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A CIDADE DOS DEFUNTOS
A CIDADE DOS DEFUNTOS
I
Era sempre poente na Cidade dos Defuntos. Ou então crepúsculo, imediatamente a seguir ao Sol se pôr. A luz do dia oscilava entre poente e crepúsculo. Mas, essencialmente não havia tempo. Ou tempo era algo destituído de significado.
E não havia vento. Nunca o havia. Por vezes apenas uma aragem, uma brisa morna. Como a temperatura. Sempre morna.
Os movimentos eram apenas os suaves, os silenciosos. E os barulhos, sobretudo os ruídos, inexistentes, desconhecidos. Nada perturbava a paz que permeava o ar, que era o próprio ar; banhado sempre pela luz suave e alaranjada do poente.
Insectos não os haviam, não os poderia haver. Nunca os houvera nem haveria. De resto, passado, presente ou futuro faziam pouco sentido. A acção era vista como um todo e não importava o quando.
Na Cidade dos defuntos a maioria das normas e das regras, dos anseios e das barreiras, dos objectivos e dos deveres estavam mortos. Também não faziam sentido. Nem tão pouco as necessidades. Não havia necessidade de necessidades.
Repousava-se onde se queria. Caminhava-se por onde apetecia. Não havia portas fechadas. Estas ou estavam abertas ou apenas encostadas. Nunca fechadas.
Melhor do que caminhar, errava-se.
Sim, havia o grande cemitério do repouso ao lado da avenida.
Mas tanto fazia; podia-se lá repousar assim como na soleira de uma porta ou no interior de uma sala de uma qualquer casa que se escolhesse para morrer um bocado. Pouca diferença fazia estar vivo ou morto e não se fazia distinção entre uns e outros: os vivos e os mortos. Também se podia repousar em cima de uma campa ou no interior de um túmulo. Ou então morrer temporariamente, ou ficar em estado de letargia, ou dormir.
II
Ele estava desesperado, não sabia o que fazer. Nem conseguia pensar. Há muito que não conseguia pensar. Assistia à sua vertiginosa decadência, à sua ruína, e não conseguia pensar em algo para remediar a situação.
Sentia-se a desmoronar cada vez mais e sentia-se cada vez mais bloqueado.
Mas o pior de tudo era a sensação de ser ostracizado, descriminado.
III
Sinto-me prisioneiro de mim próprio. Oscilo entre a minha cama, a casa de banho e a cozinha. Oscilo entre dormir, comer, "drogar-me" com a televisão e dormir. Existência fútil, inútil e sem sentido. E sem esperança. Sou um-sem-esperança. Sinto-me trancado, bloqueado, incapaz de encontrar uma solução que me liberte. Não sei que fazer.
A fobia da sujidade possuiu-me e à minha volta quase tudo é sujo e poucas vezes saio à rua. E, no entanto, sobre os móveis, vivo rodeado de pó que não me atrevo a limpar tolhido pela repugnância. Todas as noites sou torturado pela presença de uma ou mais centopeias no meu quarto que mato em vão pois no dia seguinte lá surgem outras. Não sei de onde é que vêem!...
Sinto-me cercado, completamente sitiado por forças de bloqueio que me impedem de me realizar em qualquer sentido. Tudo o que tenho tentado fazer tem sido frustrado; a minha informática, a minha arte, a minha literatura... Já não sei que mais hei-de fazer. Não sei que hei-de fazer. A minha inspiração, a minha criatividade e inteligência estão a secar. Ou já secaram. Não sei que hei-de fazer. Estou bloqueado. Desorientado, Confuso, Baralhado. Tolhido.
Se, pelo menos, eu conseguisse ficar bem lúcido e inteligente, e ter um pouco de confiança também para vislumbrar um plano de ataque, um caminho, uma solução para sair deste pântano em que a inactividade se tornou uma obrigação face à desilusão.
O que é que se passa? Porque estou assim? Estou acabado? Porque não posso deixar de existir então? Porque tenho de continuar a viver para padecer apenas presenciando a minha decadência, o meu desmoronar imparável, a minha ruína?.. Se já passei o tempo das oportunidades então porque não posso ter a misericórdia de acabarem comigo? É isto o após juventude?.. a época da não-esperança?
