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DULCINEIA - 1a parte

SINOPSE DE DULCINÉIA - a minissérie

1ª parte



Dulcinéia - minissérie ambientada no Colégio Magnata é feita de episódios independentes entre si, embora existam laços na trama, entre os personagens. As ações giram em torno de roubos que aconteceram em joalherias da Europa, tendo como nicho a cidade de Budapest.

Para uma melhor compreensão da trama, vou falar um pouco sobre cada personagem.



1 - FELÍCIO GALVÃO - o professor. Criado na Itália, onde viveu até os 22 anos, quando perdeu os pais. Retorna ao Brasil e se torna "o braço direito da diretora CLARICE".



2 - ANDIE - a lourinha que misteriosamente aparece no colégio procurando emprego.



3 - DULCINÉIA - a copeira.  Sempre se mete em encrencas. Quer viver um grande amor. Na sua vida está aparecendo CAIO, um motorista de ônibus.



4 - TINA - filha do Ministro.   É uma patricinha, a "menina má" da trama e amicíssima de Andie.



5 - JÚLIA - mãe de Tina.  Acha que o dinheiro compra tudo. Usa e abusa desse artifício.



6 - YANA BAHRA -  atriz radicada no exterior e que vem ao Brasil para gravar um vídeo. 



7 - A condessa FLORA DI GARMIGNON - sofisticada mulher da sociedade italiana. Está sempre no Brasil e é amiga de Júlia.



8 - WENDERSON - o porteiro do colégio. Negro, mulherengo, fanqueiro...



E OUTROS:

- que embora tenham papéis fundamentais na trama, entram e saem dos episódios rapidamente.



EPISÓDIO 01

ACONTECEU NA FRONTEIRA

Tudo começou durante a travessia da fronteira austro-húngara, quando Andie regressava de Budapest. Ela estava sozinha num compartimento do trem, folheando um folder sobre a Alemanha, quando dois policiais abriram bruscamente a porta. Uma agente federal ruiva, sardenta, e um policial negro alto, de uns 95 kg abordaram a lourinha, segurando os coldres das armas e falando em inglês. Ao perceberem que ela não entendia nada, começaram a gesticular, falando ao mesmo tempo. Dirigiam-se a ela em alemão, em italiano, em francês e em outras diferentes línguas.  Acho até que em latim.  

Andie ficou assustada e confusa. Não entendia nada. De repente a agente ruiva ergueu-a pelo braço e fez um sinal para que ela a acompanhasse. Disse apenas estas palavras em inglês.


  • - Get up! Let's go!
E sem chamar a atenção dos outros passageiros, atravessaram os corredores do trem em direção do toilette. As paisagens austríacas desfilavam diante dos olhos azuis de Andie, mas o medo a impedia de enxergar aquela majestosa beleza. Com voz trêmula e insegura, ela quis saber.

  • - Para onde a sra vai me levar?
A agente não respondeu. Limitou-se a empurrar Andie com mais força na direção do toilette. Ao passar diante de uma cabine que estava com a porta semi-aberta, Andie ouviu alguém conversando e conseguiu captar as seguintes palavras em português - "A Condessa Flora di Garmignon vai estar em Salzburg no festival de música... " Ela tentou se voltar para ver quem estava falando, porém a agente empurrou-a com determinação, comprimindo seu cotovelo a ponto de doer.

No toilette, gesticulando, ela pediu que Andie mostrasse o passaporte e tirasse os brincos. A lourinha obedeceu. A policial abriu os brincos, examinou-os, revistou Andie toda. Em seguida devolveu-lhe os brincos. Andie guardou-os num dos bolsos da jeans larga.



A história não terminou aqui. Andie foi levada para uma sala mal iluminada num dos compartimentos do trem, onde só havia um assento e um aparelho de TV desligado. Ela não saberia dizer quanto ficou ali, quando, de repente, a sala foi inundada de um azul pálido. Andie levou um susto, mas o susto durou pouco tempo. Surgiu na tela da TV um homem magro e cabeludo, de fisionomia coreana, usando paletó preto e camisa creme. Ela estremeceu ao ver a imagem fitando-a diretamente. No mesmo instante, a porta foi empurrada e apareceu um homem moreno falando uma língua não identificável. Andie só entendeu a sua intenção porque ele empurrava um carrinho de chips, refrigerantes e outras guloseimas. Lá da tela, o homem de fisionomia coreana fez um gesto para que o vendedor se retirasse. Em seguida sua voz preencheu o ambiente, o que deixou a lourinha atônita.

- Bom dia, senhorita! A polícia húngara deseja se desculpar pelo engano ocorrido! Se quiser dizer alguma coisa, posso ouvi-la!

Ele falava um português-brasileiro impecável. Tão claro e correto que a surpresa de Andie aumentou ainda mais.

  • - O que aconteceu? Por que estou aqui?
- Houve um roubo numa luxuosa joalheira de Budapest. Brilhantes desapareceram. A polícia recebeu um telefonema anônimo dizendo que os brilhantes estavam dentro de uns brincos, que foram vendidos por um cigano - aquele artesão que fica na praça, mas descobrimos que o cigano não tem nada com isso. O ladrão apenas usou-o, como já usou outras pessoas. Nossa polícia está atrás desse sofisticado ladrão, que vem atuando nas grandes cidades européias. E como a senhorita estava usando esse tipo de brinco...

Andie apalpou os brincos no bolso da calça. O homem pediu desculpas mais uma vez e anunciou:

- Está liberada! Pode voltar para a sua cabine. E mais uma vez, em nome da polícia húngara, desculpe! 



