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DOUTOR

Certa vez cheguei na Lapinha do Riacho Fundo no meio de uma tarde ensolarada de março. Pouco depois de passar pelo gramado de peladas ao redor da capela, recebi recado do Donério, meu primo, solicitando que fosse ao seu encontro, tinha pressa de conversar comigo. Mudei o rumo e fui atendê-lo antes de chegar em minha casa. Como em todo lugar pequeno, na Lapinha não era diferente, todos se conheciam. E com uma particularidade, todos éramos parentes; só me faltava morar mais por lá.

            Nessa época Donério morava na casa do Lavinho, casado com a Donita. Sessentão celibatário e renitente, foi o último a abandonar os escombros da fazenda do Leonel, seu pai, meu tio-avô.

            Entrei na casa e fui direto ao seu quarto, que dava para a sala, onde ele repousava recostado na cabeceira do catre. Cumprimentei-o alegre. Mesmo com o semblante amarfanhado pelos dias passados na cama, mostrou uma expressão de alento com minha chegada; era como se eu lhe estivesse lhe fazendo um bem danado. Alegria contida, encetou desculpas como se me importunasse.

-        Esqueça disso, Donério. Vamos ao caso, estamos aí.

            Então, sem embargo nem perguntas, começou desfiando seu sofrimento, tal como qualquer doente diante do médico. Reclamou de dores e incômodos – doía tudo daescadeirapara baixo – dificuldade para urinar, dormência e inchaço dos membros inferiores, sacrifício para andar, não havia posição que o aliviasse das dores. Enquanto falava ia mostrando as partes afetadas, espantei com o volume da inchação – compreensível o mal estar que aquilo lhe causava. Já tinha bebido todo tipo de chá que ele sabia, mais os chás de tudo que lhe diziam ser bom; nada de melhoras.

            Entremeava a conversa com lamentos por não poder cuidar da horta, sua principal ocupação e atividade para ganhar o sustento. Abruptamente, encerrou a história com uma pergunta incisiva:

Minha situação é essa, o que é que você pode fazer por mim?

            Antes de responder, divaguei o pensamento me indagando sobre o que eu poderia fazer pelo Donério neste lugar, distante de tudo. O pensamento navegava em busca de exemplos semelhantes. Nem sempre é vantagem morar longe do burburinho das cidades, tudo tem seu preço, mesmo que neste paraíso encravado na Serra do Cipó.

            Ah, se eu fosse médico! Matutava.

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            A serra é plena de vales bonitos, muitos, este um deles. Paisagem de difícil acesso, suas dificuldades fazem a vida ser diferente e fascinante. Vivemos espremidos entre duas vertentes bem definidas, uma delas um paredão bem a pique, coberta por vegetação verde azulada; na baixada floresce a bucólica e esquecida Lapinha, lugar onde mamãe nasceu e viveu até os nove anos; berço de meus avós, bisavós e mais avós que aí viveram até o dia do túmulo.

            Para chegar de carro na Lapinha, trilhava-se por u’a malcuidada estradinha, só transitável poucos meses na estação da seca. Para piorar as coisas, naquele ano as chuvas caíram sem piedade e acabaram com o pouco restante. Aqui e acolá, alguns traços de caminhos cobertos de areia branca levavam ao Riacho. Simplificando, nos encontrávamos nesse lugar lindo, ermo e isolado por onde nunca passara um médico, nem com espingarda a tiracolo à caça de perdizes e codornas. É aí que estava meu primo lapinheiro quebrantado, o dobro de minha idade e por quem tinha muita admiração. Ressabiado, olhos puxados a oriental, cabelo escovinha e disposto a mais ouvir do que falar, de mim aguardava uma resposta.

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            Sobre sua personalidade, eu lembro muito bem de um dia que chegou em nossa casa no Riacho. Após os cumprimentos, desatou um rolo de brim cáqui da garupa da mula e encomendou a mamãe, sua prima e costureira, para que fizesse tudo em ternos para seu uso. ‘Carça e paletó, Vina!’Ela estranhou a encomenda. Fez-lhe ver que seria muita roupa igual, e tudo amarelo polícia... Não se vergou aos argumentos.

