocês!".
De imediato Kimba virou-se em direção à cozinha e viu sobre a pia uma garrafa de Ciroc, que ele nunca havia tomado. Só viu esse produto em prateleiras de mercado a preços estratosféricos. Ao lado, numa sacola do Pão de Açúcar havia uma lata de castanhas de cajú e um saco de pistaches.
Enquanto Kerenina limpava o ferimento de Freitas com muito cuidado e fazia o curativo, Kimba voltou da cozinha com a vodka, gelo, dois copos, o pistache e as castanhas de cajú.
Karenina perguntou a Freitas porque ele semprre usava óculos escuros e ele respondeu que era para sentir-se invisível. Naturalmente a garota não entendeu a resposta e o diálogo encerrou-se ali.
Kimba tirou a roupa e ficou só de cueca antes de se soltar desleixadamente no sofá. Serviu-se da vodka num copo de requeijão quase cheio e colocou duas pedras de gelo.
Como se nada mais existisse no mundo, dividiu sua atenção entre o drink e o vídeo dos Kinks, comentando que eles eram muito feios, mas eram melhores que Beatles e Rolling Stones, apesar de gostar de todas as bandas inglesas dessa época, com um carinho especial por aquelas que, subestimadas, terminaram no anonimato.
Freitas, maravilhado com a delicadeza das mãos de Karenina, sentou-se na ponta oposta do sofá em que Kimba estava, para que Karenina sentasse no meio. Kimba olhou para Freitas e deu uma gargalhada escandalosa ao ver o curativo em sua sombrancelha, apontando para ele enquanto ria. À essa altura já havia muitas casquinhas de pistache espalhadas na mesa à frente do sofá. "Vocês definitivamente são o meu tipo de gente!", ele gritou em meio a gargalhadas e goles grandes de vodka.
A qualidade da bebida e o fato de que a garrafa continha apenas 750 ML, fez com que rapidamente estivesse enxuta. Prontamente Kimba levantou e anunciou que iria ao mercado comprar mais uma. Freitas se levantou também para acompanhá-lo.
Kimba se vestiu rapidamente e enquanto desciam o único lance de escada até o térreo, anunciou a Freitas que queria cheirar pó para animar a ida ao mercado e para chegarem mais preparados para a etapa complementar da bebedeira.
Na esquina da Rua Doutor Seng com a Alameda Ribeirão Preto mandaram dois tiros cada um e seguiram. No caminho não havia meios de fazer Kimba parar de falar. Parecia uma máquina.
Dessa vez a marca da vodka era Orlof, algo com o qual estavam mais familiarizados. Para alívio de ambos, a fila estava curta e logo estavam voltando ao apartamento. Antes de entrarem, deram mais um tiro cada um. Karenina sabia que eventualmente eles cheiravam, mas Kimba não cheirava na frente dela. .
Kimba entrou e foi para a geladeira pegar gelo, enquanto Freitas abriu a garrafa e deu um gole direto do gargalo. Os dois sabiam que Karenina faria algum comentário sobre o quanto é importante moderar o consumo de bebida.

_ O que me impressiona é que vocês não aparerntam estar bêbados... - ela disse.
_ Além de termos anos de prática, trata-se acima de tudo de uma questão cultural. A chamada civilização começou com a fundação da primeira destilaria.- disse Kimba, antes de tomar sua primeira dose grande quase num gole só.

Ela olhou para Kimba com um olhar em que misturava uma certa tristeza com preocupação. Freitas observou a cena, que se fosse filmada entraria num filme do qual ele seria o diretor. Não exatamente o contexto, mas aquele olhar. Kimba parecia indiferente, ou cego. Ou para ele nada daquilo realmente importava. Aquele sujeito parecia ter um coração de pedra, tão rude quanto a expressão de seu rosto.
Freitas perguntou-se como seria se estivesse no lugar dele, mas antes que seu cérebro formulasse uma resposta, serviu uma grande dose de vodka e acendeu um cigarro.
Entre ele e Karenina havia o respeito mútuo de quem tem um elo em comum, no caso, Kimba. E havia um certo distanciamento causado pela timidez de ambos. Se apenas um dos dois fosse mais extrovertido, poderiam conversar mais sobre tudo o que viviam.
Mas o faqto é que Kimba tinha bom gosto musical, e colocou um DVD dos Beach Boys. Os três naquela sala adoravam Beach Boys. Era um documentário emocionante, mas bastante triste, na medida em que relatava de maneira fiel como uma banda de extraordinário sucesso nos anos sessenta enfrentou na década seguinte o que muitos chamam de decadência. Mas nos anos setenta eles gravaram discos primorosos, ainda que as vendas já não fossem as mesmas dos anos de glória, e muitos problemas pessoais, sobretudo relacionados às drogas.