Foram as suas últimas palavras. A tela voltou a ficar escura. Andie olhou para fora pensativa. A brancura dos Alpes desfilava interminável diante dos seus olhos.

Ainda meio aturdida com o que acontecera, ela deixou a sala. Viu os agentes que a abordaram anteriormente entrando em outra cabine. E viu mais policiais dando buscas por toda parte.

Andie seguiu pelo corredor e chegou em frente da cabine de onde vieram as palavras em português, procurando ver quem estava ali dentro. Chegou tão sorrateiramente que conseguiu ver dedos longos e delgados, incrustados de anéis, fazer deslizar rapidamente pela janela do trem, um par de brincos em forma de bulbo.



EPISÓDIO 02

O RENOMADO PROFESSOR GALVÃO

Felício Galvão era uma pessoa de uma cultura ilimitada, embora não tivesse nascido em berço de ouro. Nasceu pobre, filho de mãe solteira, que morreu ao dar à luz. Parentes ele não tinha, por isso foi parar numa instituição de caridade, o que felizmente durou pouco tempo.



Num inverno, um casal de italianos veio ao Brasil e programou visitas às instituições de caridade para distribuir cobertores para as crianças. Ao passarem pelo berçário, viram Felício balbuciando algo. Foi amor à primeira vista. A esposa, Pietra, fez uma carícia no rostinho da criança. O bebê agarrou o seu dedo e pelo jeito o segurou por muitos e muitos anos, pois Pietra, que não tinha filhos, olhou para Antonioni e com voz abafada de emoção, decidiu:

- Esta criança é nossa! Vamos levá-la pra Itália!



O marido gesticulou muito, querendo contestar. Por fim acabou concordando. E resolvida a burocracia da papelada de adoção, o bebê embarcou com o casal. Recebeu uma educação de príncipe. Estudou na Suíça e na Franca. E teve os melhores professores particulares também. Viajou por toda Europa e fez intercâmbios. Embora estudasse na Suíça, estava sempre com os pais, os quais moravam numa cidadezinha a duas hora do outro país.

Pietra percebeu que o rapaz possuía um talento nato para a aprendizagem de línguas e investiu pesado nisto. Possuía também um espírito imbatível de liderança, além de ser muito econômico.



Infelizmente, quando Felício fez 22 anos, perdeu os pais adotivos num acidente de carro. Como vinha sempre ao Brasil, por causa da namorada, resolveu vender tudo na Itália e se mudar para cá. O namoro acabou. Ele começou a trabalhar nesse colégio, onde organizou o Centro de Línguas, hoje referência nacional.

Bolsa de estudos também foi outra conquista que o professor Felício Galvão conseguiu para os empregados. O professor tinha sempre boa vontade com tudo que se propusesse a fazer. Por isso acabou sendo o braço direito da diretora Clarice. Todas as decisões eram tomadas por ele. Ficou tão envolvido com os assuntos do Colégio Magnata que Clarice decidiu que ele só daria aulas de Cultura Geral para suprir a falta de algum colega. 



Aos poucos ele foi conquistando a simpatia de todos, embora tivesse uma postura rigorosa diante de decisões.

Felício Galvão é acima de tudo uma pessoa íntegra, carismática. Hoje, com 32 anos, é o professor mais respeitado e admirado da escola.  


EPISODIO 03

ANDIE - a lourinha.

Uma garota de cabelos loiríssimos, presos na nuca, olhos quase transparentes de tão azuis, cheia de correntes no jeans cintura baixa e nos pulsos, blusa muito alta (aliás, não se sabe se ela esqueceu de colocar a blusa, ou o quê) passa pelos corredores da escola em direção da secretaria. E sua passagem causa reboliço nos alunos por tudo isso que vocês estão vendo e também pelo barulho do atrito que o amontoado de correntes faz, em sincronia com o som do saldo alto da sandália.  

Ao chegar à secretaria, bate levemente no vidro que faz divisória entre os funcionários e os alunos. Sabem quem estava ali? O renomado professor Galvão.  

- Bitte sehr! - disse ele.

- Hum?

- Can I help you? 

- O sr. disse mesmo o quê?

- Ah! desculpe, pensei que você fosse estrangeira. Seu nome?

- Andie von der Ghlantèe. Fiquei sabendo que aqui tem uma boca...

- Aqui temos mais de 2800 bocas, lourinha, incluindo a minha.

Ela sorri, mostrando dentes esculpidos, de tão perfeitos que são.

- Desculpe, senhor! Fiquei sabendo que aqui tem uma vaga pra trabalhar na secretaria.

- Quem trabalha em secretaria de escola tem que mostrar serviço. Dar duro mesmo!

- Como?

- Trabalhar demais.

- O sr. está querendo me assustar?

- Sério. Até eu estou aqui dando uma força. Diga, como ficou sabendo da vaga?

- Tenho uma amiga que estuda aqui. Tina, filha de um Ministro.

- De onde você é?

- Blumenau. Mas agora estou morando num flat em Balneário Camboriú. Perto da praia do Pinho.

Contou, como se falasse para uma pessoa que conheça Santa Catarina. Como ele já está se sentindo muito à vontade com a lourinha, apesar do barulho das correntes que ela faz quando gesticula, arrisca:

- Você deve gostar do Oktoberfest.

- Prof. pra dizer a verdade, odeio aquele auê. Quando aquilo começa, desço pra Buenos Aires.

- Desce?

- É! Pego um avião, passo a noite lá e depois sigo pro Chile, onde um amigo político tem um chalé nas imediações da Cordilheira dos Andes.

- Amigo político ou político amigo?