      Eu gosto da dureza do cáqui, essa é a diferença.

      - Mas até para ir à igreja?

            Semanas depois recebeu seus onze ternos, calça e paletó de dois botões para os dias de missa – no Riacho acontecia poucas missas durante o ano, e menos vezes o vimos usando seus ternos – dos retalhos sobrantes, mamãe entregou-lhe sete casquetes. Estes sim, usava sempre.

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            Estávamos no quarto, o enfermo e eu. Impossível forçar Donério a viajar a cavalo ou a pé, uma imprudência descabida, talvez fatal, fora de cogitações. O carro ficara do outro lado da serra. Deixá-lo ali ao sabor de sua esperança nos chás, seria condená-lo ao abandono, uma omissão. Trazer um médico? – nem pensei nessa solução. Em princípio porque nos dias que corriam já não havia nenhum daqueles médicos que topavam cavalgar léguas para atender um enfermo. Médicos já não mais viajavam a cavalo para atender doentes; tampouco encontraríamos algum para buscar até onde estava nosso paciente, muito impaciente.

            Quanto a mim, não sou médico nem curandeiro, não sei nada de medicina, era apenas o homem da hora naquele lugar. E naquele momento havia que considerar uma realidade: olhando em volta, vi que a maioria das pessoas tinham poucas letras ou nenhuma – o mais que sabiam da vida é o acumulado pela experiência no dia-a-dia.  Nesse quadro, qualquer um que tivesse lido um pouquinho mais tinha a obrigação de enxergar um pouco além da ponta de seu nariz. Analisando a situação,sobroupara mim.

À primeira vista, pareceu-me que o doente apresentava um problema renal, ou talvez esse negócio de próstata. Hipóteses. Como e por onde começar? Não sei, mas...

Donério, responda-me! Antes de adoecer você vinha sentindo assim, digamos, mais cansaço quando de suas idas e vindas até a horta? Não confundir ‘até a horta’ com ‘artéria aorta’.

Não pareceu que tivesse entendido meu fraco trocadilho, porém, mais por cortesia do que outra coisa, forçou um risinho amarelo, bem característico de quem pouco entendeu, mas respondeu-me:

Cansaço mesmo, não. O que sinto é um peso danado daqui prá baixo, parece quetoucarregando meia carga de rapadura amarrada na batata de cada perna, muita dificuldade pra andar, uma luta danada práchegar até nabananeira...Acho que o principinho de tudo tá nessa inchação. O que é que ocê acha?

Ham, ham..., deve ser!

Concordei sem elucidar sua dúvida. Continuei.

              Você faz uso constante de algum remédio?

              Não, nunca tomei remédio de farmácia, nem quando era rapazote e abexigame pegou. Só bebo chá dosnosso.

             Antes, você sentia pinicação ou formigação nas pernas, digo, mais do joelho para baixo? – Não sei por que fiz essa pergunta.

             Não, num sinto nada desse negócio.  

             E o sono, como é que tá? Tá dorminhoco, assim..., além do normal ou desanimado para levantar da cama?

             Tô dormindo pouco. A bem da verdade, quase nada; passo a madrugada pensando na vida, meus canteiro de cebola cheio de mato, a horta toda precisando de capina e eu desse jeito, sem condição de fazer nada! O alho dapaixão,está morrendo por falta de trato, lamentou; se Deus quiser, na primeirachanchaeu desço prá lá e remato o serviço, fez pequena pausa – mas enquanto eu tiver desse jeito, fica sem jeito, né!

Com base em nosso diálogo, deduzi pelo método doachismoque Donério não devia ter pressão baixa, o que a ser verdade facilitaria bastante minha tarefa. Deixando de lado essa hipótese, pensava sobre a possível causa do mal: ‘problema renal ou de próstata? Sei lá!’

