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Um desconhecido

   Aos trancos no teto, o antigo ventilador girava ruidosamente, executando uma lenta e hipnótica cantiga que acalentava a moça sentada sozinha ali, no canto da sala. O barulho não chegava a incomodar. Ao contrário, afastava pensamentos confusos e perturbadores. Após alguns momentos de solidão modorrenta, juntaram-se a ela mais meia dúzia de pessoas que foram se acomodando nos poucos assentos do cômodo dispostos ao redor da mesa central azul de madeira já desgastada pelo tempo. Chamou-lhe a atenção uma mulher loura, alta, elegante que destacava-se no grupo. Entraram calados e assim permaneceram, para desagrado da garota, que procurava sofregamente rememorar o que fazia naquele lugar. Caralho. Que ressaca. Tentava em vão recordar seus últimos acontecimentos, quando alguém lhe dirigiu a palavra.

   - Você é... Pascuala Melendez, certo? - disse o homem que sobrou em pé, branco como vampiro, bloco de anotações na mão, cabelo ensebado repartido ao meio. Cássio usava uma camisa verde claro surrada enfiada dentro da calça de brim, num esforço evidente de aparentar elegância e tinha um cacoete irritante de lamber as pontas dos dedos a cada minuto, produzindo sonoros muxoxos.

   - É, sou eu. E pode me chamar de Mel. - respondeu, dando um demorado bocejo. - Foi você que me chamou aqui, né? Qual é o problema? Ai, minha cabeça...

   - Escuta, eu vim falar do Jafet. Ele...

   - Olha, - Mel interveio - o Jafet tá sumido tem cinco dias! Desde o acidente ele não me procura. Me disseram que ele quase morreu, mas agora tá bem, tá recuperado dos machucados. - Ela estava incomodada por estar ali respondendo a perguntas de um estranho, mas, assim mesmo, sentia-se compelida a falar. - Nossas últimas conversas foram uma merda, eu sei, a gente tava brigando muito e o cretino um dia até me deu as costas e foi embora! Já tinha um tempão que a gente não se divertia junto, ele não queria sair, tava sempre inventando um pretexto, dizendo que precisava arrumar os livros dele, ajudar a vó a consertar umas prateleiras, limpar o motor do carro. Pô, pra cima de mim? Tava ficando chato, cara, quero dizer, eu sou bonita, sou jovem, eu tenho planos, eu quero dividir as coisas com alguém que seja meu parceiro. Eu achei que era ele. Achei que a gente era um time. Achei que a gente ia ficar junto pra sempre e ficar na boa, sabe? Com viagem de lua-de-mel todo ano, carnaval, passeios, sexo, flores, cinema, filhos, namoro, essas coisas que você vê nos filmes... E agora ele simplesmente... caiu fora...

   Mel era dona de uma beleza que transcendia épocas e modas. Tinha expressão forte, pele branca, cabelos ruivos acastanhados compridos, olhos verdes penetrantes, dentes perfeitos, voz doce e suave, que, no entanto, não foi suficiente para amenizar o notório desconforto que sua tagarelice causava nos presentes.

   - É, é... E você brigou com ele dentro do carro logo antes da batida, não foi?

   Uma onda repentina de indignação transfigurou o belo rosto de Mel. Ela franziu a fronte, adotando uma postura de contra-ataque, mas não conseguiu se levantar e arrefeceu.

   - Você tá dizendo que eu tenho culpa do acidente?! O Jafet tava bolado com um monte de outras coisas também, cara! Ele só não tava me contando! Tô te dizendo, pô, a gente não conversa direito há um tempão! Já sei! Foi o pai dele, né?! O pai dele que mandou você aqui! Eu não tenho nada a ver com o acidente. E não é a primeira vez que ele tem que pagar um para-choque amassado! - Mel fez uma pausa e olhou a sua volta. Cadê a loura? Ficou intrigada com as outras quatro pessoas sentadas assistindo ao seu destempero. - Eu não tô me sentindo bem. Tô meio tonta.

   - É, eu sei. Isso já vai passar. E, Pascuala...alt

   - Me chama de Mel, por favor.

   Cássio respirou longamente, observando a garota.

   - OK. Mel. Eu entendo o seu estado e sua falta de clareza, mas não foi apenas um para-choque. O carro não tem mais conserto. A seguradora declarou perda total.

   O entrevistador deu à Mel alguns segundos para absorver suas palavras.

   - E duas pessoas foram atropeladas. - Cássio examinou a expressão de choque nos olhos perplexos. - E os dois morreram.

   Mel sentiu seu estômago revirando no ventre e teve fortes náuseas. Não se lembrava daquilo. Em sua mente, tudo não passara de um desagradável contratempo. Duas pessoas?! Puta merda! Pu-ta mer-da!!

   A moça, mesmo em pânico, controlou o vômito e preferiu permanecer em silêncio.

   - Olha,... Eu... Eu preciso perguntar uma coisa. Naquela terça-feira de manhã você tinha ido ao banco resgatar umas aplicações.

   - É... Eu fui lá sacar uma grana. - Mel murmurou, ainda se recompondo da revelação intempestiva. - Eu ia dizer pro Jafet pra gente ir pra algum lugar qualquer longe daqui. Pra gente começar a ter nossa vida... feliz...

   - E onde tá esse dinheiro?

   Mel deixou as lamúrias de lado.

   - Isso não é da sua conta, cara! Você é o quê? Polícia? Eu vou sair daqui! Eu quero falar com o Jafet! - Mel sentiu a tontura aumentar e sua tentativa de se levantar da cadeira foi novamente frustrada. - Gente, me ajuda! Me tira daqui!

   Cássio levantou-se e imobilizou Mel pelos ombros.