_ Uma coisa que me irrita é o fato de muita gente que usa drogas as associarem a um alcance maior em termos de potencial artístico e criativo. Se um entregador de pizza usar drogas, na melhor das hipóteses, continuará entregando pizzas. O Brian Wilson talvez tenha usado desse artifício, mas o talento ele já tinha antes das drogas, e isso está documentado pra sempre nos primeiros discos. Eu amo Pet Sounds, mas não o colocaria em primeiro lugar na lista dos meus preferidos dos Beach Boys. A importância desse disco foi afastar dos Beach Boys o preconceito sobre serem jovens americanóides cantando temas ingênuos e juvenis, O ‘Sunflower’ e o ‘Holland’ encabeçam minha lista dos preferidos, e vieram depois, no começo dos anos setenta. Esses sim foram feitos sob efeito de muita droga. A vida pessoal dele estava destroçada nessa época. Hoje é o único dos irmãos Wilson que está vivo. Dennis Wilson era muito louco, o único surfista da banda era um homeless , naquele tempo vivia em seu barco e morreu num afogamento estúpido e mal explicado até hoje. Teve mansões, um monte de mulheres e tudo mais. O que se sabe é que frequentemente mergulhava bêbado, era um alcoólatra terminal... Ele e o Keith Moon queriam viver rápido. Eles não suportariam ficar como o Nunes, decrépito e todo fodido. Não eram do tipo que envelhecem e ficam jogando golfe com um pulover sobre os ombros. Daqui a pouco, quando o documentário mostrar o começo dos anos oitenta é que vamos ver o que de fato é decadência. Hoje em dia os que sobraram tocam no circuito dos oldies, tocando em cassinos, mas eu os veria ao vivo assim mesmo. O Mike Love, que sempre foi um picareta de marca maior e só pensa em dinheiro é o mais animado no palco. Faz parte da química. Eu adoro decadência. Lá fora artistas veteranos tocam até em quermesse, e quando vem pra cá, geram um alvoroço enorme, com ingressos caros sendo vendidos com meses de antecedência. Vi um show solo do Brian no Tim Festival e foi espetacular, apesar dele estar detonado. Fui como torcedor e não como fã. Mas as músicas maravilhosas continuam lá... - disse Kimba.

_ Mas você usa droga. Você cheira, fuma maconha e bebe e sei lá mais o que... - disse Karenina.

_ Uso pouco, e uso porque gosto. Não tem nada a ver com deslumbramento. Sei que isso não vai fazer de mim uma pessoa mais inteligente. Não ficarei mais criativo. Bebidas e drogas apenas servem para fazer as pessoas enfrentarem anestesiadas essa vida horrível que levamos. Uma solução paliativa pra fazer com que nos sintamos um pouco melhor. Não faço apologias e nem julgamentos. Não me importo com o que as pessoas fazem com suas vidas. A minha sociabilidade é baixíssima, e se ficasse careta o tempo inteiro ela seria nula.

_ Eu tomei umas taças de vinho outro dia e me vi procurando meu celular debaixo da cama, e estava com o celular na mão usando a lanterna dele. - disse Karenina.

_ Você conseguiria viver sem celular? Eu sei que não. Eu detesto telefone. Não serve pra nada. Já tive uns quatro celulares, e eu sempre os perdi, sem jamais me preocupar com isso. Recebia quase sempre ligações inconvenientes, cobranças e coisas do tipo. E era sempre quando eu estava durmindo, comendo, lendo ou cagando. E quando eu precisava falar com alguém, ligava e não era atendido. Vivo muito melhor sem isso. - disse Kimba.

_ Você é um homem das cavernas. Fico impressionada com o seu descaso pela comunicação e com o seu grau de reclusão. - disse Karenina.