O celular da garota tocou, o que a impediu de responder. O renomado professor observa-a atender. É um celular que até filma. Acreditem! Quando ela termina de falar, sorri encantadoramente para o professor com aqueles dentes esculpidos. Seus olhos brilham, como se quisessem ultrapassá-lo. Por um momento, ele sente um calafrio, entretanto se controla e continua a conversa.

- O emprego aqui não é grande coisa, para uma menina como você!

- Prof., pego qualquer coisa!

- Por que não pede pro seu amigo político conseguir uma boquinha pra você?

- Não dá! Ele está envolvido com esse negócio de CPI. Passa o tempo todo na ponte-aérea Santiago-Brasília.

O celular do professor tocou. Ele pede licença, vira-lhe as costas e atende. Depois, sorrindo amável, diz à lourinha.

- Sinto ter que interromper o nosso papo. Tenho que ir ao laboratório dar assistência aos alunos. Mas, pra ser sincero, continuo achando que o emprego aqui não serve pra você!

- Serve sim, pode crê!

- Andie, vou te dar um endereço de um lugar onde sei que você vai conseguir alguma coisa.

Ele vira-lhe as costas novamente. Pega um pedaço de papel e escreve o endereço. Entrega à garota. Ela arregala os olhos transparentes. Fita-o demoradamente. O phD estremece outra vez, mas logo é despertado pela voz aveludada da menina.

- Prof. que endereço é este? O que é RGT?

- É uma emissora de TV. Ouvi dizer que estão precisando ilustrar um conto de fadas. E você é tudo o que eles querem. Até no nome!



EPISÓDIO 04

ANDIE -  a confusão

O renomado professor Galvão saiu apressadamente da secretaria após entregar o endereço da emissora de TV para Andie, ao mesmo tempo em que Dulcinéia, a copeira, entrava com uma enorme bandeja de lanche. Houve uma colisão. A bandeja voou longe. E o barulho do aço inoxidável contra o piso propagou pelos ares.

Andie se abaixou para ajudar o professor a apanhar os utensílios, quando percebeu que a copeira olhava-a de uma maneira estranha. E fazendo gestos, chamava o professor.

- Quem é?  - perguntou, limpando os olhos com um lenço.

O phd respondeu sorrindo.

- A lourinha? É do Sul. Dei o endereço da Globo...



Dulcinéia nem esperou ele completar a frase e saiu correndo.  Andie achou estranho aquilo, mas continuou abaixada, ajudando o professor a recolher os utensílios. As correntes da calça de cintura baixa arrastavam pelo chão, fazendo um barulho engraçado.

Ao terminar de recolher tudo, ela colocou a bandeja sobre o balcão da secretaria. O professor agradeceu, pediu desculpas à menina e se dirigiu para o laboratório. Andie foi andando lentamente para a saída, mas decidiu antes entrar no toilette. Ela passou um pouco de batom. Colocou uns brinquinhos em forma de bulbo que comprara de um cigano tcheco em Budapest. E óculos escuros. Quando saiu, o painel eletrônico do colégio na sua frente chamou a sua atenção. Ela ficou igual a uma criança, olhando deslumbrada para aquelas letrinhas pontilhas de vermelho, caindo como cascata e deslizando horizontalmente para completar as palavras, quando leu o finalzinho de uma frase:

... está aqui no colégio.

No mesmo instante, ouviu-se um barulho de vozes e um corre-corre de alunos vindo dos fundos do corredor. Dulcinéia, a copeira, vinha à frente, gritando e gesticulando:

  • - É ela! Corre... E ela...
Uma voz eletrônica soou por todo o colégio.

- Atenção! Alunos, voltem para as suas salas porque...

Ouviu-se um estrondo vindo não se sabe de onde e o painel apagou por completo. Indiferentes aos avisos, alunos saíam correndo das salas. E em vão, os professores tentavam conter a multidão de adolescentes que avançava enlouquecida corredor afora.

Andie, sem entender o que estava acontecendo, encostou-se na parede procurando se proteger.

- Meu Deus! O que é isso?

Os adolescentes avançavam na sua direção, acenando cadernos, mochilas, pedaços de papel, camisetas e gritando freneticamente. 

- É ela... é ela... 

Andie se apavorou. Arrancou rapidamente as sandálias de saltos altos e saiu correndo. A multidão avançava rápida. Quanto mais ela corria, percebia que mais portas iam se abrindo e o número de adolescentes crescia cada vez mais atrás de si.   

Andie viu uma porta larga, semelhante a uma porta blindada. Rapidamente, ela empurrou-a e entrou. Era a biblioteca. A lourinha correu ofegando pelos corredores de prateleiras. O tapete macio acolheu seus pés vermelhos e doídos pela compressão contra o piso frio do mármore dos corredores.

Num canto, havia uma pilha de livros que ainda iriam ser catalogados. Ela correu e se escondeu atrás dos livros, no exato momento em que a gritaria invadiu a biblioteca.

Andie tremia. Os adolescentes se aproximaram, fazendo um círculo em volta dela. Os olhos azuis transparentes da lourinha fecharam-se de pavor, ao mesmo tempo em que ouviu uma voz quase junto de si implorar:

- ... seu autógrafo...

Andie abriu os olhos, agora cinza de surpresa. Ergueu a cabeça. Deixou o rosto à vista. O menino recuou surpreso. Ela se viu frente a frente com a biblioteca abarrotada de barulhentos estudantes. E uma voz meio decepcionada condenar:

- Dulcinéia pisou na bola! Essa pode ser do Rio Grande do Sul, mas não é ela!

