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As Três Almas
É o Morro das Três Almas. Um nome óbvio para uma história óbvia. Três meninos despencaram do topo, mais de uma vez. E eu não consigo contar quantas vezes passamos por aqui. O relógio está parado, mas o vento ainda circula dentro do vagão. Ninguém sabe dizer o que funciona e o que deixa de funcionar. Não existe lógica, e o morro some de vista. Nesse minuto, meu corpo percebe a gravidade, como se subisse por um elevador rápido demais, e silencioso. Não são voltas, são saltos para trás, com quedas que quebram nossas pernas. Mas como eles conseguem dormir? Talvez eu esteja exagerando. O Morro das Três Almas aparece de novo.
Assim levamos duas eternidades, ou três. Não sinto fome e nem sede.
De repente, algo muda de tom. Meus olhos não estão embaçados e aquela vibração enjoativa deixa meu corpo. Vejo casas e fios de energia, é uma paisagem nova. O autofalante anuncia que estamos de volta. Segundos depois a luz do mundo se acende, como se o sol estivesse dormindo como os outros. Estou provisoriamente cega.
Passeio meus dedos pelo meu rosto, checando se cada linha está no lugar. Só depois disso consigo soltar o ar dos meus pulmões e agradecer por ter saído intacta.
Salto na próxima estação, quero caminhar até minha casa. O problema em questão, é que as ruas estão assombradas. O céu tem um tom errado de azul. O vento tem uma temperatura esquisita e carrega um odor de pele, sangue e anomalia. Ao meu redor, insetos emergem e buscam novas superfícies, eles não querem tocar a terra. Preciso ser cuidadosa para não virar abrigo.
Minha cidade é vazia, feia e fedorenta, tem som de grito e música clássica. Uma amiga de infância está sentada no meio fio, cansada demais para levantar. Os insetos a evitam, e isso é apenas uma das coisas que não entendo e não pergunto. O cabelo disfarça o buraco da bala que atravessou seu crânio. Eu nunca perceberia, se ela não me contasse. Lembro de ter lhe dado a maior das broncas. “E se eles repetissem?”. Só depois ela contou que precisou morrer umas cem vezes, e é por isso que ainda estava tão cansada. Morra e eles o trarão de volta, se mate e eles o castigarão. “Não vê o que aconteceu com aqueles três meninos? Eles ainda estão lá, eu ouvi os gritos. Você não sabe a sorte que tem”. Ela me olha e me sorri. Seus olhos são brilhantes e vivos, seu rosto tem aquele tom avermelhado que lembra saúde infantil. Penso nas palavras de Sophia, e repito como prece “ Que nenhum deus se lembre do teu nome”. Despeço-me e saio, preciso chegar em casa antes do fim do dia.
Qual fantasia assombrosa você seria capaz de imaginar? Qual versão de mundo você identificaria como o inferno? Na casa ao lado, existe um casal. A mulher está grávida de gêmeos. Antes de nossa tragédia começar, o casal viveu sucessivos episódios de glórias e fracassos, colecionando uma pequena pilha de fetos que não chegaram ao tamanho de uma laranja. Vimos pontos no céu, que se aproximavam calmamente, num ritmo quase poético. Nessa época, os gêmeos eram dois melões, e a mãe exibia orgulhosa a imagem de ultrassom dos bebês que teriam nome de estrela, em homenagem ao milagre da vida e do céu. Então as luzes se aproximaram, e delas pudemos vislumbrar aqueles grandes olhos carregados de desprezo e sadismo. Escolheram à dedo o pobre casal, e decidiram que essas crianças seriam para sempre azeitonas, e melões, e abóboras, jacas e pêssegos. Uma gestação de mil anos. Bebês num infinito processo de evolução e involução, de zigoto à jaca, de jaca à zigoto. Os pais, que tinham como maior sonho segurar seus rebentos nos braços, precisavam viver sobre a eterna tortura de nunca tê-los de verdade. “Não podemos tira-los daí, eles precisarão de um ventre, quando tudo isso se repetir” O marido diz, quando a esposa ameaça rasgar a barriga com uma tesoura.
Caminho ao som de Chopin. Eles disseram, do jeito deles, que a música clássica é a única boa invenção da humanidade. Disseram que talvez nem fosse invenção nossa. Acontece que em alguma reunião de conselho, ou sei lá o que fazem lá em cima, alguém disse que nós nos desintegraríamos caso não nos fosse oferecido algum agrado. Então a maior prova de amor e de zelo, foi fazer reverberar 24 horas por dia, ou quantas horas durassem um dia, música clássica em volume suficiente para atingir o menor dos ouvidos. Olha pra mim, diga que eu não preciso de um pouco de paz.
Alguém me acompanha a passos largos. Tem a minha altura, uma linha direta dos meus olhos aos dele. Acho engraçado como ainda existe uma curiosidade infantil nisso. Ele observa o modo como eu ando, ameaça tocar o tecido da minha camisa, mas desiste no meio do caminho. Tenho vontade de fazer uma pergunta e dez súplicas, mas não quero deixar ninguém com raiva. Eu não entenderia de todo modo. Geralmente é só isso, eles te abandonam depois de alguns metros de caminhada até encontrarem outra coisa que se mova. Convivência pacífica, eu diria. Uma pessoa e um deus da destruição, num crepúsculo tranquilo e musicado. Estou chegando em casa.
A fachada está visível, quando não deveria. Não me importo em ver algumas luzes acesas, isso me poupa do terror de ter que revelar algo da escuridão. Se tiver alguém aí, que ouça o barulho dos meus sapatos batendo contra a parede, derrubando todos os insetos refugiados ao longo do caminho. Faço questão de abafar Vivaldi, os invasores precisam escutar novas sinfonias. Giro a maçaneta. Eu tinha uma foto de quando eu era criança, cerca de 9 meses de idade. Aquela se parecia comigo. Da cozinha, eu olho para a porta da frente e me vejo lá, parada, segurando um sapato em cada mão. Minha boca tem gosto de leite, meus braços sentem a pressão de segurar uma criança. Meus dedos perdem a força e deixo cair os sapatos.
Atualizado em: Dom 10 Mar 2019