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Varrendo as Coisas Velhas
Imagine que você seja uma pessoa profundamente conectada com sua herança cultural, suas tradições e tenha herdado um prédio histórico, concretizando a possibilidade sonhada de morar num local impregnado de história, uma relíquia de casarão do século XIX. Como todo habitante do século XXI, tem acesso à Internet, banda Larga, notebook, adora um banho quente e uma TV de plasma; embora isso pareça incoerente, respeito com o passado não quer dizer abrir mão das comodidades do presente. Vistoriando o local, constata que precisa de uma nova rede elétrica, pintura de paredes – você sofre de alergia -, não há pontos para TV a Cabo ou Internet e o piso do chão pede urgente para ser trocado. Aqueles móveis maravilhosos de madeira do tempo dos seus bisavós precisarão de uma boa descupinização e uma pátina para adquirir um ar de falso vintage, pois in-natura é impossível conviver com eles. Adoraria substituir a banheira antiqüíssima por uma com hidromassagem e descobre que as instalações sanitárias existentes não comportam. Os vitrais das janelas são lindos, mas pela localização, seria mais seguro colocar grades na janela. Ou talvez, contratar um serviço de vigilância resolveria. Você consultou o IPHAN e foi alertado(a) que as características externas do imóvel terão de ser mantidas. Ou seja, aquelas gárgulas pequenas, mas inquietantes não podem ser retiradas ou alteradas. Grades então, nem pensar.
Ufa! Se você que adora relíquias, já está desanimando diante dos obstáculos, imagine quem não abre mão de todos os benefícios da modernidade. À medida que a euforia pelo presente vai passando, você se imagina como um turista admirando a sua casa do lado de fora, ansioso por ver quais tesouros ela esconderia. Certamente abominaria qualquer mudança que impedisse a visão das paisagens no jardim e daquela maravilha arquitetônica. Será que se fosse um turista iria morar lá para iniciar alguma coisa? Ao mesmo tempo em que preservaria os belos vitrais, a grade que pretende colocar os enfeiaria. Os acréscimos necessários desfigurariam o projeto original.
Você está num dilema só. Como conviver com um local que enseja uma continuidade profunda, limitando as intervenções para se adaptar às exigências atuais e em conseqüência, abrindo mão de um modelo de vida corrente, que não é só seu, é de toda a humanidade?
Em maior ou menor escala, todos nós em algum momento descartamos registros da nossa vida, por não vislumbrar serventia a eles, por querer sepultar o passado ou por nossa incapacidade de visão de longo prazo. Acrescente-se a evolução tecnológica avassaladora que gerou mais informação nas últimas décadas que todo o registro de conhecimento que chegou até nós nos últimos dois mil anos e teremos um tremendo abacaxi para descascar. O que é importante e é necessário que preservemos?
Você, o (a) proprietário de uma residência histórica, percebe que não adianta trazer o passado para a sua vida. Talvez fosse o caso de compartimentá-lo. O respeito pelo passado pode se tornar um fardo. Uma fixação exagerada na nossa herança se torna uma forma de autoobsessão que faz com que nosso patrimônio fique debruçado sobre si mesmo, decadente. A continuidade excessiva é como água parada. Apodrece. Todavia, a interrupção brusca também é um retrocesso. Obriga-nos a um eterno presente, que desmembra a história das vidas individuais numa série de projetos e episódios de curto prazo, onde tudo tem que ser criado de novo.[i] Não nos restam modelos para saber onde os nossos antepassados erraram, até que ponto eles já dominaram o conhecimento e termos a humildade de estabelecer como ponto de partida o saber existente.
Por isso, se você destinar sua casa a ser um museu, abrigar um órgão cultural, não estará renegando o passado. Você acionou o instinto de defesa que a sua paixão pela tradição impulsiona. Não priva os demais habitantes do conhecimento de épocas passadas e vai morar num local condizente com o seu tempo, sem destruir a ponte que liga o passado e o presente.
Comentários
Voce consegue plantar a dúvida entre o modernizar e o preservar, mas aconselha ao final,
a segunda hipótese, e o faz de maneira concisa, e coerente com o raciocínio que passado
é memória, e não deve continuar existindo somente em nossa mente.
Ainda não conhecia o seu trabalho, e fico feliz de haver escolhido para ler, esse entre outros de
seus textos, pois já vivi situação parecida e penso que, preservando, acertei na escolha.
Abs.
Um fraterno abraço!
Parabéns! Estrelei.