Foi então que Andie compreendeu tudo. Levantou-se, sorriu para os estudantes. No mesmo instante, seus olhos, azuis como o infinito, enxergaram o renomado professor abrindo caminho na multidão.

- Andie, que confusão que a copeira provocou!

Vinda de trás de uma prateleira de livros, uma voz aborrecida retrucou:

- Eu? O senhor mesmo disse: "É do Sul...  Globo.... Acho até que ouvi Nova Yorque".

Limpando os olhos com um lenço, Dulcinéia saiu detrás da prateleira.

- Agora vai querer botar a culpa em mim? Logo eu, que deveria estar em casa de licença médica? Fui ao oftalmologista há pouco e ele pingou nos meus olhos um colírio que mais parecia pimenta... 


EPISODIO 05

DULCINÉIA - a sonhadora

Dulcinéia, a copeira da escola onde trabalhava o renomado professor Galvão, 25 anos, cabelos longos e negros, tinha uma grande paixão: as novelas. E seu dia-a-dia dependia do que os autores iriam reservar de surpresa a cada capítulo. Ela vivia as situações, os romances e até assumia a personalidade dos artistas. Falava com propriedade da vida de cada um, como se fosse a sua, mas no fundo, Dulcinéia sonhava com um grande amor. Sonhava que algum dia um homem maravilhoso iria chegar, abraçá-la com carinho e sussurrar no seu ouvido aquela frase que já foi sussurrada 23.947.216 vezes nas novelas. 

- "Eu nunca senti por mulher nenhuma o que estou sentindo por você. Eu te amo, Dulcinéia."

Foi o professor Galvão que arranjara aquele emprego na escola para ela há quatro anos. E naquele estabelecimento, ela conquistou da simpatia de todos, principalmente dos alunos, que a adoravam. Daí a confusão que aprontou com Andie von der Ghlantèe, pensando que a lourinha fosse alguma top model e que os meninos adorariam conhecê-la.



Dulcinéia levou um susto no dia seguinte, quando recebeu um comunicado para comparecer à diretoria da escola. Ela chegou cabisbaixa, empurrou lentamente a porta e entrou. Uma mulher loura, vestida como se estivesse pronta para levantar-se da cadeira e sair diretamente para uma festa, começou a dizer.

- Dulcinéia...

- Professora Clarice, desculpe o que aconteceu!

- Deixe-me terminar, por favor!

A elegante diretora, com um gesto, convidou Dulcinéia para se sentar.

- O que passou por sua cabeça quando arrebanhou todo o colégio pra aprontar aquela confusão ?

- Senhora, a lourinha parecia tanto com a...

- Isto não justifica o que você fez, Dulcinéia!

A copeira começou a chorar baixinho, sem vontade, querendo fazer uma cena. E através das lágrimas, vislumbrou o rosto da diretora. Nenhuma emoção foi encontrada ali. Ela pensou, imaginando-se vista por cerca de 70 milhões de telespectadores:

- Essa cascavel vai me demitir! Logo eu, que preciso tanto deste emprego! Até parece aquela tal, daquela empresa, daquela novela, que acha que pode mandar em todo mundo.

Recolhendo uns CDs espalhados pela mesa, a diretora advertiu:

- Que isto não aconteça nunca mais, Dulcinéia!

- Tá certo, senhora! Vou pro Departamento Pessoal!

-  Você trabalha lá agora?

- A senhora não deixou claro que vai me demitir? - disse a frase saboreando cada palavra, imaginando-se diante de uma câmera de TV.

- Demitir? Dulcinéia, você acha que nasci ontem? O colégio inteiro te adora! Imagina se vou "dar carne pro gato!" 

Dulcinéia sorriu intimamente e imaginou-se uma daquelas personagens de novela que jamais diria o chavão que a diretora falou. 

Clarice terminou de organizar a mesa, pedindo:

- Quero que sirva uns petiscos com caviar para uma pessoa lá do Senado que vem visitar o colégio. E vê se não confunde o homem com nenhum dos envolvidos em escândalos, senão você é capaz de chamar a Polícia Federal.


FINAL

 No final do expediente Dulcinéia voltou para casa num ônibus coletivo abarrotado, mas estava feliz por não ter engrossado a fila dos desempregados. Mais feliz ainda pela expectativa de ver as suas novelas. E assim, já bem tarde, quando desligou a TV, deitou-se na sua cama de casal, preparando-se para a sua merecida noite de sono. Lentamente seus olhos foram se fechando, enquanto um sorriso ia se espalhando pelos lábios. Ela adormeceu e os sonhos  povoaram a sua mente.



Um homem alto, corpo atlético e pele bronzeada de sol, olhos castanhos e cabelos longos, desgrenhados pelo vento, aproximava-se do castelo num cavalo branco. Ele usava uma calça larga de algodão cru, presa no tornozelo e uma faixa longa e branca na cintura. Nada mais.

Ouvindo os cacos do animal ao longe, Dulcinéia aguçava os ouvidos. O som ia chegando mais perto. Ela saía da cama e abria a janela do quarto.

Galopando, o cavaleiro de cabelos ao vento avançava, apressado em chegar.

Fazia calor. Dulcinéia vestia o hobby de rendas e saía para a varanda. Sua pele morena fazia contraste com o branco do tecido das roupas.

O rapaz já estava na frente do castelo. Ao vê-la sob o luar, com aquelas roupas esvoaçantes, olhava-a longa e apaixonadamente nos olhos.

