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Luxúria

Há tempos tornou-se deprimido. Ele nasceu com um sonho: cantar, mas não deu certo. Ficou noturno por dentro e nos hábitos; cheio de silêncios ou monossílabos e olhares maquiavélicos. Desse estado comportamental veio o repúdio das pessoas, mas ele se vinga: as repudia também. O último fracasso, ao que parece, foi definitivo e mostrou-se fundo nele. O apelido, com o acréscimo do “do 212”, surgiu por causa das maneiras parecidas com as do personagem Hannibal Lecter do filme Silêncio dos Inocentes.
    Na Hercílio Valik, seu primeiro diálogo que pode ser chamado de diálogo, aconteceu somente no segundo ano de residência no “Cabeça de Porco”, apelido levado a sério do prédio onde mora. Foi bem cedo, pelas 4 da manhã, quando mexia no lixo – seguindo sua rotina diária – amontoado ao redor do poste da esquina, perigosamente próximo à avenida turbulenta.
–Ah, Se todos fizessem assim…
    Ele se surpreendeu com a voz emitida como um lamento. Ninguém nunca estava ali naquela hora. Virou-se para ver quem era.
– Ah, é a senhora! – disse melancólico. – Não reconheci a voz.
    Ela estava em pé, com uma das pernas e as costas apoiadas na parede; a fumaça do cigarro espalhava-se com lentidão, formando em volta dela uma espécie de neblina viva, que a ocultava parcialmente. Essa neblina parecia se mexer a um simples movimento ou mesmo pensamento da mulher; era espessa, muito espessa, estranhamente espessa, como se fosse leite gasoso e passava a impressão de poder ser manipulada tal qual um creme de chantily. Quanto ao cigarro, não era um desses cigarrinhos comuns, era um diferente, fedorento, bandido. Havia na mulher uma pretensão de charme, canalha, pilantra. Talvez o homem tenha se recordado de alguma cena de filme ao jogar a luz da lanterna sobre ela, do contrário, caso sentisse indiferença, não se poderia ver tão claramente aqueles faróis luminosos em seus olhos de macho e nem aqueles seios duros e bicudos tão bem desenhados nas suas sobrancelhas arqueadas de caçador. Ah, pode-se supor tanta violência hormonal em alguns mínimos gestos que o homem fez, mesmo na sombra do seu acanhamento! Não, ninguém deve duvidar que ele viu naquele momento uma atriz de corselete e calcinha. Porém, mostrou heroísmo e disposição para disfarçar.
– É, perdi o sono. E o senhor?
 – Também.
– Todo dia? – ironizou.
 – E o que a senhora tem com isso?
– Nada – respondeu meio sem graça, mas firme no propósito. – Bem ... quero dizer... ora, o senhor não preci...
  – Eu sei! – ele a interrompeu subindo o tom de voz. Virou-se de costas novamente e continuou seu estranho trabalho.
  – O seu lixo já estava aí, vi quando o colocou ontem à noite.
 – É. Ontem... Como todo mundo… Ou quase.
    Era inverno, o sol é sempre triste no inverno. Sabe-se lá em qual meridiano ele estava! Mas era certo já estar no fim da travessia, tentando esquentar a água, preparando a mamadeira para o niño lá no pacífico.
– Por que o senhor faz isso? Gosta?
     Como o poste não tinha luz (os moleques da rua sempre quebravam a lâmpada), ele segurava firme a lanterninha, ajeitando cuidadosamente os vários sacos pretos esparramados. Alguns estavam meio abertos por desleixo, outros rasgados pelos cachorros. Era o lixo da rua toda e o caminhão do lixo passaria às 6 horas em ponto, como sempre fazia.
 – Por que o senhor faz isso, hein? Gosta? – ela repetiu a pergunta, falou mais alto.
 – Será? – perguntou ele de volta, ainda de costas, querendo desinteressar-se.
 – Será o quê?
 – Será que eu gosto? E a senhora?
    Ela jogou, com a habitual classe dos boêmios, o cigarrinho bandido no chão, ainda pela metade, depois pisou nele, esmagando-o até a morte mais cruel, cigarrinho torturado com três pisadas no pescoço. Ao final da tortura ela fez uma careta onde apareceu uma extensa rede de rugas na testa e outras nas laterais dos olhos apertados.
 – Quero dizer... e a senhora, gosta do quê?
 – Fede aí, né? Sinto daqui... Nossa! – espremeu com os dedos as narinas.
 – E a senhora, gosta do quê? – insistiu, mas gaguejou um pouco.
    De repente se aproximou um cachorro, doido para fuçar no lixo, mas não ousava. Ela falou e brincou com o bicho.
 – Bobinho, gostosinho, fofinho... Pingo!, isso é rabo de cachorro?!
 – Se ele vier aqui eu mato ele – ameaçou o homem com o punho esquerdo cerrado e espuma no canto da boca. – Aqui não, não vou permitir.
    A mulher adivinhou a verdade na promessa, no jeito determinado do homem. Sentiu um arrepio percorrendo o corpo; quase medo, mas não era medo, era uma coisa gostosa.
 – Vai! Sai daqui Pingo! – disse alto, batendo palmas.
