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Acorda João ...

Maria é uma mulher linda, bem casada, e aos 25 anos está grávida, o que a torna ainda mais bonita e simpática. José, seu marido, é um empresário bem sucedido e faz questão de não deixar faltar nada para sua amada e seu futuro neném.

João nasce numa tarde de inverno. É forte, saudável, e segundo as titias e vovós, a perfeita combinação de Maria e José. No berçário, chama a atenção de todos que passam. É o maior de todos e também o mais esperto. Parece já ter um mês de idade. Sorri o tempo todo e só chora para mamar, o que é feito de tempo em tempo para alegria da jovem mamãe.

João cresce com os cuidados e regalias de uma família que o ama muito. Saudável e esperto, no dia de seu aniversário de 4 aninhos, sai com Maria para comprar roupas e presentes. Fala muito e aponta com certeza para seus brinquedos preferidos: bolas e carrinhos.

Nas ruas de Copacabana, na Cidade Maravilhosa, Maria passeia com João. Entra nas lojas, escolhe roupas e o faz se familiarizar com o dia à dia da cidade.

- "João, olha que prédio bonito. Vamos entrar pra conhecer."

Entram e saem de diversas lojas. Compram, conversam, estão ansiosos para a hora da festinha, preparada com motivo de futebol, sem que nenhum detalhe tenha sido esquecido, desde o bolo, no formato de um campo de futebol, com jogadores e até juiz. Maria é perfeita na preparação e organização de festinhas.

Em determinado momento, quando passeiam na Avenida, começa um corre-corre.. Maria vê dois homens correndo de forma alucinada. Fogem de algo que ela não sabe o que é. Ela tenta se esconder e proteger João que muito curioso quer saber o que está acontecendo.

- "Mamãe o homem tá correndo ... olha mamãe, olha..."

- "Venha João, fique do meu lado, podem ser bandidos...."

Outros se juntam a eles com armas em punho e berros para a multidão.

- "Bang ... bang ... bang ..."

- "Mamãe que barulhão... ? o que houve ?"

- "João fique quietinho, venha mais para perto de mim. Vamos entrar naquele prédio, venha ..."

Maria, se esquiva, procura levar João para um lugar mais protegido. Enquanto isso a polícia aparece em louca correria atrás daqueles homens armados. Trocam tiros no meio de uma multidão sem condições de proteção. São vidraças quebradas, gente no chão, escondidos atrás de carros e árvores. Uma verdadeira praça de guerra.

Maria, angustiada, pede que João fique calmo, e diz a ele que os mocinhos vão pegar os bandidos. Mas quem seriam os mocinhos e os bandidos? Todos atiram à esmo, sem direção. São balas que atingem prédios, vidraças, carros e até mesmo gente.

João se mostra calmo, comportado, e em determinado momento chama a mãe de forma serena:

- "Mãe, tá molhado, olha..."

- "Calma meu filho ... você já vai fazer xixi..."

- "Não mamãe - com uma pausa maior - mamãe é aqui ... na ... perna ..."

E puxando-o para mais perto, Maria responde:

- "João se acalma, olha ... os moços já foram embora, ..."

- "mas mamãe, tá ardendo, ... tem sangue ...”, responde o menino.

Maria percebe então que João quer lhe mostrar algo mais. Nota que escorre um fio de sangue por sua perna esquerda e sua bermuda está rasgada, furada. Desesperada, abraça João que se apresenta um pouco pálido:

- "Mãe, tá ardendo muito ..."

Maria rasga a bermuda e pode ver uma pequena ferida que jorra continuamente o sangue de seu filho, que aos poucos parece desfalecer em seus braços.

- "Ma...mãe ... to com sono..."

Maria se desespera:

- "Socorro ... Socorro ... atiraram em meu filho! João, não feche os olhos. Fala com a mamãe. Tá doendo ?... acorda meu filho ... ACORDA JOÃO ! "

Os tiros somem. Populares se juntam a Maria. Alguém amarra com uma gravata a perninha de João com a intenção de estancar o sangue que já míngua. Maria com o pequeno no colo corre de um lado para o outro e implora para ir a um hospital. O tumulto é grande. Embora a solidariedade esteja presente, o trânsito congestionado não permite uma saída fácil do local.

No meio do desespero um jovem se aproximou:

- "Deixa eu ver o garoto, sou médico, posso ajudar...".

Maria abraçada ao frágil corpo de João, chora intensamente e já fala palavras sem nexo:

- "Doutor, deram um tiro nele... ele está dormindo... acorda ele doutor... acorda ele... vamos para o hospital... meu filho... meu filhinho ... salva ele doutor ..."

O jovem médico segura o pequeno João em seus braços. Com os olhos marinados de lágrimas e a voz trêmula, demonstra sua pouca experiência em momentos como este. Sabe que não deverá ser o único ou o último em sua carreia mas chega a falar coisas que não gostaria de dizer:

- "Meu Deus, ... não é possível, não posso fazer nada ... mais nada ... porque meu Deus ? Porque ? eu deveria salvá-lo...

Abraçado ao menino tenta de qualquer forma reanimá-lo, mas sabe que João não mais voltará.

Maria, atônita, sem consciência da verdade, grita para que devolva seu filho pois ainda tinham que comprar os presentes para seu aniversário. O olha com o carinho de sempre e fala com um discreto sorriso:

- "Vamos João, vamos comprar sua roupinha. Papai espera por nós ..."

- "Sinto muito madame, sinto muito ...", repete o médico também em choque, que não consegue falar em morte.

Um motorista de taxi, que tinha parado para ajudar, está confuso. Maria está fora da realidade. Conversa com João e o acaricia. Diz para ele que se quer dormir então vão para casa e mais tarde terminam as compras.

- "Moço ... por favor, vamos para casa, ali na Júlio de Castilhos, meu filho precisa descansar. Hoje é seu aniversário. Andamos muito, houve muita confusão...e ele está dormindo ..."

O pequeno João, do Rio de Janeiro, é mais uma vítima da bala perdida. Um ponto a mais na estatística da violência que domina a cidade, onde o cidadão é obrigado a obedecer bandidos, a polícia se mostra despreparada e a família não tem a segurança mínima e necessária para trabalhar ou passear, pois não sabe se irá retornar.

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Atualizado em: Ter 3 Nov 2009

Comentários  

#3 Cilas_Medi 10-02-2010 20:42
Pensar que um fato desse acontece diariamente. E não se pode fazer nada. Preparar para não sofrer mais do que o necessario. Um filho nos braços morto é o pior pesadelo. Estrelado. Pesames para o João e a sua mãe e parabens pela cronica.
#2 AGCARDOSO 05-11-2009 10:39
Chocante. Li a sua crônica com olhos marejados, fiquei a pensar nos meus pequenos...
#1 tania_martins 04-11-2009 15:38
Triste realidade!

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