Ou errar...
Ao longo da avenida, por entre os jardins calmos do Cemitério do Repouso, pelas ruas, pelas praças, pelo interior das casas...
Pois aí, na Cidade dos Defuntos, pelo menos não havia metas, desígnios, objectivos, posses, deveres, obrigações, ganhos, ou perdas...
IV
Perdi, fracassei, falhei, nas realizações desta vida!?!... Não pensei que isto fosse assim! Então, de repente, apercebi-me que já passaram todos estes anos e que a sociedade, 0 mundo, já fechou as portas todas! E sou isolado, descriminado, ostracizado. Impedido de qualquer realização! De repente é já demasiado tarde e o mundo acabou para mim e restam apenas a solidão, 0 abandono, 0 desprezo do mundo mesmo perante aquilo que de melhor faço como a minha arte, a minha investigação, a minha literatura... 0 mundo despreza tudo isso, todo o meu sumo, todo o meu melhor e remete-me para o campo de concentração dos falhados, dos que não têm direito a constituir família, dos que nao tern direito a uma profissão digna e a alguma qualidade de vida. Dos que passaram o prazo de validade. Dos sem-esperança. Dos que foram sentenciados a terem passado o prazo de validade (mesmo sem o terem) e que por isso apenas lhes resta padecerem pelos anos fora sem esperança de melhoria até que, um dia, a morte os leve. Condenados precocemente ao caixote do lixo por uma humanidade prepotente.
E a depressão instala-se e tolhe ainda mais os movimentos. Sente-se que já nem vale a pena explicar a alguém a nossa situação e o que sentimos porque nos invade o sentimento da inutilidade dessa acção. E depois, a pouco e pouco, descobrimos que já nem conseguimos explicar porque estamos assim e porque nos sentimos tão mal e porque sofremos tanto. Já não conseguimos explicar a natureza do pântano labiríntico em que estamos afundados. E depois já nem nos próprios fazemos ideia e não sabemos destrinçar o conjunto de coisas que nos afectam e cada vez ficamos mais enterrados na desorientação e no desespero. Pensamos que nada vale a pena, que não vale a pena analisar e explicar o conjunto de coisas que estão na base do nosso sofrimento e, a dada altura, já nem a nos próprios conseguimos explica-las. Mergulhamos cada vez mais em não distinguir senão uma amálgama das coisas que nos torturam, uma confusão do que nos faz sofrer tanto e ficar prostrados na inutilidade e na inacção.
O que me afecta tanto?
Já nem eu sei bem. Terei de fazer um esforço para destrinçar.
Afecta-me 0 facto de eu não ter conseguido até à data transmutar¬-me num ser incorruptível e imortal e isso constituir em si mesmo quase que uma certeza de que afinal esse meu sonho era impossível. Andei tantos e tantos anos a sonhar realizar algo que se me afigura afinal impossível! Que grande decepção, que desilusão!... Sempre imaginei que fosse algo muito difícil de atingir, mas não supus que fosse impossível. E afinal parece que não há volta a dar, ao invés de aperfeiçoar cada vez mais o meu ser terei de assistir à sua deterioração, à sua degeneração, ao envelhecimento, à decadência e à morte. Serei apenas mais uma vítima de uma sentença que tudo parece abranger. E todos os milhares de horas de estudo e de investigação, e das centenas de experiências, tantas delas dolorosas, que fiz com 0 meu próprio corpo e espírito, na minha luta pela transmutação parecem ter sido em vão. Quase tempo perdido!...
Foi 0 sonho de toda uma vida que caiu por terra.
E, de certo modo, apostei quase tudo num projecto que falhou.
Afecta-me portanto a inevitabilidade de que estou a envelhecer, a deteriorar-me, e de que envelhecerei cada vez mais. E de que tudo será cada vez mais negro. E isso é o pior de tudo aquilo que me tortura.
Afecta-me o facto de eu não ter cimentado uma carreira profissional concreta. Depois de tudo o que estudei, não ter, afinal, uma profissão digna, definida e aceite. De não poder ganhar 0 meu dinheiro e viver com dignidade.
Afecta-me a minha solidão e eu não ter constituído família. Sinto a falta de amor e a falta de família. Sinto-me só. Cada vez mais só.