    O cão não entendeu, tomou por brincadeira e continuou com a língua para fora e abanando o coto de rabo. Ela abaixou-se, fez carinho no pelo ralo e fedorento.
 – Ele é meio doido, te mata mesmo – completou bem baixinho, no ouvido do bicho. Depois lhe deu um tapa na anca magra e o nome do assassino de Abel soou como um sino até sumir atrás da igreja de crente.
 – Bicho fabricado pelo inferno – resmungou o homem.
– Pois é, então, eu gosto de... – ela queria avançar, mas interrompeu-se, calculando que fosse desagradá-lo ou espantá-lo com os vários pensamentos abrigados pelas reticências.  Depois da falta de coragem, vieram alguns suspiros de alma, inaudíveis; com custo achou uma frase.
  – É meio doido isso, não acha?
    Ele apenas a olhou de esguelha.
 – Você entende? – insistia a mulher. – Entende o que quero dizer?
 – Entendo – ele disse num tom seco.
    Ela se calou por um tempo, só observando cada gesto dele revirando o lixo para corrigir o desleixo dos outros e a fúria cometida pela fome dos cachorros. Então ele rompeu o silêncio:
 – Eu sei... Entendo – e ela viu rolarem naquele rosto amargurado duas lágrimas compridas que ele se apressou em enxugar com o dorso da mão. – É meio doido sim!...
    Ele continuava seu trabalho, fingindo-se de indiferente à mulher que o reparava com atenção. Sem pressa, cabisbaixo, iluminando ao redor para ver se não sobrara nenhum resto de comida ou outra coisa qualquer para fora dos sacos. No meio deles havia também lixo em sacolas de supermercado. Então, ele punha-as em sacos pretos dobrados em mil partes que retirava dos bolsos da calça.
– Não é sua função – ponderou a mulher.
– Não tenho mais nada o que fazer a essa hora… Aliás, em hora nenhuma – respondeu de repente, encarando-a da forma mais desanimada do mundo.
    A mulher olhou-o admirada com a resposta. Que melancolia! Teve uma vontade incontrolável de cuidar daquele homem. Vendo-o fuçar ali, virando e revirando, como se toda aquela montanha de lixo fosse uma mina de ouro, apiedou-se dele. Ajeitava, organizava, amarrava com tanto empenho e zelo que se podia concluir ser essa a última coisa que ele faria na vida, em seguida viria a morte. Quanta dedicação! Que homem! E outro sentimento mais indomável brotou na mulher. “Como tal coisa, tão pequena e ridícula, pode atrair os cuidados e a atenção de uma pessoa que não precisa e não tem necessidade alguma de estar ali? Quem mais no mundo faria tal coisa?”, pensou. “Deus, o que não faria por uma mulher (…)!?”, finalizou o raciocínio.
    Logo lhe subiu um calor.
– É um homem bom, sabia? E bonito também, muito bonito! O senhor tem as mãos fortes, é largo aqui, ó (e fez o gesto para indicar a extensão do peitoral dele)…
    Ele parou completamente, tornou-se uma estátua, arqueado com a lanterninha numa mão e um saco preto na outra. O silêncio era grande e o restinho do escuro, sereno. Com os sentidos aguçados pelo jorro inusitado de adrenalina, cada qual pode ouvir o sangue correr nas próprias veias, como um riacho formado numa rua pela água da chuva; o coração pulsava forte em cada parte do corpo de ambos, dando a sensação de vários corações espalhados. Também ouviam a respiração acelerada um do outro.
– O senhor… – e perdeu a coragem para continuar.
    Com os olhos enfiados nela, desbravando-a, medindo-a com malícia, chegou a vontade animal de possuir e a de ser possuída, aflorando o mais primitivo dos instintos.
– Por que não vem falar o que deseja aqui bem pertinho de mim? – Arriscou-se ele muito trêmulo.
    E ela foi.
    Chegou, encarou, sarrou levemente o braço no dele, o mesmo fez com os lábios na orelha do homem, no lóbulo, tocando-o feito tecido fino que roça a pele ao balanço do vento, à medida que ia sussurrando o desgoverno dos seus desejos.
    Duas semanas depois, ele comprou o carro mais velho que encontrou (não por falta de dinheiro, por gosto mesmo); era uma Brasília 75 da cor creme, tuberculosa. Apelidou-a de Distrito Federal. Ficou três meses rodando naquela maria fumaça, três meses sem frequentar o poste do lixo, três meses sem voltar a falar com a mulher.
    Entrou o verão, então ele voltou para o lixo. Já no primeiro dia deu de cara com a mulher no mesmo lugar, na mesma posição de antes, fumando o velho cigarrinho bandido. Olhou-a com a cara muito dramática, quase convulsionada, torta.
  – Quer se casar comigo?
    Ela apagou o cigarrinho fino na língua e enfiou a sobra no bolso. Depois disse, emocionada:
 – Veremos como fica.
    E se jogou nos braços dele e os dois se embolaram no meio dos sacos de lixo. O Pingo apareceu, meio tímido no começo, depois, mais à vontade, danou a rasgar os sacos. Logo caiu uma chuvinha cortante feito navalha e o céu escureceu mais, tanto que fazia dormir qualquer um que se abrigasse sob alguma marquise.
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Atualizado em: Sex 15 Dez 2017

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