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Escambo

 É possível que todo prazer seja apenas alívio.
Assistir pela manhã o noticiário paulista na televisão só não é mais deprimente para Zími porque ele não está todos os dias sendo esmagado pela vida no transporte público, atrasado para o trabalho e morrendo dessa forma diariamente.
Sua formação em jornalismo não o colocou no lugar de nenhum dos repórteres bem pagos e bem alimentados da TV, que cobrem diariamente esse massacre contra a população e depois voltam para suas vidas saudáveis.
Por um lado, ele nunca almejou tal posição, e por outro sabia que nunca seria escolhido, e jamais competiria com gente tão obstinada pelo cargo.
É difícil para ele saber realmente se estar livre disso tudo ajuda ou atrapalha em sua própria batalha diária pela sobrevivência.
Já passou tempo suficiente na saga diária do transporte público pelas manhãs e considera uma pequena vitória ter se livrado disso para trabalhar em casa. 
Isso, no seu caso, tem também suas próprias complicações, como uma má remuneração, que apenas lhe proporciona certa abundância de mantimentos e recursos por alguns dias, que invariavelmente passam rápido demais, antecedendo a chegada de uma inevitável privação agônica.
Na maior parte do tempo, a economia forçada e as privações são como uma norma a ser derrubada com o acontecimento de algum tipo de milagre, para o qual a esperança de que aconteça é baseada na consciência de que nem ele e nem ninguém sabe realmente como será o dia seguinte na Terra.
É tudo especulação baseada numa probabilidade oriunda da repetição diária, que só pode ser quebrada por uma mudança inesperada que muitas vezes vem para piorar o que já era penoso.
É uma questão de saber lidar com a espera pela morte, olhando-a pelo seu lado glorioso, aquele em que toda a farsa da vida num país imundo se encerra, ainda que esse encerramento dê início a algo desconhecido.
Um ciclo de carência e satisfação, em que a carência é sempre mais duradoura.
E então era mais um daqueles dias em que o dinheiro estava bem curto e seria preciso escolher no mercado o que era mais básico entre uma série de ítens que também são básicos, e saber o que poderia ser deixado de lado naquele momento.
No caminho, a visão do notório crescimento da população sem casa, vagando no frio noturno, e uma sensação de descontentamento similar à das manhãs em que acompanha de casa o massacre do transporte público.
Uma estranha sensação de gratidão por não se encontrar em situação tão calamitosa, misturada com a indignação por aqueles que chegam a uma situação tão desesperadora. 
Zími abriu uma exceção naquela noite e parou para conversar com a vizinha que fumava parada na porta do prédio, quando ele voltava do mercado, com um quilo de feijão, uma dúzia de bananas e dois pacotes de aveia na mochila.
Por conta de algum desgosto ocorrido no dia anterior, a vizinha havia comentado que o estado atual da Terra é pós-apocalíptico.
Ela, assim como ele, era anti-social, mas Zími tinha estima por ela por conta de seu gosto musical. Ela vestia uma camiseta dos Buzzcocks.
Então ele contou que a caminho do mercado havia encontrado um sujeito que havia sido seu colega de escola mais de trinta anos antes, quando ambos estavam no ensino médio.
O sujeito era o melhor aluno da classe até que terminassem o colégio.
Ainda moravam próximos, mas depois de terminarem o colégio, nunca mais se encontraram, nem mesmo ocasionalmente em alguma rua do bairro.
Só que dessa vez, o ex-colega de escola estava passando um grande perrengue, que nenhum dos dois jamais poderia imaginar quando eram colegas na escola.
Era um cara que teria, no imaginário de quem o conhecia na década de 1980, um futuro brilhante, enquanto Zími seria ninguém, apenas um pobre e esquecido anônimo. 
A previsão em relação a Zimi se confirmou parcialmente.
O ex-colega de escola não o havia reconhecido, e Zími então deixou que ele contasse sua história a partir do momento em que perderam o contato, décadas antes.
Naquele momento, o ex-colega de escola, que era engenheiro químico e professor, estava desempregado, e estava sem gás e sabão para lavar roupas em casa. 
Vivia com a esposa e o filho no mesmo apartamento em que viveu com os pais quando era estudante do ensino médio.
Zími estava triste com isso, mas havia se acostumado com uma vida materialmente minimalista e achava que ter mais do que tinha era algo excessivo.