   - Mel! Mel! Se acalma! Se acalma. Ele tá aqui. Ele quer falar com você.

   Os dois então olharam para a porta que dava passagem ao visitante. Jafet era alto e muito magro. Seus olhos grandes castanhos eram desproporcionais à diminuta cabeça, mas a expressão do semblante seduzia facilmente a quem estivesse a sua volta. Mel brincava com essa habilidade interpessoal do namorado, recitando a canção que marcara seu primeiro encontro. "It's a kind of magic."

   O rapaz adentrou a sala em uma cadeira de rodas exibindo gesso nas pernas e bandagens nos braços e no tronco, que dificultavam sua respiração e deixavam um travo de dor em sua face. Pendurada no espaldar do aparelho estava uma lembrança de sua última viagem juntos. Na mochila comprada no Piauí, no ano anterior, jaziam os dizeres "Eternos namorados". Com surpreendente vigor físico para alguém na sua condição, Jafet rolou pouco mais de metro e a garota pode notar as extensas cicatrizes que circundavam os olhos e a boca do amado. Ele parecia febril.

   - Oi, Mel. Relaxa, eu tô aqui.

   - Jafet! Eu não tô legal. Vamos sair daqui?

   - Daqui a pouquinho, Mel. Agora eu tô com um problemão e preciso da sua ajuda.

   A moça ainda tinha lágrimas no rosto.

   - O que que é?

   - Preciso da grana que você pegou no banco. Eu tenho que acertar umas coisas.

   - Acertar o quê? Esse dinheiro é pra gente cair fora dessa cidade! É pra gente ter nosso canto fora daqui!

   - Mel, me ouve. Essa grana vai ser decisiva agora. Confia em mim.

   A moça fitava-o com dúvida estampada na face, mas a vontade de acreditar no namorado era irresistível.

   - Tá bom... Tá no... Tá no meu armário da faculdade. Cadê minha chave?

   Mel teve ímpetos de vasculhar os próprios bolsos, mas sentia-se instável e fracassou em seu intento.

   - Não sabia que você tinha armário, querida... - O jovem enfermo pegou a mochila e revolveu seu interior. - Aah!... É essa chavinha aqui no molho? Eu achei que era só enfeite! - Ele riu gostosamente. O seu aspecto doentio desaparecera de repente.

   - É essa mesmo. E por que meu chaveiro tá com você?!

   Jafet não se conteve e o sarcasmo explodiu em seu rosto.

   - Por isso que eu não consegui achar nada na sua casa! Revirei cada buraco daquele cuxixó e não encontrei porra nenhuma! - O rapaz começou a rir em delírio. - Você é esperta pra caralho, hem?!

    - Você foi lá em casa sem falar comigo? Pra pegar o meu dinheiro?

   - Ah, Melzinha...

   - Me responde, porra!

   Jafet continuou seu discurso com um torturante ar de deboche.

   - Você ainda não entendeu, né, gata? Eu já tava de saco cheio! Era toda hora "precisamos mudar!", "precisamos ser felizes!" - Repetira as frases com voz aguda de zombaria. - Eu não queria mudar nada! Pra mim já tinha dado! Eu não queria mais nada contigo! Você não enxergava! Eu já não aguentava mais nem o seu cheiro, mulher! Eu tava de olho era na grana! E eu quase morri naquela porra de acidente! Que vacilo! - O olhar perplexo de Mel chegou, por um breve momento, a comover seu algoz. - Deu um trabalho da porra armar essa reunião pra você me dizer onde tava o dinheiro! Vou ter que pagar os tubos pra esse cara aqui, ó! - E apontou o dedo para Cássio, que assistia à cena com a indiferença de um mestre do pôquer.

   A garota, num estado de quase catatonia, não conseguiu se defender.

   - Ah, Pasquala! Você detesta esse nome, né, Pasquala? Pasquala! Pasquala! - Ele parecia insano. - Só mais uma coisa, Pas-qua-la! - Os olhos do agressor faiscavam de mórbido prazer sádico. - Você morreu naquele acidente! Nem sua mãe reconheceu você misturada na lataria! Já era! Essa merda toda aqui pode acabar! Tchau, gata!

   Ela contorceu o corpo, chorando e sussurrando qualquer coisa ininteligível, quando, em uma violenta enxurrada, as lembranças invadiram sua cabeça confusa. A raiva. Você não vai me deixar, Jafet! Tá me ouvindo?! O descontrole. Seu babaca! Aposto que tá comendo aquela vaca! O silêncio. Não vai se defender?! É bem típico de homem mesmo! Vai ficar com essa cara de bunda aí, olhando pra mim?! O inesperado. Tá maluco, porra?! Jafet, abre o olho, Jafet! A gente vai morrer, caralho! O desespero. Nããão! Jafeeeeet!... A dor. Amor... O que você foi fazer, querido?... A desilusão. Jafet...

   A mulher loura não conseguiu mais manter a conexão espiritual e Mel libertou-se no éter. Imediatamente tomou a posição fetal, no canto da sala, protegendo instintivamente a cabeça com os braços.

   Jafet estava eufórico e moveu-se até a porta, aguardando Cássio para concluir a negociata com o grupo de médiuns.

   Ali perto, invisíveis ao patife, duas jovens mulheres com o cenho fechado irradiavam ódio, para espanto dos clarividentes, que continuavam calados. Embora tivessem a aparência bastante alterada, Mel reconheceu ambas das fotos do acidente. Assemelhavam-se a espíritos malignos de filmes sul-coreanos.

   Uma delas, olhou diretamente para Mel e seu coração foi tomado por desespero quando o espectro lhe disse com convicção espantosa:

   - Ele vai sofrer. Eu prometo.

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Atualizado em: Qui 16 Fev 2012

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