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Nabo, o negro que fez esperar os anjos
O conto "O Alienista", de Machado de Assis, tem um fragmento que retrata o tratamento desumano que era dado aos loucos antigamente:
"A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida: os mansos andavam à solta pela rua" . (p.35)
A partir deste trecho, vamos analisar a idéia de loucura expressa em alguns contos do livro "Olhos de Cão Azul" de Gabriel Garcia Márquez. O primeiro, "Nabo, o negro que fez esperar os anjos" relata a história de Nabo, que escovava os cavalos de uma casa onde vivia uma menina muda, que aparentava ser doente mental: "A menina ficava sentada, ouvindo os discos. Às vezes, quando ouvia música, a menina descia da cadeira, sem deixar de olhar a parede, babando, e se arrastava até a sala de jantar". (p. 115)
A única pessoa que conseguia interagir com a menina, que vivia olhando friamente para a parede, no "mundo da sala", em absoluta introspecção, era Nabo, pois ele cantava e ligava a vitrola para ela, diariamente. Através da música, Nabo foi capaz de resgatar a menina para o mundo dos humanos, e assim, driblar a carência oriunda da sua solidão. A menina era ignorada pela família personificada como uma única personagem sem quaisquer laços afetivos com ela. A família, também, aparece como a narradora do conto.
Provavelmente, a relação entre Nabo e a menina era facilitada pelo fato do rapaz viver em um universo lúdico, regido por suas fantasias, o que o aproximava da criança. O conto foi escrito em primeira pessoa do plural: a família. Desta forma, encaramos o temperamento de Nabo exposto pela interpretação de um observador, o qual desprovido de uma iluminação onisciente torna-se incapaz de se aprofundar no âmbito subjetivo do rapaz. No contato com o texto deparamo-nos com uma situação ambígua: se Nabo tinha, ou não tinha, um desequilíbrio de suas faculdades mentais antes do acidente. Ao passo que a família acreditava nessa possibilidade:
"No principio, quando chegou à casa e lhe perguntamos o que sabia fazer, Nabo disse que sabia cantar. Isso, porém não interessava a ninguém. O que a gente precisava era de um rapaz que escovasse os cavalos. Nabo ficou, mas continuou cantando como se o tivéssemos recebido para que cantasse, e aquilo de escovar os cavalos não fosse senão uma distração que fazia mais leve o seu trabalho". (p.115)
Contudo, sua transição para insanidade acontece no dia em que penteando o rabo de um cavalo, Nabo levou um coice e ficou louco para o resto da vida. Os familiares, guiados pela estima que sentia pelo rapaz e a fim de evitar maiores transtornos, amarraram-no numa cama, com intuito de protegê-lo e barrar possíveis constrangimentos, pois consideravam Nabo impossibilitado de se comportar socialmente. Assim, ele passou a viver enclausurado em uma alcova, onde lhe davam comida por baixo da porta, durante quinze anos, como se fosse a coisa mais sensata a se fazer como tratamento à loucura.
Existe uma referência desse tratamento inusitado no livro "Cem anos de Solidão" de Gabriel, no qual o patriarca José Arcádio Buendía, quando enlouquece é amarrado pela família nas raízes de um castanheiro. E é assim, amarrado a um castanheiro, sofrendo as intempéries com o passar do tempo, que o patriarca aparece praticamente em toda a saga.
Em ambas as obras, tanto em "Cem anos de Solidão" como no livro "Olhos de Cão Azul", está presente esse tipo de tratamento com o louco, lidar com o doente como se esse fosse um animal feroz. Porém, o mais interessante é analisar como a denúncia de Gabriel soa estranha aos olhos críticos da contemporaneidade - mesmo que exista a camisa de força e diversos tratamentos de choque - saboreamos uma angústia desencadeada pela sensibilização e identificação com as personagens sofredoras. Este questionamento retrata de forma maravilhosa a vida real, porque mesmo discordando das atitudes das famílias para com os loucos, não sentimos revolta, tampouco incompreensão, pois da maneira natural como os acontecimentos se sucedem, fica explícito que esses métodos de tratamento com os doentes eram absolutamente normais e de acordo com a composição de mundo, no qual estavam imbuídas as personagens. Mas, nos dias de hoje, não deveria ser diferente?
Gabriel, em seus contos que tratam da loucura, no livro "Olhos de Cão Azul", faz uma metáfora que apresenta a transição sanidade/insanidade como uma transformação de ser humano em ser animal, ou seja, a passagem do racional para o irracional. Os sãos tratam dos insanos de maneira insana. Este pensamento paradoxal auxilia a reflexão acerca da fronteira que divide insanidade/sanidade, mostrando-a como uma linha tênue, na qual, às vezes, oscilamos, transitando entre um estado e outro, inevitavelmente.
Essa "linha da loucura" é tratada por Machado de Assis no conto "O Alienista", o qual nos proporciona a ciência de que não existe o total equilíbrio das faculdades mentais, ou seja, esse tipo de julgamento é impossível, tendo em vista que os parâmetros de análise são inexistentes, porque como seres humanos estamos condenados à imperfeição.