Sempre achou que aqueles que queriam a mais eram pessoas extravagantes e sem consciência, algo que somente com a pandemia foi reavaliado pela sociedade em geral.
Saber que a maioria das outras pessoas não se contentavam apenas com o suficiente o fazia pensar que toda essa gente poderia sofrer com isso com um agravamento mais brusco da crise econômica, exatamente como aconteceu na pandemia.
A pandemia parece ter fortalecido também a vaga noção que o povo tem sobre a necessidade de uma vida coletiva sustentável.
Falar sobre esse assinto antes da pandemia significava ouvir como resposta que ele era pouco obstinado.
Para Zími, a crise econômica era perene, algo inerente ao modo de vida a que a sociedade é submetida. 
Nunca entendeu como tanta gente acreditava em algum tipo de prosperidade baseada em meios não sustentáveis.
Não sabia no entanto que viveria para ver a conta chegar com tanta brutalidade.
Zími também tinha ensino superior completo, embora isso nunca tenha sido convertido em quantidades de dinheiro que evitassem uma vida apertada financeiramente.
O fato de viver sozinho era um alicerce para levar o modo de vida em que acreditava até quando pudesse.
Não havia para ele a responsabilidade de criar filhos, pois não achava que o mundo estivesse propício para isso.
Não saberia lidar com a condição geral que a paternidade demanda.
Não sabia lidar muito bem nem mesmo com a gerência das próprias necessidades pessoais, e não queria dividir isso com alguém um pouco mais materialista e influenciável pelos incessantes estímulos consumistas do mundo capitalista.
Isso, em parte, acontecia porque ele realmente não se apegava a posses inúteis de um mortal que ao morrer será esquecido em pouquíssimo tempo e não levará nada da Terra, para onde quer que vá depois da morte.
Havia conseguido o diploma de tanto ouvir de seu pai sobre a possibilidade de ficar numa cela especial no caso de ser preso por algum motivo.
Já o colega de escola, não usava drogas, não bebia e até que terminassem o colégio, era público e notório que nunca havia feito sexo.
Seus pais eram japoneses e mantinham tradições do país natal na casa em que viviam no Bixiga.
Era um sujeito idôneo, e sofria bullying, que na época (de 1986 até 1988) não tinha esse nome no Brasil. 
Para essa prática, havia não só a conivência como a ajuda de professores., que estimulavam os alunos com a criação de apelidos e brincadeiras que hoje em dia dariam cadeia e eterno repúdio.
O racismo, a xenofobia e a homofobia eram combustíveis para ações que destruíam vidas que definhavam em silêncio, sem que por parte das vítimas houvesse como ou a quem recorrer.
A realidade brasileira do período não ajudava em nada para que um jovem fosse feliz, independente da classe social em que vivesse.
Os pobres viviam o veneno de sempre e a minoria abastada ostentava sem qualquer limite para saciar uma necessidade de autoafirmação mal resolvida.
Tudo isso em meio a um ambiente de competição imposto pela necessidade de ‘vencer na vida’ ou ‘se tornar alguém na vida’.
Apesar de já terem passado mais de trinta anos, era um período histórico relativamente recente, quando nem ao menos se falava em sustentabilidade.
 Ao contrário, havia como nunca um estímulo mercadológico ao consumo desenfreado de produtos inúteis que viraram motivo de piada com o passar de algunss anos. Isso quando não entraram em desuso  por questões de preservação ambiental, quando essa consciência começou a surgir lenta e timidamente.
Zimi, que por conta de sua trejetória irregular e até certo ponto errática, era liso na arte do mangueio, e ficou curioso sobre a dificuldade do seu ex-colega de escola em abordar quem quer que seja na rua, para dizer que precisava de dinheiro para o básico no mercado.
O rapaz não era capaz de agir dessa forma na época da escola.
O encontro havia se dado próximo ao mercado em que Zimi compraria o que seu dinheiro permitisse, Para o japonês era um tipo de situação nova e embaraçosa.
E então, depois de contar essa história para sua vizinha, os dois entraram num acordo sobre trocar uma das caixas de aveia que Zími comprou por um maço de cigarros, já que a vizinha tinha comprado um pacote deles e precisava da aveia para fazer um bolo.
Feita a troca, cada um foi para seu apartamento encerrar as atividades daquele dia.

 

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Atualizado em: Sex 10 Jun 2022

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