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O CIPÓ DE GOIABEIRA
Caminhoneiro, meu pai passava seis meses viajando e três dias em casa. Quando chegava, a família silenciava de medo. Mesmo em sua ausência o cipó descascado de goiabeira nos ameaçava da parede. Soraia foi mais surrada do que eu. Um dia, quando subiu na carroceria do caminhão, levou um grito:
- Desce daí, senão tu cai.
- Se cair o chão apara.
Meu pai franziu as sobrancelhas, abriu o portão do terraço e apontou o dedo para que descesse.
Naquele tempo era falta de respeito responder ao pai. Arrastou Soraia pela gola da camiseta até o quarto e fechou a porta. Não se ouviam palavras dele. Apenas lapadas de cipó. Apenas súplicas de criança castigada.
Satisfeito com a surra, comentou, pendurando o cipó no prego da cozinha:
- Está na bíblia.
Minha mãe calada, submissa, olhava o chão.
Passei mercúrio cromo nos cortes da pele de Soraia e beijei seu cabelo. Hoje é proibido o uso desse medicamento, mas ela se sentiu cuidada e adormeceu.
No dia seguinte foi a minha vez. Acordei com raiva. Pedi a benção a mamãe e me sentei à mesa sem olhar para ele.
- Cadê a bênção?
- Quero não.
- É assim? Então vai apanhar.
- Mulé, põe um ovo vermelho para cozinhar.
Quando percebeu que olhei para o cipó de goiabeira na parede, esclareceu:
- Se avexe não, menino. Vou te castigar sem cipó. Vem cá e espera.
Fique mais perto dele, em pé, enquanto a chaleira fumegava.
Mamãe escorreu a água, descascou o ovo com um pano e entregou a papai. Ele apertou meu queixo com força.
- Abre a boca muleque, se não vai ser pior - dizia empurrando o ovo com a outra mão.
Abri a boca e mastiguei. A gema escaldou a língua, o céu da boca e desceu pela garganta.
Senti mal estar e vomitei tudo sobre ele. Meu pai me olhou incrédulo feito um cachorro molhado. Eu mesmo não sei de onde veio tanto vômito.
Mamãe, que sempre desviava o olhar acovardado das surras e castigos que ele dava, riu descontrolada.
- Pare, eu não estou brincando. A culpa é sua se eles não me respeitam, gritou levantando-se da cadeira. O vômito escorria da cabeça, descia pelo pescoço, grudava nos cabelos do peito.
Ela gargalhava. Ele sacudia os ombros dela, mandava parar, ela não parava, ria alto fechando os olhos. Possesso, derrubou-a com um soco no rosto. Corri para ajuda-la. No canto da boca ensanguentada havia um resto de riso. Levantou-se apoiada no meu corpo e se encostou na parede. Meu pegou o cipó de goiabeira e caminhou para ela, acuada. Minha irmã, cinco anos mais velha do que eu, talvez soubesse o que fazer, se estivesse ali.
- Vou lhe dá uma surra, vou tirar seu couro, vou mata-la de pau, gritou ensandecido.
Fiquei na frente de mamãe, braços abertos, feito barreira. Havia completado sete anos, mas tive medo.
Soraia, vermelha de mercúrio cromo, sonolenta, cabelos assanhados, febril, apareceu na porta da cozinha, com uma espingarda. Quando ele levantou o braço para açoitar mamãe, ouvi a voz chorosa:
- Não bata em mamãe, bata em mim, que não presto.
Apontou a arma e disparou.
O coice da espingarda jogou Soraia no chão. Gente que passava na calçada parou na frente da casa. A vizinha cega palmilhou angustiada a grade do portão fechado. Alguns vizinhos entraram pelo quintal. A Porta da cozinha aberta. O cheiro de chumbo e pólvora no nariz.
Meu pai, com o cipó estilhaçado na mão, saído de um transe psicótico, se perguntava, balbuciando:
- Meu Deus, o que aconteceu? O que fiz? Me perdoe, Marlene. Me perdoe, Soraia. Perdão, meu filho. Não tenham medo de mim. Por favor. Eu amo vocês.
Abriu os braços e sorriu.