Afecta-me eu não dispor de meios e de dinheiro para ainda constituir e suportar essa família.
Deterioração e envelhecimento;
Profissão, realização profissional;
Dinheiro;
Amor;
E Família.
Mas não tenho a certeza de serem estas as coisas que realmente me afectam. Poderá ser algo mais abrangente e que me escape.
V
Vagueio aqui pela casa antiga e sombria na qual só eu vivo com o meu guardião meio gárgula, meio lobo, um ser que eu próprio criei quando conclui que os outros seres lá fora... não valem a pena.
Desejo "não ansiar por companhia nem dos da minha própria espécie".
Já percorri o mundo e sou jovem, há muito tempo que sou sempre jovem, mas não sou um vampiro: essa raça parasitária de seres de carne sem vida, de sanguessugas de energia dos que a têm.
Dizem que sou belo e alto e, mesmo assim, se isso é verdade de nada me tem servido; estou só, estou sempre só. Não pratico o mal e a depravação repugna-me. Estou só, num mundo que não sinto como sendo o meu. A esperança, essa também já ficou pelo caminho. Bastar-me-ia apenas alguém até simples, agradável, meiga, amiga e verdadeira. Mas essas, sempre que as tenho conhecido e o interesse é mútuo, são de mim afastadas, como que sabotadas e nunca mais volto a vê-las... estarei cercado por uma força obscura que me asfixia, não permitindo que eu tenha direito a um pouco de felicidade?...
Vagueio por esta casa que provavelmente se tornará o meu túmulo, agora que fechei as portas a toda a gente, agora que contraí uma pneumonia talvez fatal que não medico por que acho que não vale mais a pena. E também não sinto vontade de me voltar a alimentar. Para quê? para prolongar ainda mais o suplício?...
VI
Como gosto de me deitar assim tão direito e esticado e me imaginar como morto no meu túmulo de pedra.
Como morto, não propriamente morto. Fora do tempo; por uma qualquer eternidade de não-existência.
Imagino-me no meu túmulo de pedra forrado a veludo negro através do qual não passa qualquer ruído; longe da gentalha barulhenta e zumbideira que não para quieta nunca. Apetece-me tudo parado, quieto, imóvel. Na tranquilidade do silêncio; na paz eterna.
Apetece-me saborear, imaginar, que nunca nada existiu, nem existe; nem eu. Que o sonho do universo foi apenas um sonho mau, um pesadelo conturbado e agitado; cheio de tanto sofrimento e dor...
; deixem estar tudo quieto
; porque senão tudo sofre
; tudo sofre tanto
; é tanta dor
E é quase impossível não ferir, não ser ferido
; Há tanta insegurança
No existir, no viver
Há tanto sofrimento no mundo
Tanta dor
Apetece-me ficar assim, nem morto, nem vivo
Estático, imóvel
Onde nada possa perturbar
O meu isolamento
Ou a paz falsa que imagino encontrar nele
Assim muito direito
Muito alinhado
No meu túmulo
Fora do tempo
Não quero existir
Na verdade parece que me apetece que nada exista
Que nada tenha existido
Nunca
Deitado, hirto, imóvel, perfeitamente alinhado e estático
E a tranquilidade dum silêncio absoluto, imperturbado
Deitado como um fuso, numa cápsula do tempo flutuando no espaço sideral
Esticado e muito direito como num sarcófago
Parar tudo onde tudo parou
Reflectir inconsciente
Por uma qualquer eternidade
...
Porquê existir se é sempre melhor não existir
Porquê existir se há sempre dor e sofrimento
Porquê existir se não há nenhum sentido
Que eu consiga descobrir
Que justifique, que compense
Toda a dor
Sempre dor
...
É noite na cidade dos defuntos; na cidade onde nunca anoitece.
Na cidade onde é sempre poente,
Onde a luz nunca fere,
Onde nunca é dia nem noite
Neste momento invulgar anoiteceu.
E já nem o errar pelas largas avenidas apetece. Já nem o morrer um bocado em alguma das casas ou mansões que têm sempre as portas abertas apetece.
Quando esta noite acontece,
Quando esta rara noite acontece
Apenas apetece não ser
Não ser
Nunca
Nunca ser.
