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Reflexões de fim de ano
Um dia após o outro. Uma sístole que segue uma diástole, indefinidamente, enquanto houver vida. O rio da minha aldeia será sempre o mesmo rio, ainda que jamais volte a ser o mesmo rio de um segundo atrás. Assim são também os minutos e as horas, formando uma cadeia de tempo, ciclos que se repetem sem nunca serem exatamente os mesmos.Se tudo no tempo se repete sem se repetir, qual o significado da expressão "fim de ano"? Não seria esse fim a marca de um novo começo no ciclo, e vice-versa? Onde estaria a ponta do círculo perfeito, o ângulo que me permite determinar o início ou o término das coisas? Por que preciso aceitar um dia como a fronteira entre dois pedaços de tempo, quando na verdade não existem pedaços e nem fronteiras? Dia 31 não é o fim, e dia 1 não é o início. São apenas dois dias no calendário. Calendários que invariavelmente são representados por tabelas numéricas, quadradas, dízimas periódicas que pouco ou nada representam do tempo real, vivido nas ruas e nos sonhos. Calendários não representam o tempo. As rugas do seu rosto, sim.
Parece uma ideia cruel, mas é pura e simplesmente um fato: o tempo passará para você quando você sentir os seus ciclos na pele, como roldanas afiadas fatiando pequenas tiras de colágeno, povoando sua cabeça de fios brancos e desligando a cada vez uma boa parte de neurônios (dos poucos ainda ativos). E ele fará isso sem data ou hora marcada, sem nenhum anúncio ou celebrações com fogos de artifício. Virá como um invasor que, na calada da noite, entra na sua casa e deixa uma marca, um pequeno risco na parede. No dia seguinte, você olhará a marca e não saberá de onde ela veio.
Mas repare bem: eu disse que o tempo é um invasor. Não disse, em momento algum, que ele era um ladrão. Porque, na verdade, o tempo não rouba nada de você: você deve entregar a ele, por livre e espontânea vontade. Deve permitir que ele leve embora as angústias, o rancor e até mesmo as suas lembranças, mesmo aquelas que você considere mais caras. Em troca, ele poderá lhe trazer outras tintas, outras telas para serem pintadas sob pontos de vista completamente distintos. Para o tempo, as coisas não devem ter arestas, nem linhas fortes. Elas precisam ficar um pouco apagadas, desvanecidas na memória, como uma sombra, a impressão daquilo que já foi. O tempo é míope.
Sendo assim, eu vou me rebelar. Não vou seguir os passos do calendário, e nem acreditar que o ano termina em dezembro. Não farei planos para o ano novo: farei planos para serem cumpridos ou descumpridos amanhã, ou hoje mesmo. Deixarei que o tempo entre pela porta do meu quarto e me diga aonde ele quer ir, aonde ele quer que eu vá. Celebrarei a vida e a morte, os ciclos que se alternam desde o nascimento do universo.
Um piscar de olhos, uma sístole, uma diástole, um dia após o outro, girando em círculos sem nunca passar pelo mesmo lugar. Jogarei esse jogo, indefinidamente, até que o tempo me diga: vamos dar uma pausa para o café.
Comentários
E é este mesmo tempo que nos impinge tempo, espera, pressa...É um círculo, mas não vicia, só nos maltrata um pouquinho.
Belo texto
Bjs