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O Mal para o Bem
Em um minúsculo espaço, no canto esquerdo o criado-mudo junto à cama. Sobre ele, o rádio. A TV, em cima da estante, de frente . o DVD fora emprestado de um amigo. Sobre os móveis, poucos e antigos objetos de adorno, e ela, de estudo. Uma lâmpada com luz fluorescente vermelha, estrategicamente colocada no portal superior da única entrada, avisava que o café da manhã estava servido.
Alí, naquele ambiente confortável, porém, sombrio, pelo diagnóstico e pela radioatividade da substância a ser utilizada, Eunice fazia um esforço absurdo para se sentir bem, confiante da cura, assegurada pela equipe médica.
A emissora, no rádio, dava a previsão do tempo:
_ “O céu está claro, no Rio, com nuvens esparsas, com expectativa de chuvas para o fim da tarde. Dia de muito calor, com temperatura máxima de trinta e seis graus , em Bangu e vinte e dois, na Quinta da Boa Vista”.
E, Justamente, ela, que sempre reclamara do sol escaldante do verão, secando-se o suor; transpirando sem parar na rua e em todo lugar; agora imaginava como estaria o céu azul. E esta era a única maneira dela saber o que se passava lá fora. Além disto, apenas uma mísera e fosca fresta no pequeno basculante, lhe deixava ver se era dia ou noite. Vista nenhuma tinha ela, naquele subsolo, se fazendo reportar aos calabouços, às masmorras dos castelos, nos filmes épicos, contando as histórias medievais.
Girou a maçaneta da porta, que abria para dentro e pode ver a dieta na embalagem prateada, de viagem, sobre o carrinho metálico, no estreito e silencioso corredor. Pegou-a, rapidamente e fechou a porta, seguindo as instruções para não contaminar o lado externo com o material radioativo daquele quarto frio, não somente pela temperatura do refrigerado ar, mas, muito mais, pela frágil e impotente condição de paciente em que Eunice se encontrava. Do lado de fora, a placa, em letras garrafais, deixava claro o grau de periculosidade:AREA CONTROLADA
Sentia cerceado o seu direito de ir vir, reprimida a sua liberdade. Ali ela só tinha o direito de ir e vir do banheiro, de fechar ou abrir o livro, de ligar ou desligar os aparelhos de vídeo e áudio, de diminuir ou aumentar a temperatura do ar. Era uma gaiola quase de ouro. A paciente desfrutava de uma estada privilegiada. Era, praticamente, uma prisão especial, daquelas para os presos políticos, ou para criminosos com curso superior. Mas, de qualquer maneira, uma prisão. Nem de longe, comparada aos porões da ditadura, ou aos presídios atuais no país. A tortura era, tão somente, os cuidados de praxe após a introdução oral da bendita substancia radioativa que, sabia ela, seria a heroína, no extermínio àquelas células cancerígenas do seu organismo e, com isto, a esperança do fim de um pesadelo que a assombrava havia meses.
Inevitavelmente lembrar da prisão em um passado jamais distante, em Buenos Aires Aquela cama de alvenaria. Um frio de quatro graus abaixo de zero, espaço dois por dois. Não de metros quadrados. Dois passos e você já estava do outro lado. Obvio que as circunstâncias, eram diferentes. Os artigos e incisos, também. O réu, desta vez não era ela, mas aquele tumor que está dentro dela e que está condenado-a à pena de morte. Será bombardeado pelo iodo radioativo, substituindo as os “pau-de-araras” e “cadeiras de dragão”.
Sorria, até, com esta imagem grotesca e, em certa medida, até infantil dos filmes de super-heróis, quando percebeu que passava na televisão o noticiário sobre o menino que foi morto depois de um assalto; outro, encontrado, depois de ter passado três meses no cativeiro. O último paciente que saiu dali curado,morreu no dia seguinte atropelado. E refletiu: notícia ruim dá IBOPE. A vida não é só isso, tem muita coisa boa acontecendo por aí, mas que não vira notícia. Além do mais, o que é a vida senão um CÂNCER . A luta insana entre o bem e o mal. Para Eunice, estar presa, lutando pra viver, ali ou lá fora, já não fazia a menor diferença.
Comentários
tentando decifrá-la.
Bjs
grande abraço
abraço anarquista