E, contudo...
I
Era sempre poente na Cidade dos Defuntos. Ou então crepúsculo, imediatamente a seguir ao Sol se pôr. A luz do dia oscilava entre poente e crepúsculo. Mas, essencialmente não havia tempo. Ou tempo era algo destituído de significado.
E não havia vento. Nunca o havia. Por vezes apenas uma aragem, uma brisa morna. Como a temperatura. Sempre morna.
Os movimentos eram apenas os suaves, os silenciosos. E os barulhos, sobretudo os ruídos, inexistentes, desconhecidos. Nada perturbava a paz que permeava o ar, que era o próprio ar; banhado sempre pela luz suave e alaranjada do poente.
Insectos não os haviam, não os poderia haver. Nunca os houvera nem haveria. De resto, passado, presente ou futuro faziam pouco sentido. A acção era vista como um todo e não importava o quando.
Na Cidade dos defuntos a maioria das normas e das regras, dos anseios e das barreiras, dos objectivos e dos deveres estavam mortos. Também não faziam sentido. Nem tão pouco as necessidades. Não havia necessidade de necessidades.
Repousava-se onde se queria. Caminhava-se por onde apetecia. Não havia portas fechadas. Estas ou estavam abertas ou apenas encostadas. Nunca fechadas.
Melhor do que caminhar, errava-se.
Sim, havia o grande cemitério do repouso ao lado da avenida.
Mas tanto fazia; podia-se lá repousar assim como na soleira de uma porta ou no interior de uma sala de uma qualquer casa que se escolhesse para morrer um bocado. Pouca diferença fazia estar vivo ou morto e não se fazia distinção entre uns e outros: os vivos e os mortos. Também se podia repousar em cima de uma campa ou no interior de um túmulo. Ou então morrer temporariamente, ou ficar em estado de letargia, ou dormir.
II
Ele estava desesperado, não sabia o que fazer. Nem conseguia pensar. Há muito que não conseguia pensar. Assistia à sua vertiginosa decadência, à sua ruína, e não conseguia pensar em algo para remediar a situação.
Sentia-se a desmoronar cada vez mais e sentia-se cada vez mais bloqueado.
Mas o pior de tudo era a sensação de ser ostracizado, descriminado.
III
Sinto-me prisioneiro de mim próprio. Oscilo entre a minha cama, a casa de banho e a cozinha. Oscilo entre dormir, comer, "drogar-me" com a televisão e dormir. Existência fútil, inútil e sem sentido. E sem esperança. Sou um-sem-esperança. Sinto-me trancado, bloqueado, incapaz de encontrar uma solução que me liberte. Não sei que fazer.
A fobia da sujidade possuiu-me e à minha volta quase tudo é sujo e poucas vezes saio à rua. E, no entanto, sobre os móveis, vivo rodeado de pó que não me atrevo a limpar tolhido pela repugnância. Todas as noites sou torturado pela presença de uma ou mais centopeias no meu quarto que mato em vão pois no dia seguinte lá surgem outras. Não sei de onde é que vêem!...
Sinto-me cercado, completamente sitiado por forças de bloqueio que me impedem de me realizar em qualquer sentido. Tudo o que tenho tentado fazer tem sido frustrado; a minha informática, a minha arte, a minha literatura... Já não sei que mais hei-de fazer. Não sei que hei-de fazer. A minha inspiração, a minha criatividade e inteligência estão a secar. Ou já secaram. Não sei que hei-de fazer. Estou bloqueado. Desorientado, Confuso, Baralhado. Tolhido.
Se, pelo menos, eu conseguisse ficar bem lúcido e inteligente, e ter um pouco de confiança também para vislumbrar um plano de ataque, um caminho, uma solução para sair deste pântano em que a inactividade se tornou uma obrigação face à desilusão.
O que é que se passa? Porque estou assim? Estou acabado? Porque não posso deixar de existir então? Porque tenho de continuar a viver para padecer apenas presenciando a minha decadência, o meu desmoronar imparável, a minha ruína?.. Se já passei o tempo das oportunidades então porque não posso ter a misericórdia de acabarem comigo? É isto o após juventude?.. a época da não-esperança?
Ou errar...