O paciente olhava fixo para mim, mudo e expectativo. Jogara sua carga de esperança sobre meus ombros. Tateando sob a neblina da minha ignorância perguntei-lhe:

              Quantas vezes você levanta de noite para urinar? A urina sai com facilidade ou dói na hora?

              Duas ou três vezes. Um mijinho! Sai um tiquetinho de nada e dói muito no...no..., ocê tá entendendo, né?

               Han, han!

Sem excluir o possível problema de próstata, do qual não tinha a menor ideia e nem sabia onde se escondia essa ingrata companheira dos homens sessentões, parti direto para atacar o aparentemente menos difícil. Guiado pela lógica do atrevimento, abandonei a tal de próstata e enveredei pelo renal com o seguinte raciocínio: ‘se for este o problema, é possível que a gente consiga reduzir o inchaço das pernas, a partir de então tudo fica mais fácil. Ele poderá descer a serra em busca de recursos médicos. Não vou abandoná-lo como está. Quanto aos sintomas, parece-me que atacando moderadamente o renal, euacho –sempre oachismo –que há possibilidade de êxito, mas com cuidados para não provocar reação colateral que venha a prejudicar seu sistema cardio-vascular’.

            No Exército, quando, de noite, a gente corria para a enfermaria reclamando dequeimação na boca do estômagoou algumdesarranjodaí para baixo, lá vinha o Cabo Enfermeiro com o ‘coquetel’: em meio copo d’água, jogava vinte gotas de ‘Gotas Amargas’, vinte de ‘Elixir Paregórico’, mais vinte de ‘Extrato Hepático’ – cada golfada do conta-gotas equivalia a cinco gotas jogadas dentro do copo, experiência pura. ‘Se não melhorar, amanhã você vem ao médico’. E em seguida completava: ‘Menos gordurão por dois dias, meu!’–  Gordurãoera o bandejão do rancho. Suas palavras para encerrar o atendimento coincidiam com o que a gente sempre ouvia: ‘dieta e repouso curaqualquer doença!’

            Vamos fazer alguma coisa, Donério.

            Lembrando daquela recomendação, dei uma lapidada no que dela me restava e recomendei ao meu paciente: 

            Primeiro a alimentação: reduzir o sal, trocar a gordura de porco por óleo de soja, reduzido à metade; também reduzir o açúcar pela metade no primeiro dia. A partir do segundo dia, reduzir o açúcar e o óleo à ‘metade da metade’ e, do quarto dia em diante, quase zerar o sal e a gordura. Quanto ao açúcar, mantém só um tiquinho. Toda vez que sentir sede, tome o chá de quebra-pedra com folha de abacate, como já vem fazendo – segundo voz corrente, o quebra-pedra é diurético e a folha de abacate é de naturezafresca,além de levemente diurética – Se não fizer bem aos rins, mal não faz. Acho que é isso.

            Depois de cercar o sal, o açúcar e a gordura; parti para atacar de frente a aparentecausa do mal.

            Escute aqui, você sabe que eu não sou médico, só quem é médico é que pode receitar remédios, mas como por aqui não existe nenhum, eu vou teindicarum remédio. Uns comprimidinhos, somente, quando ele chegar você vai tomar a metade de um comprimido a cada 24 horas; não se preocupe com o tamanho dele, nem com a dosagem, o diabinho é pequeno mas resolve! Só pode tomar meio por dia, no total serão dois comprimidinhos para quatro dias de tratamento. Não aumente a dose em hipótese alguma, entendeu? Continue com o chá toda vez que tiver sede.

            Confabulando com meus botões, cheguei à seguinte conclusão: se o Donério nunca tomou remédio sintetizado em laboratório, então seu organismo não está viciado, deve ser muito sensível ainvasõesquímicas; portanto, tudo indica que a dose daria bom resultado.

            Pronto. Agora eu preciso de um portador para ir comigo até o Baldim; lá eu compro o remédio e mando para você, tá bem?

            Tá bão!

