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O POVO PAGÃO
Memórias de um futuro provável.
O ano é 2050.
Dona Sophia, uma sexagenária recém-aposentada, enquanto lia a um livro, assistia sua netinha Loren, de 9 anos, brincar sozinha na sala de estar, quando do nada a menina veio perguntar:
— Vovó, o que é um pagão?
A idosa surpreendeu-se com a pergunta.
Considerou-a irrelevante a idade da criança, mas decidiu responder à moda antiga, dos seus tempos de escola.
De forma metódica, como se fosse uma professora do ensino médio, ela disse sem precisar abrir livro algum:
— Dizia-se pagão, qualquer pessoa que não fizesse parte de uma determinada crença religiosa. Em linhas gerais, todos podiam ser pagãos sob a ótica da fé alheia. Quando um povo mais forte subjugava outro por meio das armas, os vencidos eram quase que obrigados a absorver a fé dos seus algozes, caso contrário, eram também considerados integrantes do paganismo e perseguidos por isso.
A netinha, com cara de dúvida, disse:
— Sério? Mas não foi isso que vi em uma revista de sua gaveta.
E correndo até o armário, trouxe consigo um exemplar de um periódico em bom estado de conservação.
A impressão era do ano de 2030 e chamava-se:
SÁTIRA DE UM SÁTIRO
A matéria de capa estava escrita em letras garrafais:
“O Novo Paganismo”
Como subtítulo, havia a seguinte pergunta:
Você também é um pagão?
Em um plano de fundo, envolvendo toda a capa, havia uma arte bem enigmática, que ao invés de exibir imagens relativas ao assunto que a idosa dissera sobre paganismo, tinha a imagem de um sujeito em uma nave de um templo religioso. Era a representação de um pastor evangélico de duas décadas anteriores.
Engravatado e bem-vestido, ele agitava uma bíblia em uma das mãos e na outra, algo que parecia um ser menu, com uma lista de “ofertas e serviços” que a igreja dispunha.
Bem posicionado e ao centro, o sujeito (balofa) que dominava o cenário parecia atrair para si a multidão ensandecida, como se realmente houvesse algo vital a oferecê-las.
Uma fila enorme de pessoas se formava com dinheiro nas mãos (também agitando), como se quisessem pagar por algo, mas não havia nada ali, além do cenário daquilo que parecia ser uma igreja (neo) pentecostal de tempos remotos.
A vovozinha riu e pôs as mãos na boca, dizendo:
— Ah, sim. Nesse caso, pagão seria relativo à pessoa que estava pagando. Um pagante, de fato. Uma Sátira que acabou dando um novo sentido ao termo, após a edição desse exemplar que estamos segurando.
A menina franziu o cenho e, com ar de incredulidade, perguntou:
— Certeza? Mas não estou vendo nada aqui que possa ser pago ou comprado! O que toda essa gente deseja pagar? Não há nada à venda! E por que só o homem ao centro é quem recebe o dinheiro, já que não traz nada consigo dar ao povo pelo pagamento?
Dona Sophia suspirou e, com ar de nostalgia, começou a dizer:
— Eram tempos difíceis, minha neta! Este encarte faz parte de um marco histórico. Simboliza o fim de uma era e o início de outra. Essa revista, assim como tantas outras do gênero, fazia críticas a um sistema de emburrecimento coletivo proposital. O humor, em certos casos, é o melhor caminho para despertar o intelecto adormecido, pois enquanto rimos da piada, percebemos que somos o próprio motivo do riso.
Sophia deu um suspiro profundo e continuou.
— O período em que compreendeu as últimas 13 décadas da saga humana no ocidente até a revolta que ficou conhecida como A Segunda Noite de São Bartolomeu marcou um dos tempos mais tenebrosos da história humana. Alguns historiadores chamam esse período de A Segunda Idade Média, pois apesar de mais avançados em tecnologias, comunicações e transportes, a mente deste povo era tão enrijecida aos fatos quanto a de um camponês europeu do século XII. Tinham medo de pensar por conta própria e, desta feita, desagradando a Deus e sujeitos aos seus vitupérios. Pastores, missionários, donos de igrejas e autointitulados apóstolos, era quem traduzia essa suposta direção ao povo amedrontado.
Loren ouvia atenta.
Na escola, nunca tinha ouvido falar sobre isso. Talvez devido à sua pouca idade e grau escolar.
Sophia explicou de modo rápido as principais ocorrências entre os anos de 1900 até 2030.
Detalhou como a igreja protestante tornou-se a "fé evangélica" e como esta em milhares de ramificações subverteram os ideais do protestantismo inicial. Cada uma concorrendo entre si pelo domínio universal do rebanho ou unindo forças quando havia um inimigo em comum.
O modo mais eficaz de atrair público criado pelos pentecostais era o uso de espetáculo de aberrações. As igrejas pareciam um circo, de tanta algazarra que faziam. Nada de proveito era ofertado ao povo.
Falsas promessas de riquezas vieram logo depois, a partir dos anos de 1970, com os neopentecostais.
Os Judaizantes ganharam força após a chegada do mundo digital e redes sociais.
De certa forma, exalavam até um nível cultural maior.
Possuíam um linguajar refinado, e alguns dentre eles eram até capazes de ler a Bíblia nos idiomas primários, a exemplo do grego, hebraico e latim.
Apesar de tudo, eram tão infantis quanto os demais, capazes de restringir a ira, vontade ou o poder "do criador" à pronúncia correta do seu nome.