Ao longo da avenida, por entre os jardins calmos do Cemitério do Repouso, pelas ruas, pelas praças, pelo interior das casas...
Pois aí, na Cidade dos Defuntos, pelo menos não havia metas, desígnios, objectivos, posses, deveres, obrigações, ganhos, ou perdas...
IV
Perdi, fracassei, falhei, nas realizações desta vida!?!... Não pensei que isto fosse assim! Então, de repente, apercebi-me que já passaram todos estes anos e que a sociedade, 0 mundo, já fechou as portas todas! E sou isolado, descriminado, ostracizado. Impedido de qualquer realização! De repente é já demasiado tarde e o mundo acabou para mim e restam apenas a solidão, 0 abandono, 0 desprezo do mundo mesmo perante aquilo que de melhor faço como a minha arte, a minha investigação, a minha literatura... 0 mundo despreza tudo isso, todo o meu sumo, todo o meu melhor e remete-me para o campo de concentração dos falhados, dos que não têm direito a constituir família, dos que nao tern direito a uma profissão digna e a alguma qualidade de vida. Dos que passaram o prazo de validade. Dos sem-esperança. Dos que foram sentenciados a terem passado o prazo de validade (mesmo sem o terem) e que por isso apenas lhes resta padecerem pelos anos fora sem esperança de melhoria até que, um dia, a morte os leve. Condenados precocemente ao caixote do lixo por uma humanidade prepotente.
E a depressão instala-se e tolhe ainda mais os movimentos. Sente-se que já nem vale a pena explicar a alguém a nossa situação e o que sentimos porque nos invade o sentimento da inutilidade dessa acção. E depois, a pouco e pouco, descobrimos que já nem conseguimos explicar porque estamos assim e porque nos sentimos tão mal e porque sofremos tanto. Já não conseguimos explicar a natureza do pântano labiríntico em que estamos afundados. E depois já nem nos próprios fazemos ideia e não sabemos destrinçar o conjunto de coisas que nos afectam e cada vez ficamos mais enterrados na desorientação e no desespero. Pensamos que nada vale a pena, que não vale a pena analisar e explicar o conjunto de coisas que estão na base do nosso sofrimento e, a dada altura, já nem a nos próprios conseguimos explica-las. Mergulhamos cada vez mais em não distinguir senão uma amálgama das coisas que nos torturam, uma confusão do que nos faz sofrer tanto e ficar prostrados na inutilidade e na inacção.
O que me afecta tanto?
Já nem eu sei bem. Terei de fazer um esforço para destrinçar.
Afecta-me 0 facto de eu não ter conseguido até à data transmutar¬-me num ser incorruptível e imortal e isso constituir em si mesmo quase que uma certeza de que afinal esse meu sonho era impossível. Andei tantos e tantos anos a sonhar realizar algo que se me afigura afinal impossível! Que grande decepção, que desilusão!... Sempre imaginei que fosse algo muito difícil de atingir, mas não supus que fosse impossível. E afinal parece que não há volta a dar, ao invés de aperfeiçoar cada vez mais o meu ser terei de assistir à sua deterioração, à sua degeneração, ao envelhecimento, à decadência e à morte. Serei apenas mais uma vítima de uma sentença que tudo parece abranger. E todos os milhares de horas de estudo e de investigação, e das centenas de experiências, tantas delas dolorosas, que fiz com 0 meu próprio corpo e espírito, na minha luta pela transmutação parecem ter sido em vão. Quase tempo perdido!...
Foi 0 sonho de toda uma vida que caiu por terra.
E, de certo modo, apostei quase tudo num projecto que falhou.
Afecta-me portanto a inevitabilidade de que estou a envelhecer, a deteriorar-me, e de que envelhecerei cada vez mais. E de que tudo será cada vez mais negro. E isso é o pior de tudo aquilo que me tortura.
Afecta-me o facto de eu não ter cimentado uma carreira profissional concreta. Depois de tudo o que estudei, não ter, afinal, uma profissão digna, definida e aceite. De não poder ganhar 0 meu dinheiro e viver com dignidade.
Afecta-me a minha solidão e eu não ter constituído família. Sinto a falta de amor e a falta de família. Sinto-me só. Cada vez mais só.