            Zé Antônio, um rapazote seu sobrinho, logo se apresentou para passear de carro. Deixei Donério recostado no seu catre e só então fui cumprimentar a prima Donita, seu marido Lavinho e os mais primos. Ele, Lavinho, fora companheiro de papai nas caçadas serra afora. Na cozinha tomei uma caneca de café de rapadura. Lavinho se encarregou de levar minha carga lá em casa, distante meia légua, enquanto eu já providenciava a volta, tinha pressa. Teríamos que ir buscar o tal remédio lá no Baldim porque no Riacho não havia farmácia.

            A distância da Lapinha ao Riacho está em torno de uns sete quilômetros. A primeira metade, a cavalo, compreendia subir a serra e virar até o sopé, a cavalo; o restante venceríamos de carro. Do Riacho a Baldim eram mais ou menos trinta quilômetros de estradas esburacadas, dois córregos de vau para atravessar de fusquinha, a água quase encobrindo os pneus – motor quente, se pega água, pode trincar. Problemas. A solução era passar disparado para não dar tempo de a água molhar o motor. A vida no sertão.

            Já estava montado e pronto para partir. Bateu uma preocupação, apeei e voltei para mais uma recomendação:

            Donério,  não se assuste se depois que tomar o remédio der muita vontade de urinar, e a toda hora. Isso é a reação natural do remédio, sinal de que está funcionando, ouviu? Quando a perna desinchar, desce pro Riacho e vai procurar um médico para tratar.

            Diziam que a Prefeitura do Riacho havia contratado um médico que a cada quinze dias atendia no Posto de Saúde, na sede do município.

            Não confie tanto, ele pode não vir; mas você faça o possível para ir. Adeus, Donério! Mês que vem estou de volta.

            Nessa época eu morava em Brasília, para onde viajaria naquela noite, ônibus das 22h15; ofusquinhaficava guardado em Beagá. Novamente encarapitei no ruço, partimos. Há muito o sol tinha tombado do meio dia. Então, sem que tivesse ido ver meu cafezal em flor e coisas mais, estava partindo de volta levando Zé Antônio para trazer o remédio. A situação do Donério exigia cuidados, não podia perder tempo, mudou tudo. Tinha muito chão pela frente, era preciso ser esperto para ter tempo de comprar o remédio em Baldim e levar o portador até o entroncamento de São José do Almeida onde ele embarcaria na jardineira do Riacho à noitinha, vinda de Belo Horizonte.

            Menos de uma hora depois de deixar a Lapinha, entramos no curral da fazenda do Zé Preto, os cavalos suados, arquejavam.

Só bambeia a barrigueira e solta o rabicho! Gritei pedindo favor ao meu amigo Zé Preto, companheiro desde nossos tempos de infância. Para não ficar só nisso, completei: estamos com pressa,correndo da polícia.Fala para a Geni que o café fica prá depois!

            Pulamos no carro e arrancamos. Olhei o relógio por intuição, nem sei que hora marcava. Pouco importava, desde que a gente continuasse correndo para dar conta do recado – sol e relógio não esperam ninguém. Mais uma hora e pouco sem parar, estava eu batendo a poeira da botina na calçada da farmácia.

            Entrei junto com um ‘boa tarde’. À resposta do farmacêutico, fui ao que me interessava.

      - O senhor tem Lazix?

      Tenho. – respondeu o boticário.

      - Quero uma caixa. – disse-lhe sem fazer curvas.

            Ele me olhou perscrutante e perguntou:

      É para o senhor?

      - Não, é para meu primo.

      A receita, por favor?

      - Tenho não.

            Quem receitou?

      - Eu indiquei!

      O senhor é médico?

            - Não.

            Então o senhor não podereceitarremédios – respondeu o droguista com a autoridade que lhe conferia a severa calvície e os anos de experiência atrás do balcão.

            - Eu não receitei meu senhor, apenas indiquei. – Firulas eufêmicas. Mas se não posso fazê-lo, o senhor tem solução melhor para a doença dele?