_ Não há descaso pela comunicação. Eu sou da velha escola. Se eu estou lendo um livro, está havendo comunicação. Há um emissor e um receptor, e no caso ambos são inteligentes. Se você olhar pela janela e vir alguém falando ao celular também haverá um emissor e um receptor, com grandes possibilidades de se tratar de dois jumentos trocando informações inúteis em português errado. Sou de um tempo não tão distante em que se marcava na terça-feira um compromisso para a sexta e esses compromissos eram cumpridos. Ligávamos de orelhões da Telesp, com aquelas fichas que na época praticamente valiam dinheiro. Os contatos humanos podiam ser chamados de humanos. Hoje as pessoas marcam e desmarcam compromissos na última hora. Sei que você vai argumentar que isso é uma vantagem, mas eu detesto essa prática. Fico aterrorizado com essa gente horrorosa que não sabe e não tem o que falar, e que passa horas entretida com essas porras de celulares, até mesmo em mesas de bar. É a comunicação a serviço do nada, ou ainda pior, porque as pessoas deixam de conversar com quem está ao redor para trocar mensagens com alguém que não está ali. Além, é claro, do fato de que isso faz com que nas frases trocadas não exista pontuação, nem qualquer regra gramatical. É muito mais um desserviço do que um benefício. Seria útil se as pessoas que usam isso tivessem um milímetro cúbico de cérebro. No Calçada da Fama, qualquer um daqueles infelizes tem celular. Isso nunca melhorou a vida deles, e no entanto fazem questão de serem escravos dessa merda voluntariamente, além de serem escravos em todos os outros setores da vida..- disse Kimba.

_ Quero ir ao Calçada da Fama com vocês um dia... - disse Karenina.

_ Pra quê?- perguntou Kimba.

_ É isso que quero descobrir. Vocês são frequentadores assíduos. - disse Karenina.

_ Somos do povo e temos antes de mais nada motivações antropológicas pra frequantarmos aquele lugar. Somos da Bela Vista e dedicamos um pouco do nosso tempo pra entender o povo daqui. - disse Kimba.

_ Eu também sou da Bela Vista e tenho interesse nessas questões antropológicas. - disse Karenina.

_ Você não precisa estar lá pra entender o que é aquilo. Você tem medo de barata. Lá você não vai se sentir à vontade. - disse Kimba.

_ Como você é machista... Me subestima de um jeito que nem consigo acreditar. - disse Karenina.

_ Não estou te subestimando. Está havendo um diálogo, com argumentos e contra-argumentos.

_ Mas você é inflexível nos seus argumentos... - disse Karenina.

_ Sim. Se fosse de outra forma, eu ficaria calado. Falo quando tenho convicção. Quando um tema não me interessa eu simplesmente fico quieto.A neutralidade anunciada é uma merda. Ela suatenta a manutenção do Status Quo. - disse Kimba.

_ Status Quo é uma banda... - disse Freitas.

_ Uma ótima banda, que escolheu um ótimo nome. Mas o Brasil não é um país. É apenas um lugar cheio de gente ruim, aquela gente que a gente vê no bar e na rua. Os jovens daqui ouvem Maria Betânea e nunca ouviram falar de Status Quo. A gente detesta a Maria Betânea, mas sabe que ela existe. - disse Kimba.

E eis que de repente a campainha tocou sem que o interfone anunciasse a chegada de alguém. A fumaça da maconha tomava conta da sala por completo. Kimba levantou-se num pulo e desesperado, à beira da histeria, deu mais dois pegas no baseado antes de apagá-lo e ir ver p que estava acontecendo. Praguejou amargurado para Freitas e Karenina dizendo que deveria ser a polícia, mesmo que não houvesse qualquer razão para isso. Eles não estavam fazendo mais barulho do que o normal. Então foi até a porta, olhou pelo olho mágico e depois de um suspiro quase aliviado, virou-se para os dois e finalmente abriu a porta.
Era Dona Iara, uma vizinha do andar de cima, que era amiga da tia de Kimba e parecidíssima com a Aracy de Almeida. Depois da morte da tia ele quase nunca a via, porque sempre que saía de casa, Kimba verificava se havia algum movimento no corredor ou nas escadas, para evitar encontros com vizinhos.
A mulher trazia duas tortas com ótima aparência. Lembrava-se da torta da vizinha, que de vez em quando vinha visitar sua tia e as trazia. Eram deliciosas.
Kimba pegou as tortas e foi em direção à mesa no meio da sala, e prontamente Karenina e Freitas puseram-se a colocar alguma ordem ali, tirando uma garrafa de vodka, copos e dois cinzeiros transbordando de bitucas. Breve e secamente, Kimba fez as apresentações e foi à cozinha, de onde voltou com pratos e talheres e um vidro de pimenta Tabasco.
_ Uma é de frango e a outra é de palmito...- disse Dona Iara, que estava sentada numa poltrona ao lado da televisão, do lado oposto ao sofá em que os três estavam acomodados.

