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Inadimplentes

Tuco se suicidou. 
 Era vizinho de Zími. 
Encontravam-se eventualmente nos corredores do prédio e raramente passaram do “bom dia, boa tarde, boa noite”.  
Zími, no entanto, podia compará-lo a um repolho cheio de rancor. Ou a uma balança moral com defeito. 
Sabia que eram ideologicamente antagônicos. 
Vizinhos do prédio contaram a Zími sobre a morte de Tuco pouco depois da polícia científica deixar a garagem do prédio. 
O que havia de consenso nas diferentes versões dos vizinhos sobre o fato era a ruína financeira de Tuco, que o atormentava. 
 Ele jamais seguiu a lógica minimalista de Zími, que pregava viver com o suficiente e poupar quando possível. Nem poderia, pois era divorciado com dois filhos, enquanto Zími era solteiro e sem filhos. 
Tuco não ostentava grandes bens ou uma vida cheia de conforto para que alguém pudesse supor que tivesse dívidas insolúveis. Talvez esse fosse o motivo de seu discreto desespero. 
Ele deixou duas crianças órfãs, sócios desesperados em meio a negócios escusos e um apartamento vago no prédio. 
Os filhos viviam com a mãe em outro lugar. 
Zími ouvia Tuco dizer sobre si que era um conservador capitalista convicto, em rodinhas de vizinhos na frente do prédio. 
Tuco tinha quarenta e três anos e Zími tinha quarenta e oito, mas Tuco parecia ser mais velho, tanto na aparência física como na parte comportamental. 
Zími pensava no que poderia significar, para Tuco, o termo ‘conservador’.  
É impossível que haja qualquer progresso sem o desvio da norma, então esse foi provavelmente um ponto em que a cabeça de Tuco  fundiu, e sua ideologia conservadora finalmente se revelou inviável. 
Era agora apenas a lembrança de um repolho rancoroso que não lidava bem com a verdade descoberta tardiamente e não suportou a sensação de ser enganado até uma idade madura. 
Ele foi enganado pela falsa ideia de que havia para ele alguma perspectiva de prosperidade, em detrimento à qualidade de vida de outros.  
Para ele a competição era necessária, e a desgraça de muitos era necessária para o triunfo de poucos. Ele próprio nunca chegou a triunfar em riqueza material, como sonhava. 
Nunca imaginava uma prosperidade comum, pois tinha inimigos imaginários que o abalavam muito, especialmente no auge da crise sanitária. 
Um negacionista amargurado, inflexível para mudanças coerentes de opinião, sempre implantadas por lavagem cerebral de fanatismo religioso. 
Tuco ,de acordo com as pessoas mais próximas a ele, estava afundado em dívidas, e defensor ávido do capitalismo, morreu na ratoeira do sistema que defendia. 
Alguém poderia atribuir à sua morte algum drama passional e não financeiro, algo que só piora o quadro deixado pelo infeliz. 
No entanto, também não ostentava uma vida de riqueza ou diversão suficientes para justificar tamanho desespero financeiro. 
Morava num conjunto com 48 quitinetes, e talvez isso fosse degradante para seus delírios de pobre capitalista, talvez megalomaníacos. 
Os pesadelos relativos a problemas financeiros abalam todos os setores da vida, e o amor familiar é o setor mais castigado.  
No caso de Tuco, isso já não existia mais, a partir de um divórcio atribulado. 
Disse a Zími certa vez, numa conversa rápida e aleatória, que um homem pode ser feliz com qualquer mulher, desde que não a ame. 
Da porta de Tuco vazava o som de sucessos popularescos contemporâneos com conteúdo sexista, machistas em linguajar grotesco.  
O pequeno entusiasmo que o fazia seguir adiante era obtido através de pastores picaretas, políticos, televisão e outros escapismos. 
Ele morreu antes que Zími lhe perguntasse quem era a vizinha nova que ouvia Throwing Muses de madrugada. 
Zími nunca perguntou porque faltava assunto entre eles para que uma conversa se aprofundasse a ponto de oferecer essa oportunidade.  
Falavam entre si apenas o imprescindível., mantendo certa cordialidade de vizinhos. 
Tuco passava muito tempo na frente do prédio fumando e aparentemente pensando, e conhecia os moradores.  
Alguns paravam para conversar, os que seguiam a mesma linha ideológica de Tuco. Eram esses os mais perplexos com seu último ato. 
Certa vez, quando se encontraram numa agência bancária, Tuco disse a Zimi que era melhor ter uma renda permanente do que ser fascinante. 
Zími considerou apenas que a fase atual do país e do mundo, com guerra, peste e violência, além de ameaças fascistas, estivesse de acordo com a condição que Tuco idealizava, e por isso também ficou um pouco surpreso com o suicídio. 
O fato é que dada a sua ideologia de vida, estava individualmente derrotado no placar geral. 
Apesar disso, era surpreendente para Zími que Tuco não estivesse mais disposto a aguentar mais tempo, só para ver o que aconteceria com o mundo. 
O ambiente em que viviam tinha um efeito completamente diferente sobre cada um. 
Apartamento pequeno, mais fácil de limpar, bom para Zími trabalhar em seus freelas, salvando estudantes preguiçosos com a produção de trabalhos acadêmicos. 
Certo sufoco financeiro, especialmente na semana que sucedia o pagamento do aluguel, mas levando em conta que era solteiro e sem filhos, as dificuldades eram reduzidas. 
O que sobrava eram os perigos da existência, aos quais todos estão submetidos. 
Uma visão do desconhecido como perigoso, levando em conta os rumos obscuros a que bilhões são submetidos de acordo com interesses de poucos. 
Zími acreditava que se uma parcial do seu placar na vida lhe fosse mostrada naquele momento, não estaria ganhando, nem perdendo. O que importava era o caminho. 
Consciente de sua finitude, queria ver até onde podia chegar, com suficiente senso de ridículo para não passar vergonha por atitudes estúpidas para sua idade ou para alguém que preze minimamente por um mínimo de classe na existência. 
A morte de Tuco fez com que Zími revesse o que significa não estar mais aqui enquanto os ônibus continuam passando, a padaria funcionando normalmente e o esquecimento das pessoas que morrem sendo acelerado pela bizarra banalização da morte imposta a todos nos últimos anos. 
Para Zími, a maior das loucuras é saber que o mais louco ainda está por vir, provavelmente de surpresa e para todos que estiverem vivos. 
O apartamento de Tuco foi ocupado em menos de uma semana, por uma família peruana de quatro pessoas, entre eles um bebê, dividindo o apartamento de solteiro. 
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Atualizado em: Dom 2 Out 2022

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