"A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida: os mansos andavam à solta pela rua" . (p.35)
A partir deste trecho, vamos analisar a idéia de loucura expressa em alguns contos do livro "Olhos de Cão Azul" de Gabriel Garcia Márquez. O primeiro, "Nabo, o negro que fez esperar os anjos" relata a história de Nabo, que escovava os cavalos de uma casa onde vivia uma menina muda, que aparentava ser doente mental: "A menina ficava sentada, ouvindo os discos. Às vezes, quando ouvia música, a menina descia da cadeira, sem deixar de olhar a parede, babando, e se arrastava até a sala de jantar". (p. 115)
A única pessoa que conseguia interagir com a menina, que vivia olhando friamente para a parede, no "mundo da sala", em absoluta introspecção, era Nabo, pois ele cantava e ligava a vitrola para ela, diariamente. Através da música, Nabo foi capaz de resgatar a menina para o mundo dos humanos, e assim, driblar a carência oriunda da sua solidão. A menina era ignorada pela família personificada como uma única personagem sem quaisquer laços afetivos com ela. A família, também, aparece como a narradora do conto.
Provavelmente, a relação entre Nabo e a menina era facilitada pelo fato do rapaz viver em um universo lúdico, regido por suas fantasias, o que o aproximava da criança. O conto foi escrito em primeira pessoa do plural: a família. Desta forma, encaramos o temperamento de Nabo exposto pela interpretação de um observador, o qual desprovido de uma iluminação onisciente torna-se incapaz de se aprofundar no âmbito subjetivo do rapaz. No contato com o texto deparamo-nos com uma situação ambígua: se Nabo tinha, ou não tinha, um desequilíbrio de suas faculdades mentais antes do acidente. Ao passo que a família acreditava nessa possibilidade:
"No principio, quando chegou à casa e lhe perguntamos o que sabia fazer, Nabo disse que sabia cantar. Isso, porém não interessava a ninguém. O que a gente precisava era de um rapaz que escovasse os cavalos. Nabo ficou, mas continuou cantando como se o tivéssemos recebido para que cantasse, e aquilo de escovar os cavalos não fosse senão uma distração que fazia mais leve o seu trabalho". (p.115)
Contudo, sua transição para insanidade acontece no dia em que penteando o rabo de um cavalo, Nabo levou um coice e ficou louco para o resto da vida. Os familiares, guiados pela estima que sentia pelo rapaz e a fim de evitar maiores transtornos, amarraram-no numa cama, com intuito de protegê-lo e barrar possíveis constrangimentos, pois consideravam Nabo impossibilitado de se comportar socialmente. Assim, ele passou a viver enclausurado em uma alcova, onde lhe davam comida por baixo da porta, durante quinze anos, como se fosse a coisa mais sensata a se fazer como tratamento à loucura.
Existe uma referência desse tratamento inusitado no livro "Cem anos de Solidão" de Gabriel, no qual o patriarca José Arcádio Buendía, quando enlouquece é amarrado pela família nas raízes de um castanheiro. E é assim, amarrado a um castanheiro, sofrendo as intempéries com o passar do tempo, que o patriarca aparece praticamente em toda a saga.
Em ambas as obras, tanto em "Cem anos de Solidão" como no livro "Olhos de Cão Azul", está presente esse tipo de tratamento com o louco, lidar com o doente como se esse fosse um animal feroz. Porém, o mais interessante é analisar como a denúncia de Gabriel soa estranha aos olhos críticos da contemporaneidade - mesmo que exista a camisa de força e diversos tratamentos de choque - saboreamos uma angústia desencadeada pela sensibilização e identificação com as personagens sofredoras. Este questionamento retrata de forma maravilhosa a vida real, porque mesmo discordando das atitudes das famílias para com os loucos, não sentimos revolta, tampouco incompreensão, pois da maneira natural como os acontecimentos se sucedem, fica explícito que esses métodos de tratamento com os doentes eram absolutamente normais e de acordo com a composição de mundo, no qual estavam imbuídas as personagens. Mas, nos dias de hoje, não deveria ser diferente?
Gabriel, em seus contos que tratam da loucura, no livro "Olhos de Cão Azul", faz uma metáfora que apresenta a transição sanidade/insanidade como uma transformação de ser humano em ser animal, ou seja, a passagem do racional para o irracional. Os sãos tratam dos insanos de maneira insana. Este pensamento paradoxal auxilia a reflexão acerca da fronteira que divide insanidade/sanidade, mostrando-a como uma linha tênue, na qual, às vezes, oscilamos, transitando entre um estado e outro, inevitavelmente.
Essa "linha da loucura" é tratada por Machado de Assis no conto "O Alienista", o qual nos proporciona a ciência de que não existe o total equilíbrio das faculdades mentais, ou seja, esse tipo de julgamento é impossível, tendo em vista que os parâmetros de análise são inexistentes, porque como seres humanos estamos condenados à imperfeição.
Atualizado em: Qua 8 Out 2008