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TUDO OUTRA VÊZ
Madrugada. Abri os olhos, e aquela canção de Belchior logo me veio à cabeça, maculando o silêncio, feito um velho disco de vinil a rodopiar na vitrola do pensamento:
“Faz tempo, muito tempo, que eu estou longe de casa, e nessas ilhas cheias de distância, meu blusão de couro se estragou...”
Poderia ter vindo de mansinho, me acordando devagar, feito o sopro cansado de uma brisa andarilha, vinda das terras indizíveis da solidão, trazendo as boas velhas, contando histórias do meu próprio exílio, notícias de todo esse tempo passado longe de mim...
Poderia. Mas não quis. Chegou assim, avassaladora, feito veneta de faxineira, revirando a casa, desarrumando tudo, invadindo o sótão do coração, escancarando o baú das lembranças, remexendo antigas emoções já empoeiradas e amareladas pelo tempo, e desenterrando aquela vontade de me reencontrar comigo...
“Ouvi dizer num papo da rapaziada que aquele amigo que embarcou comigo, cheio de esperança e fé, já se mandou...”
Pode ser que ele tenha ido embora, sim. Talvez nunca mais o reencontre. Às vezes, a vida faz coisas assim. Passa devagar e sempre, feito correnteza de riacho, e sem que a gente perceba, vai nos levando prá longe de nós. Assim como “as velas do mucuripe” sumindo lentamente na distância dos mares sem fim...
Levanto. Abro a janela e deixo a noite entrar. Meus olhos passeiam pelo quarto vazio. Meu peito está deserto, e sinto cada vez mais saudades de mim! Estou querendo me rever, me revisitar. Redescobrir como ando, o que faço, se ainda resido no mesmo endereço...
Me imagino chegando, tomando coragem, batendo na porta. Escuto “minha fala nordestina” convidando a entrar, a sentar, a bater um papo comigo. E vou. Quem sabe, assim, entre um gole e outro, me depare com “aquele amigo que embarcou comigo” e descubra ele ainda está por aqui. Que não se mandou. Que está bem na minha frente, vivo e, teimosamente, ainda morando em mim...
“Minha rede branca, meu cachorro ligeiro, sertão, olha o concorde que vem vindo do estrangeiro...”
A canção toca fundo. O coração aperta. Já nem sei onde fica “o fim do termo saudade” que, nesse momento, não tem nada de “charme brasileiro”. Porque dor de saudade é igual em qualquer canto do mundo, nunca foi exclusividade de ninguém. E trago a mala cheia! De tudo aquilo que não fiz, do muito que não me permiti. Arrependimentos? Sim. Dos sonhos encarcerados. Que foram tantos... E ainda são!
É por essas e outras que eu ainda estou aqui, “sozinho a cismar” e temendo a volta. Exatamente aqui, “sentado à beira do caminho prá pedir carona”, sem “mulher companheira”, a imaginar se lá, no trópico do meu exilado e pseudo-amordaçado coração, a vida está mesmo a mil...
É quase certo que não. Os anos tem um estranho poder sobre nós. Vão nos roubando a força, furtando a vitalidade, enfraquecendo a vontade. Vão esculpindo rugas no rosto e na alma. É o tempo que passa, deixando a marca de suas digitais. Reacendendo antigas dúvidas, remoendo velhos questionamentos, ressuscitando medos. Que, velhos ou novos, via de regra, são os mesmos de sempre...
Medos resistem ao tempo, alimentam-se de nossas culpas, das imposições que nos cometemos, dos erros que nos consentimos. São entulhos. Destroços do nada. Restos do que restou de nós, ruínas de tudo o que construímos no terreno fértil da ilusão. Rasuras. Retraços daquilo que a gente, por algum tempo, até acreditou que existia.
Medos são dores. Conseqüências. Refugos. Seqüelas da covardia. Habitantes de quem foi, aos poucos, deixando de lado as referências de si.
Medos são trancas. Cadeados. Grades invisíveis aprisionando a esperança, a magia, o encantamento. Coisas de quem, ao perambular pelas estradas da existência, esqueceu a vida pelo caminho. De quem silenciou ante as algemas do politicamente correto, esquecendo de que, um dia, no frescor dos sonhos juvenis, levantou a bandeira do “é proibido proibir” e a ela jurou fidelidade. De quem, ao branquear os cabelos, viu desbotarem também as cores da alegria.
Foi exatamente aí que “meu blusão de couro se estragou”. Aquele mesmo, velho companheiro, que tantas vezes me protegeu do frio do desalento, hoje cada vez mais surrado, corroído pelas traças da desilusão, largado num canto, abraçando em seu silêncio todas as sombras de mim.
Meu rosto está gelado. De frio. De inquietação. Da mistura de desejo minguante e receio crescente de me encontrar outra vez. De, ao abrir a porta, descobrir apenas uma casa vazia, emudecida. De que, do espaço entre o desencanto e a melancolia, possa surgir uma outra canção, a me revelar que “nada do foi será do jeito que já foi um dia”. E de que eu não mais possa sonhar em ser, como antes, “estudante da vida que eu quero dar”...
“Até parece que foi ontem minha mocidade”...
Puxa, que noite! Mais uma daquelas, quilometricamente percorridas entre léguas insones de cansaço inquieto e instantes de negra clarividência. Acho que, por tanto atravessá-las, conquistei, com méritos, um “diploma de sofrer” da universidade da vida...
A música parece interminável! A noite também. Mas não há madrugada, por mais obscura que pareça, que não embale em seu ventre o feto do amanhecer. Tipo da gravidez sem risco de aborto, sem parto prematuro.
Penso na manhã. Sinto a brisa. De sol, manhãs são promessas. De luz, certeza inabalável. Do mais, meras possibilidades. Que venham!
Amanheceu. Lá fora, há um dia criança me chamando prá brincar, prá “viver as coisas novas, que também são boas”, “o amor, o humor, as praças cheias pessoas”...
Quero tudo. Tudo, outra vez!
Comentários
Amanheceu. Lá fora, há um dia criança me chamando prá brincar, prá “viver as coisas novas, que também são boas”, “o amor, o humor, as praças cheias pessoas”...
Quero tudo. Tudo, outra vez!"Parabéns, lembrou minha juvetude, me senti meio como você.