- Contos
- Postado em
Pêlo dos deuses
Maria Isabela estava concentrada no que fazia, em seu quarto. Era um cômodo simples, no segundo andar de um apartamento não muito novo, com pouquíssimos móveis. Se acomodava em uma cadeira giratória em frente a uma grande e antiga mesa de desenhos, com uma JBL GO tocando R&B, e uma caneca com café preto fumaçando.
O que combinava perfeitamente com o clima aposento afora, chuvoso, brisa suave soprando, tépida. Gotículas umedeciam o chão logo à frente das janelas em estilo oriental, teimosamente deixadas abertas. O bairro, mais além, estava silencioso, coisa anormal, já iam quase 09:00 daquela manhã de sábado escurecida pelas nuvens.
A moça ainda de pijamas, tinhas cabelos bagunçados e um ar sonolento. Trabalhava em um projeto arquitetônico, por puro prazer, e isto fazia do momento ainda mais gostoso. De súbito, a chuva amainou. Isabela, mesmo absorta, reparou, pois o barulhinho agradável dos pingos no telhado havia cessado, brevemente. Ela girou na cadeira, virando-se para o lugar de onde, segundos atrás, soprava o ventinho gostoso.
O timing foi exato. Pois voava à frente das janelas – ao sabor de sabe-se-lá-o-quê – um fiozinho roxo. Detalhista, poderia tê-lo identificado, mas a meia-sonolência a impediu de ver o minúsculo pelo indo em direção ao seu rosto. Somente sentiu algo, coçando ligeiramente os olhos. Voltou ao trabalho quando a aragem voltou e a chuva tornou a riscar o horizonte.
Assim que tocou o lápis, percebeu como era sem-graça o que estava fazendo. Não só aquilo, mas o quarto, o apartamento e o bairro também. A vida toda, enfim, não lhe passava de um grande enfado, pouco mais que um bocejo entediado e um suspiro. Empurrou para o lado as folhas de desenho, se empurrando fortemente para trás. Na íris, um brilho lilás despontava.
Levantando-se, foi até o armário simplório, espalhando roupas, procurando justamente as que raramente usava. Roupas claras e com motivos alegres iam-se acumulando num pequeno monte no chão. Encontrou uma calça preta, com rasgões na altura das coxas, meteu os dedos pelos buracos, aumentando-os. Vestiu. Colocou uma blusa escura com uma faixa de renda no colo, deixando a fenda dos seios em evidência. Completou o visual com maquiagem e penteado ousados (pelo menos para a “antiga” Maria Isabela).
Era uma mulher muito atraente. Desceu as escadas, exalando perfume doce, amadeirado, e cítrico no final.
Passou em frente a porta entreaberta de sua senhoria. Nunca estava fechada, pois emperrava quando isso acontecia. O que era potencialmente perigoso para uma senhora de 80 anos, já sem muita força nos braços. Maria, num lampejo violeta dos olhos, a cerrou totalmente. Foi em direção ao portão, trancando a única entrada e saída para o prédio todo, sorrindo desagradavelmente.
Tomou um ônibus para o centro da cidade. E sentia asco durante o trajeto. Das pessoas com aparência humilde, do “trocadinho” que praticamente atirou à mesa do cobrador. Puro nojo. Abafava ânsias de vômito quando percebia homens e mulheres lhe observando, encantados com sua beleza. Só conseguiu sorrir quando uma criancinha ousou encarar a fagulha arroxeada de seus olhos, logo recuando, assustada, cobrindo o rostinho com as mãos. Aquilo quase fez Isabela gargalhar.
Desceu da condução em um bairro “nobre”, com uma finalidade certeira na mente. Desfilou por uma alameda bonita. Detrás das árvores, vários prédios de arquitetura “futurística”. A intuição lhe orientou para um daqueles edifícios. Era uma construção não muito alta, mas cujo design destoava dos demais, pelo colorido do jogo de luzes e espelhos com angulações criativas. Ao lado, um homem fumava, encostado na parede, meio escondido por algumas palmeiras.
O cheiro não era exatamente agradável, mas a garota poderia afirmar que aquilo não era um cigarro qualquer. Olhou para ele, e algo no seu porte e no jeito como fumava, dizia que não era um “simples” funcionário naquele lugar. Esses detalhes, mais o extraordinário corte do terno, faziam com que ele formasse uma figura agradável.