Enquanto isso, Kimba, ignorando os pratos, cortou um pedaço bastante farto, colocou pimenta e devorou aquele reboco como se fosse um refugiado faminto de algum país em guerra.
Aquela era a torta de frango. Tomou um grande gole de vodka e antes que Freitas e Karenina fizessem qualquer movimento, Kimba cortou um pedaço igualmente grande grande da torta de palmito e repetiu a cena.

Kimba então disse aos três que as tortas estavam muito boas e serviu-se de mais uma dose de vodka e acendeu um cigarro. Estava com a perna direita dobrada, com o pé sobre o sofá, e sua cueca frouxa deixava seus bagos à mostra, bem na frente da poltrona em que Dona Iara estava sentada.
Ela contava como era muito amiga da tia de Kimba, que tinha saudades, explicou que morava ali havia muitos anos e que tinha muita prática em fazer pães e doces porque o marido quando vivo tinha uma padaria.
Enquanto isso, Karenina e Freitas comiam timidamente pedações de torta enquanto Kimba fumava e bebia. Os três não diziam uma palavra. Era como se Dona Iara fosse uma reporter tentando fazer uma entrevista com o Cocteau Twins.
Cerca de uma hora se passou e finalmente Dona Iara levantou-se e foi embora, alegando que ia receber o neto em casa. Saiu com o reconhecimento pela qualidade das tortas, que haviam desaparecido por completo.

_ Eu adoraria que você tivesse sido filmado quando a campainha tocou. Nunca vi tamanho desespero. A mulher se preocupa com você. Trouxe as tortas...- disse Karenina.

_ Detesto surpresas. Com ela aqui a gente nem podia conversar. Só ela falava.- disse Kimba.

_ Você não gosta de conversar. Deveria ter um pouco de compaixão com uma senhora solitária que se preocupou com você.- disse karenina.

_ É preciso amar o amanhã como se não houvessem pessoas. Tem certas coisas que alguns brasileiros nunca vão aprender. Muitas dessas pessoas não sabem lidar com a solidão, que é uma condição tratada como desgraçada, como um destino infeliz. Eu adoro a solidão. Nós três somos pessoas reservadas e nem por isso nos sentimos sós. É uma questão de selecionar as companhias, algo difícil e doloroso num lugar como esse, onde as pessoas são invasivas e inconvenientes. Essa gente vive se afundando cada vez mais em um redemoinho de problemas e por culpa deles mesmos nunca tez momentos de tranquilidade, para aprender como isso é bom. Eu ficaria sem as tortas em troca de não ter precisado passar por aqueles instantes de agonia. Acho que agora essa mulher não vem mais. Ninguém seria capaz de me convencer de que ela não veio até aqui porque estava curiosa sobre o que se passa aqui dentro. Algo me diz que a curiosidade dela foi saciada. O tempo vai provar isso. Ela pode vir apenas para trazer as tortas, sem a necessidade de conversar com a gente. Mas isso nunca vai acontecer. Esse bairro é muito populoso, cheio de brasileiros típicos, que gostam de fofoca, trapaças, novela e cerveja barata. Eu não sei o que pode fazer com que alguém dessa vizinhança tenha curiosidade pela minha vida. Mas eu gostaria de saber o que essa senhora vai falar sobre a gente para os vizinhos.- disse Kimba.

_ Isso também faz de você um fofoqueiro... - disse Karenina.

_ Não faz, porque somos protagonistas não ativos da narrativa que ela vai espalhar no meio dessa gentalha.- disse Kimba.


Karenina também não era boa da cabeça, mas manifestava sua loucura apenas para si mesma, de maneira quase secreta, observando por trás de uma aparente passividade até que ponto Kimba poderia chegar e, num contexto mais amplo, onde o mundo iria parar.
Naturalmente, nem poderia imginar que logo a humanidade estaria usando máscaras e sua própria loucura seria diluída num oceano de desespero global e, ao contrário de Kimba, ela passaria o resto da vida sem ouvir de outras pessoas qualquer menção sobre seus distúrbios mentais.
Kimba, Karenina e Freitas sobreviveram sem maiores danos ao período agudo da pandemia, que para eles teve seu marco zero quando em janeiro de 2020, quando pouco se sabia sobre o vírus, Dona Rosa, mãe de Freitas, passou seis semanas sem qualquer contato físico com ninguém, e se recusava a sair de seu quarto se qualquer pessoa, incluindo o filho e o marido, estivessem no trajeto até a cozinha, para onde ia apenas buscar comida, posteriormente higienizada por ela na pia de sua suíte.
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Atualizado em: Sex 19 Nov 2021

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