Ela estremecia. O rapaz não conseguia desprender o olhar do seu rosto, fascinado por sua beleza. E fitando-a, ele desatava a faixa e jogava-a ao vento. Dulcinéia estremecia. Sentia que iria desfalecer. O rapaz empinava o peito musculoso. E o cavalo, trotando, aproxima-se da varanda.

No céu a lua se exibia, testemunhando a cumplicidade daquele amor.

E de repente, num passe de mágica, aquele homem de olhos castanhos, montado num cavalo branco, roubava-a, como antigamente. E juntos iam para  bem longe, a caminho da felicidade.



Ela acordava no dia seguinte pensando no sonho, tonta de felicidade. Escancarava a janela do quarto. Ao longe, os primeiros raios de sol começavam a riscar o horizonte, rompendo as brumas.

Sorridente, Dulcinéia declamava:

- Branca manhã, como és bela!

Os braços se abriam e as mãos esticavam num gesto de bailado. Voltava dançando para o interior do quarto e consultava o espelho.

- Meu espelho, diga-me que o meu amor vai chegar hoje. Diga-me e serei a mulher mais feliz do mundo!

Implorava e parava para ouvir a voz do espelho. O silencio era interrompido somente pelo barulho dos ônibus coletivos que começavam a circular, anunciando mais um dia de trabalho.



EPISÓDIOS 06

YANA BAHRA

GRAVACAO DE UM VÍDEO PARA UMA ONG BRASILEIRA NUMA PRAÇA DA CIDADE. PALCO INSTALADO, SEMELHANTE A UM CARRO DE SOM. CÂMERAS. FIGURANTES. ATRIZ ENCAPUZADA E USANDO UMA CAPA PRETA QUE LHE COBRE TODO O CORPO. SET PRONTO PARA A GRAVACÃO. DIRETOR - CABELOS DESGRENHADOS CAINDO NO ROSTO, BERMUDA DE BRIM, CHINELOS DE COURO - DANDO AS ORDENS.



- 1, 2, 3... Silêncio! Começar a gravar! Você... chegue mais pra frente. Cadê os cavalos? E os bêbados... os mendigos? ...sai da frente da atriz. Levanta mais a atriz! Cadê as bailarinas? Meu Deus, vou ter um ataque do coração!

Os figurantes começam a se movimentar. Uma mulher da equipe de maquiagem chega atrás de Sérgio, o diretor, para amarrar o cabelo dele.

- Que tá fazendo, maluca? Sai daqui! 

E grita para o pessoal do palco:

- Tire o espelho da frente da atriz! Não tô vendo nada... Levante mais a atriz...  chegue mais pra frente, Yana... pra frente!!! Tá surda, Yana Bahra!

Furiosa, a atriz vai protestar, mas se contém e vai para o centro do palco, enquanto o diretor berra.

- Você, vestindo essa roupa de mulher... sai fora! Some daí!

- Eu?

- Cai fora! Você é muito ruim!

- Eu fiz teste!

- Você não me convence como travesti... é muito másculo! Some!!!

O ator pula do palco xingando o diretor e desaparece no meio dos curiosos.

- Você também. É muito branca! O vídeo é brasileiro. Brasileiro, entendeu? Você parece uma dinamarquesa! Some daí!

Desapontada, Andie von der Ghlantèe  desce do palco e fica no meio da multidão assistindo. Perdeu a sua primeira chance de participar de um trabalho para a TV, mesmo como figurante.

Sérgio vai contornando o palco e bem adiante encontra outro obstáculo.

- Essa outra aí, ei morena... Mulher, por acaso você tem cara de doente pra fazer papel de doente? Chispa também!

- Sem educação! Vem aqui me dizer isto, vem! Te dou um tapa!

Dulcinéia xinga o diretor e desce do palco nas nuvens, sentindo-se como se todas as luzes estivessem focalizado-a. Entretanto, os iluminadores estão   ocupados, procurando solucionar um curto-circuito que quase estragou a filmagem.

Quando finalmente resolvem o problema, Dulcinéia, remoendo a sua raiva, já está a caminho de casa.  

- Se eu tivesse uma tocha, botava fogo naquele cenário. Queria ver!

Entra no ônibus, pisando alto, reclamando:

- Esses cabecinha branca não pagam passagem e ficam na entrada, atrapalhando a gente!

Um idoso olha para ela e sorrindo aconselha:

- Calma, menina! Um dia você chega lá!

Dulcinéia percebe que foi grosseira, mas de birra não pede desculpas e vai se sentar no banco traseiro.



2ª parte 

Enquanto isso, no set, o diretor está dando as últimas ordens.

- Atenção! Vamos gravar! Vai girando o palco lentamente...  Eu disse lentamente!!!  Você Yana, erga o braço direito, vai deslizando o braço e falando...  fitando o infinito... com olhos abstratos.... Atenção! A cada frase da atriz, o figurante vai assumindo o personagem, ok?

Yana ergue a cabeça. E com a mão esquerda segura a capa para que não abra. E erguendo o braço direito, com gestos agressivamente ensaiados e uma voz impostada a ponto de não ser reconhecida, começa a falar:



"Busquem nos becos, os bêbados adormecidos.

Desatem os loucos de suas mordaças sanitárias.

Abracem e tragam no colo as putas das esquinas noturnas.

Troquem as roupas brancas e frias dos doentes nos hospitais.

Dêem o braço para os homossexuais enganados, amantes maltratados.

Façam um ninho de flores e nele transportem as crianças das ruas.

Tirem dos asilos os velhos abandonados, famintos e maltratados.

Peguem nas mãos os travestis tristes e borrados sob a chuva da ignorância.

Procurem as bailarinas dos cabarés pobres com uma túnica de compaixão.