            Eu preciso vê-lo. É necessário trazer o paciente para eu dar umaolhada.Ver temperatura, pressão, batimento cardíaco, estado geral.

                        Custei esperar que ele terminasse a comprida lorota para rechaçá-lo empinado:

           - Isso é impossível!

            O homem, percebendo firmeza na minha resposta, modulou a autoridade e perguntou:

            O que é que ele tem ou está sentindo?

            - Inchação generalizada da cintura para baixo, dor na uretra quando urina. Aparentementenão tem pressão baixa, nem evidência de problemas cardíacos críticos. Porém o mais grave desse quadro é que ele mora longe, muito longe; daqui até seu catre são mais de quarenta quilômetros. Carro não chega lá e ele não consegue andar, nem montar a cavalo.

            Despejei essa carrada de informações em contraponto ao que tinha ouvido; claro é que queria induzi-lo a decidir rápido sobre o remédio que solicitei. As carradas de lorota que a gente falanuncasão lorotas; lorota é coisa dos outros.

            O homem me olhou interrogativo sobre os grandes óculos, ancorados a meia nau do seu nariz.

            Além de inchação, que mais tem o doente?

                        Gostei da educação e entonação de voz para fazer a pergunta. Mas, atrevido repeti pela metade o que havia dito e acrescentei:

           - Está urinando muito pouco; não apresenta sintomas de hipotensão, por isso euacho– sempre agarrado aoachismo,teoria largamente difundida entre os que nadam em lagos alheios – que ele pode receber um tratamento inicial à base de Lazix, dois comprimidos. A metade de um, a cada vinte e quatro horas para liberar urina e desinchar, até que possa locomover à procura de atendimento médico.

            O senhor sabe que este remédio pode baixar rapidamente a pressão do paciente e em alguns casos levá-lo à morte?

            - Sim senhor. 

            Respondi enfático. Sabia nada. Havia um excesso desenhorem nosso diálogo – erasenhorprá lá,senhorprá cá; quis entender que o homem usava sua educação para me cozinhar em banho-maria, do lado de fora do balcão eu me esforçando para manter nas estribeiras completei, quando administrado em doses maiores a um cardíaco hipotenso, por exemplo!

            Só me lembrava desse exemplo, há tempos havia lido numa bula. Para impressioná-lo, eu rapava o fundo de meu baú à procura de palavras difíceis, e estava chegando ao fim do que havia decorado do ‘Saúde da Família’e bulas afins. Por dentro pensava preocupado. ‘Se esse careca adivinhar que eu não sei nem aplicar injeção em vaca atolada, ele vai me massacrar e Donério será o grande prejudicado.’ Portanto, necessário manter a pose.

            À parte as tiradas de humor sem graça, minha paciência se aproximava dos limites da ponderação. Estava louco de pressa, não queria saber dessa conversalhada, menos ainda sobre filigranas de coisas que não entendia. Estava correndo o sério perigo de me entusiasmar por uma frase maior e, nessa denunciar minha ignorância na sua área. O que eu queria e precisava com urgência era de um remédio que fosse bom para o Donério. Sabia da eficiência do Lazix, e animava-me a certeza de que este resolveria seu problema; a lenga-lenga estava rendendo para muito além do meu gosto. Notei que ele estava prestes a entregar os pontos, ou melhor, o remédio; deveria estar burilando uma saída para me atender sem arranhar sua posição de esculápio prático. Pose de lá, pose de cá, e o portador aí à espera.

            A jardineira do Riacho, única condução, passaria dentro de mais ou menos quarenta minutos lá no entroncamento, e eu entregue aos humores daquele homem, quase insensível ao meu drama.

            Desconfiara que o meu inquiridor não possuía formação universitária, já que não tinha nenhum diploma pendurado nas paredes da sua farmácia. Não passava de um farmacêutico prático, mas pela desenvoltura vi que era experiente no seu negócio. Provavelmente estava a muitos anos alisando a desbarriga no balcão da sua botica, sem perceber correr do tempo em que seus cabelos foram caindo. Na ausência do médico, com certeza era o consultor recorrente de muita gente. Por experiência eu sei de muitas pessoas que preferem o farmacêutico ao médico, sou uma destas. Era indiscutível que aquele homem conhecia muito de remédio, e não menos perceptível que estava se fazendo de difícil diante do forasteiro apressado e desabusado que tinha à frente.