Afecta-me eu não dispor de meios e de dinheiro para ainda constituir e suportar essa família.
Deterioração e envelhecimento;
Profissão, realização profissional;
Dinheiro;
Amor;
E Família.
Mas não tenho a certeza de serem estas as coisas que realmente me afectam. Poderá ser algo mais abrangente e que me escape.
V
Vagueio aqui pela casa antiga e sombria na qual só eu vivo com o meu guardião meio gárgula, meio lobo, um ser que eu próprio criei quando conclui que os outros seres lá fora... não valem a pena.
Desejo "não ansiar por companhia nem dos da minha própria espécie".
Já percorri o mundo e sou jovem, há muito tempo que sou sempre jovem, mas não sou um vampiro: essa raça parasitária de seres de carne sem vida, de sanguessugas de energia dos que a têm.
Dizem que sou belo e alto e, mesmo assim, se isso é verdade de nada me tem servido; estou só, estou sempre só. Não pratico o mal e a depravação repugna-me. Estou só, num mundo que não sinto como sendo o meu. A esperança, essa também já ficou pelo caminho. Bastar-me-ia apenas alguém até simples, agradável, meiga, amiga e verdadeira. Mas essas, sempre que as tenho conhecido e o interesse é mútuo, são de mim afastadas, como que sabotadas e nunca mais volto a vê-las... estarei cercado por uma força obscura que me asfixia, não permitindo que eu tenha direito a um pouco de felicidade?...
Vagueio por esta casa que provavelmente se tornará o meu túmulo, agora que fechei as portas a toda a gente, agora que contraí uma pneumonia talvez fatal que não medico por que acho que não vale mais a pena. E também não sinto vontade de me voltar a alimentar. Para quê? para prolongar ainda mais o suplício?...
VI
Como gosto de me deitar assim tão direito e esticado e me imaginar como morto no meu túmulo de pedra.
Como morto, não propriamente morto. Fora do tempo; por uma qualquer eternidade de não-existência.
Imagino-me no meu túmulo de pedra forrado a veludo negro através do qual não passa qualquer ruído; longe da gentalha barulhenta e zumbideira que não para quieta nunca. Apetece-me tudo parado, quieto, imóvel. Na tranquilidade do silêncio; na paz eterna.
Apetece-me saborear, imaginar, que nunca nada existiu, nem existe; nem eu. Que o sonho do universo foi apenas um sonho mau, um pesadelo conturbado e agitado; cheio de tanto sofrimento e dor...
; deixem estar tudo quieto
; porque senão tudo sofre
; tudo sofre tanto
; é tanta dor
E é quase impossível não ferir, não ser ferido
; Há tanta insegurança
No existir, no viver
Há tanto sofrimento no mundo
Tanta dor
Apetece-me ficar assim, nem morto, nem vivo
Estático, imóvel
Onde nada possa perturbar
O meu isolamento
Ou a paz falsa que imagino encontrar nele
Assim muito direito
Muito alinhado
No meu túmulo
Fora do tempo
Não quero existir
Na verdade parece que me apetece que nada exista
Que nada tenha existido
Nunca
Deitado, hirto, imóvel, perfeitamente alinhado e estático
E a tranquilidade dum silêncio absoluto, imperturbado
Deitado como um fuso, numa cápsula do tempo flutuando no espaço sideral
Esticado e muito direito como num sarcófago
Parar tudo onde tudo parou
Reflectir inconsciente
Por uma qualquer eternidade
...
Porquê existir se é sempre melhor não existir
Porquê existir se há sempre dor e sofrimento
Porquê existir se não há nenhum sentido
Que eu consiga descobrir
Que justifique, que compense
Toda a dor
Sempre dor
...
É noite na cidade dos defuntos; na cidade onde nunca anoitece.
Na cidade onde é sempre poente,
Onde a luz nunca fere,
Onde nunca é dia nem noite
Neste momento invulgar anoiteceu.
E já nem o errar pelas largas avenidas apetece. Já nem o morrer um bocado em alguma das casas ou mansões que têm sempre as portas abertas apetece.
Quando esta noite acontece,
Quando esta rara noite acontece
Apenas apetece não ser
Não ser
Nunca
Nunca ser.
E, contudo...
Atualizado em: Sex 2 Maio 2008