Beijem as mãos e conduzam as mulheres feias, melancólicas, desamadas.

Busquem os solitários, os presos em seus terrores, os faroleiros.

Resgatem da escuridão os que sofrem por amor e choram sozinhos.

Encontrem as viúvas e as mães que perderam seus filhos.

Retirem da guerra os soldados, os rotos, saudosos, sozinhos.

Venham com as mulheres solitárias, sozinhas ou não.

Busquem os pecadores, os sem juízo, os amantes clandestinos

Carreguem em seus braços os cães abandonados

E os cavalos cansados do trabalho.

Vamos juntos à festa..."

           

E assim vai sendo feito. A cada frase que Yana Bahra diz, o figurante assume o personagem e a câmera se desloca para focalizá-lo. 

Por fim, correndo, Sérgio grita:

- CORTA!!! CORTA!!! Perfeito! Terminamos, Yana!

A atriz literalmente arranca o capuz, abre os braços e deixa cair a capa, exibindo um corpo branco completamente nu, magro e escultural. Remexe os cabelos longos e louros. Seus olhos azuis ultrapassam a multidão como se fossem um radar. Instantaneamente, flasches pipocam por toda parte. Há um corre-corre de fotógrafos e fãs empurrando uns aos outros. A multidão, em delírio, começa a gritar.

- Y-a-na!  Y-a-na!  Y-a-na! Y-a-na!

Sérgio sobe correndo no palco.

- Ficou maluca? A nudez não faz parte do script!

- Improvisei, querido, improvisei!

-Ainda bem que posso cortar...

 Quase espremida no meio daquela gente toda, Andie é tomada de surpresa. Sem se conter, grita: 

- Meu Deus... mamãe! É a minha mãe! Mamãe!!!



O som de sua voz é abafado pelos gritos frenéticos. Andie tenta abrir caminho na direção do palco. A multidão enlouquecida a impede de sair do lugar.

No mesmo instante uma camareira chega correndo e cobre a atriz com um lençol de seda. E sem que ninguém perceba, prega algo na capa. Sob aplausos, Yana Bahra deixa o local. Policiais fazem um cordão de isolamento. Ela entra num carro estacionado debaixo do palco. O motorista avança lentamente pela rua. E da janela do banco traseiro, a atriz, com a mão direita, acena se despedindo, enquanto a esquerda movimenta-se agilmente, retira o objeto pregado na capa e esconde no sapato de bico fino.

O diretor, agora mais calmo, anuncia lá de cima:

- Atenção! Os figurantes cadastrados podem se dirigir à van para receber o cachê. Somente os cadastrados!

Os figurantes começam a deixar o set e se encaminham para a rua, formando uma fila ao lado da van, guardada por um forte aparato policial.  

Novamente a voz do diretor soa no megafone

- Agradeço a todos a presença aqui e peço desculpas. Infelizmente Yana Bahra não poderá conceder entrevistas. Seu vôo parte daqui a uma hora para Los Angeles.


FINAL

Andie sai dali desolada, com a cabeça vazia, sem saber o que fazer. Anda sem destino pelas ruas. E quando um motoqueiro freia bruscamente quase junto de si, a menina leva um susto.

-  Andie!

- Professor, o senhor?

- O trânsito está uma bagunça! Resolvi desviar por aqui e encontro você!

- Estão fazendo um vídeo para uma ONG.

- Não foi você que  provocou a confusão, como naquele dia no colégio? Ele está feliz por encontrar a lourinha pela segunda fez.

- Professor...

- Pode me chamar de Felício!

- Prefiro professor, se não se importa!

- Claro que não! - diz, meio decepcionado.  - Quer uma carona?

- Beleza!

Andie coloca o capacete e sobe na moto. Hoje ela usa um jeans comum,  camiseta de malha branca e tênis. Bem simples, mas o seu ar angelical encanta Felício. Distraído, ele enfia as mãos nos bolsos da jaqueta e não dá partida na moto. Fica ali, perdido em pensamentos, quando ouve a voz quase sussurrante no seu ouvido:

- Estou pronta!

- Onde quer que a leve? Desculpe, me pareceu meio desnorteada...

- Professor, o sr. adivinha estado de espirito também?

Felício percebe que se precipitou.  E alisando os cabelos negros caídos na testa, justifica-se:

- Não quis ser indiscreto! Desculpe, Andie!

- Nada! Estava passeando pelas ruas. Pra conhecer mais a cidade.

- Quando volta para o Balneário Camboriú?

- Não sei... - pareceu hesitante. - Sei lá se volto!

- Não quis estrelar o vídeo? - brinca.

- Quem sou eu! Nem sei como faria isso!

Depois de longo tempo em silêncio, parado, Felício Galvão dá partida na moto, seguindo as direções da lourinha. Após dirigir alguns minutos, tem a sensação de que as suas costas foram tocadas ligeiramente. Apesar do vento frio, sente um calor galgar-lhe o peito. Mas repentinamente surge alguém gritando, roubando-lhe aquela sensação.

- Doido! Fique na sua faixa! Viu a fechada que você me deu? Maluco!

O motorista acelera o carro, ultrapassando-o e gritando, irritadíssimo.

- Maluco!!!

Felício percebe que o homem estava certo. Ele, por um momento, perdeu a direção da moto, perturbado com a presença da garota junto de si.  Procura se controlar, quando a voz dela soa, tentando sobrepujar o barulho.

-   Me deixar ali! Vou  lanchar! Vamos?

- Vamos!

Felício estaciona de frente a uma lanchonete, mas imediatamente ela parece ter se arrependido da idéia.