            Da minha parte, apesar de não entender nem um palmo da sua arte, mantinha o nariz empinado. Não negociava por menos, ele não sabia da ginástica que fazia para ocultar minha ignorância e montanha de dúvidas, e dificuldade para manter o do diálogo. – Alimentar a fogueira de vaidades sem queimar os dedos, que papel difícil! Eu tinha que apresentar pose e atitude de quem sabe, e cuidados mil para não entusiasmar e mais expor. Se não... Então, nesse clima eu lhe perguntei de chofre:

            - O senhor tem solução melhor?

            O homem franziu a testa. Fitou-me interrogativo, mas com ar receptivo e educado. Naquele instante percebi que já não me censurava como no início. Bom sinal. Pela primeira vez pareceu-me simpático, todavia a minha pergunta permanecia no ar. Incomodado, passou a mão espalmada na cabeça lisa como uma jarra de porcelana e quedou-a na nuca vagando o olhar na direção das embalagens de remédio arrumadas nas prateleiras atrás da vidraça. Indeciso. Eu não conseguia entender se ele pensava criteriosamente sobre a minha pergunta ou se procurava como fazer para mais me irritar – provavelmente navegava na primeira hipótese. Abriu uma gaveta repleta de bulas misturadas a caixas vazias de medicamentos. Leu-as e seus rótulos guardados naquele amarfanhadoarquivo de nulidades.

            O tempo voava contra mim. Bem provável que já tivesse passado uma hora desde que ali chegáramos. Na cidade não tinha outra farmácia; preocupava-me muito com o horário da jardineira, tantas coisas. Nessa altura já não sabia o que mais me atormentava, se o remédio ou a condução para a volta do Zé Antônio – tinha esquecido do Donério. A impressão era que o ponteiro do relógio avançava mais rápido do que o razoável. Até o entroncamento gastaríamos no mínimo meia hora ziguezagueando entre os buracos e curvas daquela estrada velha conhecida. 

            Finalmente o homem voltou-se para mim e disse:

-        É, está aí!

            Apresentou-me a caixinha da droga jogando-a sobre o balcão. Não gostei nem um pouco de seu gesto ao jogar o remédio sobre o taboão envernizado, mas engoli seco. Naquele momento eu era a parte frágil na disputa de egos – razoável que engolisse uns calangos.

            Abri para conferir e deparei com uma surpresa esquisita, a caixa continha ampolas de injeção. ‘O que!? Deus meu!’ – exclamei para dentro de mim, provável que eu tenha franzido o cenho. Mas sem abandonar oaplomb,perguntei-lhe pelo produto em comprimidos; respondeu-me que no momento não tinha.

-        Mas justamente o que eu preciso! – disse aborrecido.

            Precisava insistir no especificado; meu pensamento estava fixado nas recomendações que havia feito para Donério, Donita e Lavinho.

            Ele voltou-se para os remédios expostos na vitrine; percebi que procurava o solicitado, ou equivalente. A partir daquele momento intrometi-me como autoconvidado para o lado de dentro do balcão ajudando-o na procura. Terminada a busca no armário-vitrine, onde tudo estava arrumado em ordem alfabética, fui acompanhá-lo a escarafunchar as gavetas, na parte inferior. Só então, após verificar tudo, me convenci de que ele não estava sabotando meureceituário– realmente não tinha.

            Aqui só para nós, na verdade eu nunca pensara na hipótese de existir a opção injetável. E agora, José? Teria que alterar toda aquela recomendação, uma lorota danada. Olhei para o Zé Antônio. Ele, alheio ao problema, aguardava o remédio sentado despreocupado num tamborete alto no canto do balcão, ouvindo músicas sertanejas que saíam de um bonito rádio velho– não participava do meu drama naquele momento. Aproximei dele e perguntei:

      - Lá na Lapinha tem alguém que sabe aplicar injeção

Tem sim, uai! OcumpáTuninho meu sogro.Imprica injerção indeusque meintendopor gente!