Maria Isabela andou diretamente para ele. Com a voz pingando mel e veneno, perguntou – surpreendendo a si mesma - se estavam aceitando currículos. Sua voz desmerecia, como se ele não fosse da importância que suas roupas tentavam transparecer. Mas era um jogo que ele também sabia jogar. Sorriu, simpático, dizendo que a equipe já estava completa, seus olhos diziam “eu sei o que você veio fazer aqui”. Deu uma baforada. Jogou o cigarro fora, e a encarou.
Não demorou para ficar totalmente enfeitiçado por ela. Se ardeu em desejos, mesmo que as pupilas roxas da menina assustassem um pouco (ele preferiu não se deter naquilo).
Meia dúzia de palavras depois, tomando chocolate quente em uma copa empresarial metálica e fria, os dois trocavam informações e insinuações através de expressões corporais. Leônidas, o empresário, fazia uma verdadeira dança, se pavoneando, mas a coreografia era regida pelos cílios de Isabela.
O smartphone tocou. “D. Fátima” aparecia na tela do aparelho. A garota negava as chamadas, repetidas vezes, sorrindo ironicamente. O homem achou, com isto, que ela estava cada vez mais receptiva aos seus avanços. Ficou animado.
Pouco depois, ele sugeria um lugar de maior “privacidade” para conversarem. Ela não lhe deu uma resposta verbal, apenas acenando positivamente com a cabeça. Misteriosa. O coração dele pulsava fortemente. Dentro da luxuosa 4x4, com interior brilhante em madeira e couro claro, veio a sutil, e quase inofensiva, proposição de irem para a casa dele. Sugestão dela.
Porém, Isabela, logo em seguida, abanou a cabeça, negativamente, aparentando desconcerto e vergonha. Ruborizou. Ele não compreendeu bem o que estava acontecendo, ela agiu como alguém que tinha feito uma proposta ruim ou como quem percebera que tinha falado algo idiota. Ficou entre comovido e desconfiado. O que ela queria, afinal? Apesar do perigo que aquilo representava, não conseguia afastar a imagem daquela bela mulher enfeitando seus luxuosos aposentos.
A vontade de tê-la, como um objeto, de vê-la, como a uma obra de arte, de consumi-la como a um banquete, de tocá-la, como a um aveludado instrumento... aquilo anuviava seus pensamentos. Ainda assim, em um esforço de racionalidade, decidiu que a levaria para um de seus muitos imóveis, um apartamento não muito distante do escritório. Não era exatamente a “sua casa”, mas serviria.
Já no elevador, no afã de senti-la, investiu como um louco - retirando paletó, gravata e a camisa – beijando-lhe cada parte do corpo que podia alcançar, tentando despi-la também. Apesar do súbito avanço, ela não demonstrava resistência, mas também não correspondia às carícias. Ele parou, procurando a chave do apartamento.
Segundos depois, já de frente para a porta, tentava abri-la, às apalpadelas, pois seu rosto se ocupava novamente em beijar a garota. Ela tocou suas mãos – e ele quase explodiu com aquele toque – e o ajudou a abrir. Conseguiram juntos, entrando logo em seguida.
Na sala, Rafaela - esposa de Leônidas - em uma reunião de negócios, paralisava, de olhos arregalados. Os demais presentes não sabiam bem para o que olhar, se para a tragicomédia do homem seminu ou se para a bela garota de rosto cínico.
Foi o exato momento em que o minúsculo pelo saia do olho da jovem para a íris do homem ao seu lado. Com a roupa íntima à mostra, Isabela gritou como uma sonâmbula que, de súbito, despertasse.
***
Leônidas sentia nojo de tudo, e desprezo de todos. O terno, recolocado, lhe parecia de mau-gosto; a mulher, chorando, era patética; a garota, desesperada, lhe dava vontade de vomitar; os homens, curiosos, eram legítimos “bundões”... aquela vida, enfim, não lhe passava de um pesado e tedioso fardo, pouco mais que um bocejo de aborrecimento. Ele girou nos calcanhares, frio como gelo... nos olhos, um lampejo violáceo...
Atualizado em: Qui 25 Fev 2021