- Vacilei, professor! Tenho que ir àquela loja antes!

Justifica-se. A voz soa triste e os olhos azuis fitavam-no intensamente, como se entendesse a decepção que está estampado no rosto de Felício.

- Ok, Andie!

- Tchau!

Felício Galvão faz a manobra. Andie não entra na lanchonete. Espera que ele saia. Felício não se decide. Sem saber porque, fica ali parado, olhando distraído as pessoas a sua volta. Outra vez a voz da menina despertou-o.

- Obrigado, professor! Pode ir!

- Tchau, Andie!

Ir não era o desejo dele. Queria ficar mais. Sentir o contato dela, o perfume discreto, o sorriso. Contra a vontade, vai acelerando a moto e se arrancando devagar. Vira-se rapidamente e vê a menina acenando. Por fim, contorna a esquina. Mal desaparece, a garota olha para todos os lados, como se procurasse alguém. Espera alguns minutos. Em seguida atravessa a rua e toma outra direção. 

O poema que a atriz YANA BAHRA recita é de autoria da poetisa Saramar Mendes de Souza.



EPISÓDIO 07

QUE MICO... 

As serventes estavam lavando uma sala e acidentalmente deixaram escorrer água com sabão pelo corredor. Dulcinéia vinha carregando uma bandeja e falando ao celular quando escorregou e o aparelho voou longe. Uma garota morena, cabelos castanhos na altura dos ombros, com um diamante preso numa trancinha e aparelho nos dentes, numa agilidade incrível, pegou o celular antes mesmo que estilhaçasse no chão.

- Que mico! Ela estava com o celular desligado! Ih, quando você quiser falar no celular, tem de esperar alguém te ligar ou você ligar pra alguém. Tá sabendo? - esclareceu Tina, a filha do Ministro, entre gargalhadas.

- Me dá meu celular, creTina!

Falou Dulcinéia entre dentes, disfarçando para que ninguém a ouvisse e encarando com desafio a aluna de 1,68cm, a atacante do time de basquete do colégio.

Nesse momento veio chegando Andie. Usava uma minissaia jeans com a barra desfiada e uma blusa vermelha de alcinhas. Sem olhar para Dulcinéia, parou de frente as duas e cruzou as pernas. Exibia uma caríssima sandália, que parecia desenhada exclusivamente para os seus pés. Sorridente, dirigiu-se a Tina.

- E aí?

Tina começou a falar, Andie rapidamente entendeu a situação.

- Qual é, Tina! Entrega o celular da copeira!

- Meu nome é Dulcinéia, branquela!

- Entregue o celular de Dulcinéia, Tina!

- Andie, ela fingia que falava com alguém no celular. - Tina cai na risada outra vez, enrolando a trancinha com o dedo.

- Deixa pra lá! Vamos ao shopping? Minha grana já tá na conta! - convidou e descruzou as pernas, movimentando-se na direção da saída da escola.

- Que grana, Andie?

- Qual é, Tina? Bateu a cabeça? Não sabe que grana? - falou baixinho, como se contasse um segredo.



Através da janela do Laboratório de Línguas, alguém observava a briga de Dulcinéia e Tina. Quando viu Andie chegar, seu coração acelerou. E acelerou muito mais quando as duas amigas saíram quase correndo. Ao perdê-las de vista, o professor Galvão voltou ao seu trabalho de tradução. No entanto, a mente divagava. Quando percebeu, o pequeno texto que ele deveria passar para o francês estava todo em alemão. Pensativo, embolou o papel e atirou-o no lixo. Olhou novamente pra fora e só viu as serventes trancando a sala já limpa. Subitamente, ele sentiu vontade de sair correndo dali e procurar Andie. Achou engraçado o desejo. Não era de cometer loucuras. A sensatez é que o tornara uma pessoa respeitável no colégio.



De uma outra ala da escola, alguém mais observou a cena, porém com uma diferente intenção.

- Vou proibir a entrada dessa garota aqui no colégio -  falou Clarice em voz alta, fechando a persiana.         



EPISÓDIO 08

A DESCOBERTA     

Felício Galvão era encantador em todos os sentidos, diziam as mulheres. Inteligente, bonito, alto, moreno e bem-sucedido. E o que ele tinha de melhor? Aparentava ser mais velho, sintoma de segurança. Possuía uma boa situação financeira, alimentada por algumas propriedades que ele não vendera na Itália e por outras adquiridas no Brasil. E sobretudo, gostava das pessoas indiferentemente, daí a razão de ser sempre procurado por todos que necessitassem de algo no Colégio Magnata.

Assim que ingressou na escola, Clarice vislumbrou logo as suas qualidades. E vislumbrou a ponto de desejá-lo não somente como o seu braço direito. Queria mais. Bem mais! Felício educadamente ignorava o fato e ia levando somente o seu trabalho a sério.



Na sexta-feira da semana em que Clarice chamou Dulcinéia à sua sala, Felício foi jantar num restaurante localizado no Galeria, um luxuosíssimo shopping construído em forma de circo, onde, no centro, localizava-se a praça de alimentação, os cinemas e um teatro de arena. Toda a cobertura daquele espaço era removível para que, nas noites de verão, os astros pudessem ser vistos a olho nu e também de um observatório. A cobertura, feita de telhas transparentes, filtrava toda a luminosidade que, juntamente com espelhos e vitrines, dava completa transparência e amplitude ao local. Corredores e divisórias foram construídos com vidro blindado, protegidos por estruturas metálicas pintadas em ouro envelhecido. A parte externa do shopping, onde não havia vitrines, era de tijolinho à vista, reminiscência de construções medievais. Arquitetura de vanguarda, onde antigo e moderníssimo se fundiam.