            Sabia que os aparelhos descartáveis ainda não haviam chegado por aquelas bandas do nosso interior, então parti para uma solução apreciada na caserna:condutadocombate!Ou seja, se vire com o que se dispõe.

     - Como é o aparelho dele?

            Compreto, muito bão,édos antigo,sempobrema!– e disse mais – Temchiringa, agüia e licate de quebráa ponta dainjerção. Essas coisa tudo.

      - O que mais?

      Do quetoulembrado, é só!

- Por acaso Toninho tem também uma latinha quadrada, com tampa, assim e assim, com uma armação que serve de trempe, põe água na parte de cima, álcool na parte baixo e toca fogo para ferver á água com os aparelhos dentro?

            O farmacêutico foi lá nos fundos, voltou com um esterilizador inoxidável e mostrou-o perguntando: ‘é desse?’

           Desse, não tem não. – disse Zé Antônio.

           - Então como é que ele esteriliza o aparelho?

            Hein?! Ah, sim. Ele lava tudo bem lavado com sabão e passaarco na aguia. Dipoisainda bota ela no fogo até ficarvermeia prá matá os microbi; Tem erro, não!

           - Muito bem, retomei, mas mesmo com todos esses cuidados, é preciso ter muita cautela Zé Antônio! Você tá lembrado da Lindica do Duca Dentista, né? Foi pro céu antes da hora por causa de infecção causada por agulha de injeção, mal lavada. E olhe que quem aplicou foi o Sylvio escrivão, gente experiente. Portanto é preciso ter muito cuidado para não acontecer uma coisa dessas. Já pensou? Para esse caso do Donério, eu vou dizer como é que você deve orientar o Toninho. Este remédio não é brincadeira, é preciso ter muito cuidado. Vamos lá: A primeira coisa a fazer é lavar o aparelho como você disse, depois colocá-lo desmontado, com a agulha e tudo na panela de alumínio muito limpa e deixar ferver borbulhando durante cinco minutos. Enquanto isso, ele deve lavar as mãos com água e sabão, enxugar e ainda desinfetar com álcool antes de pegar as peças de dentro da panela. Não se pode descuidar de nada, se não o doente morre na hora da aplicação! – fiz todo esse barulho para garantir um mínimo de segurança.

            O dono da farmácia, ouvindo as cansativas recomendações, completou: ‘Não se pode trocar álcool por cachaça!’ Ato seguinte, sugeriu que levasse um vidrinho com álcool isopropílico – nunca tinha ouvido falar esse nome esquisito, mas assenti logo com naturalidade para não perder posição. Agradeci o brinde, ao que ele completou: ‘É dois contos e quinhentos’.

            Nessas alturas o farmacêutico havia compreendido a razão da minha insistência pelos comprimidos; a muito custo, conquistava um aliado.

           - Segunda coisa: essa injeção equivale a um comprimido igual ao que ele iria partir e tomar, meio por dia.Explica ao Toninho que, após quebrar a ponta da ampola, deve puxar com a seringa somente metade do remédio para aplicar. Não pode guardar a outra metade para aplicar no dia seguinte, deve jogar o vidro com o resto no borralho, certo? É por isso que você está levando quatro ampolas, metade de uma, a cada dia. A primeira dose ainda hoje, logo que você chegar, tá legal?

            Han, han.

            - Terceira coisa: fala para a Donita continuar fazendo o chá de quebra-pedra com folhas de abacate, isso é muito bom.

            Ao acabar a lengalenga, o bilhete estava escrito.

            - Meu caro, enfie isso com as ampolas na capanga. Vamos com Deus!