Alguns até foram vistos com grupos bolsonaristas nas portas dos quartéis, ajoelhados, invocando o "nome sagrado", pedindo justiça, enquanto oficiais desmontavam suas barracas nos eventos que antecederam o fatídico dia de 8 de Janeiro de 2022. Alguns, em suas lives de culto, chegavam ao extremo da bizarrice, tentando unir símbolos e ritos do judaísmo com o cristianismo ou de cultos de matizes africanas, pervertendo assim a particularidade de cada uma delas.
Entre os milhares de vertentes do cristianismo free-style, pentecostais e neopentecostais foram as que mais influenciaram o pensar e o comportamento ocidental, reduzindo drasticamente o QI e o senso de moralidade da maior parte da população.
De buscadores da liberdade em outros tempos, eles se tornaram opressores, gente gananciosa, arrogante, pedante, simplória e chata, que resumiam todo discurso humano, arte e forma de ser ou existir a um simples método binário de adivinhações, que selava qualquer embate com frases do tipo: “Deus quer ou não, quer”, “Deus gosta disto ou não gosta”; “Ele aprova/desaprova”; “Sou ungido e você não é. Cale-se!”
Diante da profundidade dessa forma perspectiva, a população foi tornando-se cada vez mais burra, mais servil, deprimida (ou opressora) ao ponto de perseguir ou tentar conter tudo o que fosse diferente. Os anos de 1950 a 2000 talvez tenham sido os mais brutais.
Com o surgimento dos meios digitais, as lideranças passaram a assumir posturas diferentes.
Primeiro demonizando esse novo mecanismo, depois usando-os como meio de propagação em massa de suas loucuras, tendo o lucro como primazia acima de qualquer critério.
Uma lagrima rolou do canto do olho esquerdo de Dona Sophia ao relatar tais memórias.
Nascida em berço evangélico no fim dos anos de 1980, ela teve sua infância, adolescência e juventude marcada por paranoias, alucinações e doses cavalares de esquizofrenia, todas com “base bíblica”, segundo o pastor de sua igreja e toda a hierarquia ministerial.
Seus melhores anos de inocência, vigor e projetos pessoais de vida foram roubados e ninguém podia devolvê-los.
Céus, inferno, anjos, demônios e a ira divina povoavam a mente de qualquer fiel daqueles dias, independente da idade. O único modo de se livrar de tudo isso era obedecer cegamente ao líder religioso local e a este se dispor em alma e espírito (e, em certos casos, em corpo também).
Era uma injustiça que quase todo contemporâneo seu tinha de conviver, bem como vários de seus antepassados.
Ao ver a lágrima rolar, Sophia sentiu as mãos de sua netinha trazê-la de volta à realidade, como se quisesse dizer: continue vó!
A idosa prosseguiu dizendo que era como se toda sociedade da época houvesse sido “possuída” por um espírito obsessor, perdendo desse modo sua própria noção de humanidade, tornando-se agentes do caos e da ira divina, impetrada (inventada) por aqueles que se diziam guias espirituais, escolhidos a conduzir o povo ao paraíso celestial.
Contou ainda como o nome de Deus era usado nessas ocasiões para ludibriar, corromper, extorquir, denegrir e manipular as massas, elegendo políticos corruptos que, em apoio, permitia (incentivava) a instauração de uma ditadura eclesiástica, disfarçada de graça divina.
O povo agradecia (ou era obrigado a agradecer) aos seus algozes diária e publicamente, de modo enfático, demonstrando alegria em ser escravo ao invés de ansiar pela liberdade ou igualdade.
Contou a inda que esse foi o período em que o protestantismo abandonou suas raízes da reforma iniciada em 1517 com Lutero para tornar-se justamente o cerne daquilo que o próprio “pai fundador” jurava combater.
A neta, ainda curiosa, porém sem a resposta que buscava, interrompeu:
— Sim, vó. Mas ainda não falaste porque o termo pagão!
Dona Sophia deu um riso de canto de boca e disse:
— Porque eles pagavam. Pagavam dinheiro ao pastor. Só isso!
A neta ficou confusa e disse:
— Pagavam pelo quê? Não vejo nada aqui!
Com toda a paciência do mundo, dona Sophia disse:
— Certeza? Não vês nada? Você é tão minuciosa… Não estou te reconhecendo!
A neta concentrou-se.
Foi como se tivesse levado um chocalho.
Ela sabia que frases assim serviam, ao mesmo tempo, de correção e elogios quando vinham de sua avó.
Querendo fazer jus à expectativa, ela deu um pulo de entusiasmo ao elucidar e, apontando para a lista que o pastor trazia em mãos, ela disse:
— Já sei pelo que eles pagavam!
Ambas se entreolharam e o ar de espanto da menina transformou-se em riso, ao ver que a sua avó também se prendia para não rir antes dela.
Ela havia entendido a sátira, inclusive havia “sacado” o nome da revista e julgou que aquele volume não era único e que poderia haver outros como aquele com temas diferentes.
Loren levou a mão à boca e, em tom estupefato, disse:
— Mas vó… Eu não acredito que pudesse haver gente tão burra a tal ponto. Só pode estar brincando!
Sophia rio, ao mesmo tempo, em que se sentiu magoada, já que ela era parte daquela geração.
Em tom carinhoso, ela disse a sua neta:
— Gente burra não, filhinha. Jamais diga isso. Pode soar ofensivo, principalmente às pessoas com mais de 30 anos. A nova era da humanidade começou recentemente. Querendo ou não, eles vivenciaram esses dias.
A netinha desculpou-se, apesar de sua avó não ter se ofendido realmente.
CONTINUA....
Texto (conto) escrito em 05/1/24.
*Antônio F. Bispo é graduando em jornalismo, Bacharel em Teologia, estudante de religiões e filosofia.
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Atualizado em: Seg 6 Jan 2025