            Despedimos do farmacêutico em clima de cordialidade, aboletamos no fusquinha e saímos doidos de pressa. Mas ainda parei na padaria e num segundo comprei um pacote de pão doce e um de biscoito de polvilho. O biscoito para a gente foi barulhando estrada afora. ‘O pão doce é seu, leva pros meninos.’Minutos depois o fusquinha já estava levantando poeira entre valas, manilhas, tambores, desvios, tratores e motoniveladoras da equipe de recuperação da estrada, ameaça de que um dia iriam asfaltar. Havia mais de um palmo de poeira. Com a nossa passagem, virava nuvens amarelas escondendo tudo lá atrás.

            Chegamos ao entroncamento ainda dia; o sol, belo disco vermelho como um tomate maduro, encostado no horizonte, se despedia de nós avermelhando tudo à sua volta. Ao longe, as compridas colunas de poeira levantadas pelos carros vencendo as curvas e cumeadas da terra seca. Ao nosso redor, no entroncamento, as árvores e tudo o mais estavam tomadas de poeira amarela. Um cenário belo e agreste, não sei se mais belo ou se mais agreste.

            Para prosseguir minha viagem com tranquilidade, eu resolvi esperar pelo embarque do portador. Enchi o tempo repetindo a lenga-lenga das orientações, relendo os rabiscos anotados. Minha maior preocupação estava na esterilização e dosagem correta das injeções. Sem alternativas, só me restava martelar nesse ponto, aí parado neste alto de cerrado poeirento à espera da jardineira. Nos intervalos do monólogo, meditava sobre o cenário em volta.

            Sol quente e lua bonita podem ser vistos de qualquer ponto dos trópicos, mas não poeira vermelha, seriema, pés de pequi, de gabiroba, articum, fruta de lobo, pau santo, mangaba, cagaiteira, cajuzinho, murici, os imponentes ipês que crescem aprumados mostrando suas flores amarelas que nunca pegam poeira. Aqui e acolá, flores de alfinete, vermelhas, sempre  muito limpas – será que as flores não sujam? Coisas da natureza que embelezam o cerrado.

            Mudo, eu matava o tempo divagando.

            A jardineira chegou. Parou junto da gente e nos envolveu de poeira, não tinha para onde escapar. Prego, o motorista, esperou passar a lufada amarelo-vermelha para abrir a porta. Não entendi o porquê de seu cuidado, havia tanta poeira lá dentro quanto do lado de fora. Esses meus conterrâneos adoravam viajar de janela aberta, de preferência com a cara prá fora, não importava se fazia frio ou calor, valia pela paisagem. Os passageiros exigentes andavam metidos em guarda-pós com a gola arrebitada e o chapéu enterrado até ao pescoço.

            Observei que dentro da jardineira havia mais gente em pé do que sentada; se aparecesse mais um, só teria vaga no bagageiro em cima do teto, não seria a primeira vez. O importante era não deixar passageiro para trás. Gilson, trocador, aproveitou a parada para amarrar a lona que vinha batendo sobre a barafunda de caixotes, sacos de compras, rolos de tecidos, de fumos e malas. Na traseira, amarrados ao lado da escada do bagageiro, os balaios vazios, tudo amarelo de pó. Zé Antônio já tinha esgueirado para dentro, Gilson desceu do poeirão, entrou e a jardineira partiu; foi com Deus levando o remédio e as mil recomendações.

X

            No mês seguinte, eu de novo na Lapinha. Donério soube da minha chegada e foi logo me visitar, não cabia em si de contentamento. Abraçou-me seguidas vezes. Era um agarra, larga, afasta e vem mais agarro! Muda alegria, muda – a emoção tomou-lhe a fala – e eu tão feliz quanto ele! Trouxe-me de presente uma réstia de alho e cebola juntos, e um requeijão de rapa.

            Foi desse modo que, sem ser médico nem charlatão, aconteceu minha intromissão na ciência de Hipócrates – o dia em que ajudei a prolongar a vida do meu primo por mais de meia dúzia de anos em torno dos seus canteiros de alho e de cebola. 

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Atualizado em: Seg 16 Mar 2015

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