Local freqüentado por artistas, executivos, escritores, gente da moda e por quem procurasse badalação ou apenas desejasse ser descoberto por produtores e outros do ramo. Além disso, o shopping oferecia uma visão ampla das ruas laterais, nas sextas-feiras mais apinhadas de gente e carrões que entravam nos estacionamentos, monitorados por uma infinidade de circuitos ostensivos de TV.



O renomado professor sentou-se num canto do restaurante. Pediu um filé de peixe com salada russa, molho tártaro e água mineral. O restaurante estava lotado. Ele teve que esperar por muito tempo.

E enquanto aguardava, Felício olhou na direção do bar e notou que estava sendo observado por uma morena de saia vermelha, a qual exibia pernas de um encantador bronzeado de praia. A morena levantou discretamente o copo, fazendo a ele um brinde que era ao mesmo tempo um convite.

Felício agradeceu, inclinando a cabeça, e virou-se para um outro corredor do Galeria, olhando distraído para a rua. Do lado de fora vinha um barulho intenso do trânsito e das pessoas. Táxis faziam filas intermináveis nas ruas laterais do shopping. Passageiros embarcavam carregados de embrulhos de compras. E belas mulheres caminhavam pelo calçadão em direção dos táxis, como se estivessem numa passarela, misturando-se com executivos, pintores... Adiante, bem mais adiante, coletivos paravam, acolhendo os passageiros que corriam apressados para embarcar. Em suma, essa era mais uma cena que a cidade oferecia aos seus olhos, sem acrescentar nada de novo.



Por instante, o foco foi direcionado para a confusão ocorrida no colégio. A correria dos estudantes. A gritaria. Andie fugindo. Depois, o encontro com ela na rua. A carona na moto.

Felício reviu aqueles olhos cinza de pavor readquirindo o azul quando o encarou. E sentiu novamente o toque quente de sua mão, quando a ergueu do amontoado de livros na biblioteca. Sentiu o seu perfume suave e estimulante. Sentiu intensamente toda a emoção desde que a viu pela primeira vez na secretaria.

O professor ficou inquieto. Desde o fim do namoro, nunca mais se apaixonou. Aprendeu a ficar sozinho.



Mergulhado em pensamentos, olhou novamente para a morena de saia vermelha, agora ocupada com um outro rapaz e dividida entre ele e um fã que lhe entregava um livro para autografar. Desviou o olhar. Defronte do restaurante havia uma cadeia de joalherias. Felício estava olhando as jóias reluzindo numa vitrine giratória, quando viu Andie sair da loja com Tina. As duas remexiam dentro de uma sacolinha e riam, contentes com o viam lá dentro. Felício, surpreso, não se conteve e gritou lá de dentro do restaurante mesmo:

- Andie!!!

Claro que a menina não ouviu e seguiu pelo corredor. Usava uma minissaia baixa, que deixava à vista a tatuagem às bordas do umbigo e mostrava um par de pernas que pareciam mais longas dentro das botas de cano alto. A blusa verde-água, colada no corpo, era adornada com pedras, contornando a gola em V até à cintura. Os brincos eram os mesmos, em forma de bulbo, aqueles comprados em Budapest. O seu andar tinha algo de celestial para Felício. Era um anjo flutuando pelo imenso corredor, seguido dos olhares cobiçados de todos os rapazes com quem cruzasse.



Sem pensar no que fazia, ele chamou o garçom. Queria sair correndo atrás da menina. Não sabia o que iria dizer. Que importava?

O restaurante estava superlotado e o garçom demorou. Felício ficou impaciente e resolveu sair, mas viu a lourinha e Tina pegando um táxi. Decepcionado, voltou a se sentar, quando ouviu soar um alarme e pessoas correndo. No mesmo instante, seguranças armados avançavam pelos corredores. E em meio à confusão, um senhor idoso, entrando no restaurante, falou indignado, dirigindo-se a ele: 

- Acabaram de assaltar a joalheria! Como pode?

Felício Galvão nem deu importância ao fato. Sua mente só via Andie entrando no táxi. Subitamente, ele descobriu algo que o fez sentir-se tristemente alegre. Descobriu que Andie von der Ghlantèe estava oferecendo ao seu coração algo que há muito tempo ele nem imaginava encontrar. 



EPISÓDIO 09

O TROCO  

Havia na Ala Oeste do Galeria uma lanchonete especializada em fast food dietético, muito requisitada por pessoas que queriam manter um padrão adequado de peso.

No mesmo dia, depois de alguns minutos do assalto à joalheria, apareceu no local uma mulher alta, elegantíssima, de cabelos negros a altura dos ombros e toda de preto. Entrou apressadamente no recinto e foi direto para uma mesa de dois lugares, quase escondida num canto. Mesmo vendo o garçom vindo na sua direção, sacudia a mão em gestos nervosos, convidando-o a se apressar. Um rapaz magro e louro, que usava calça preta, blusa azul turquesa e um avental branco à altura dos joelhos, atendeu-a.

- Pois não, madame!

- Chá de erva-doce, por favor!

- Madame, aqui não servimos chá. A nossa especialidade é sucos e sanduíches. Tudo natural!

- Eu não perguntei qual é a especialidade da casa. Pedi chá. - disse a mulher, abrindo a bolsa de onde sacou uma nota de R$ 50,00 e a faz deslizar discretamente sobre a toalha da mesa na direção do garçom.

Com uma expressão ávida no rosto, o rapaz olhou rapidamente ao redor e mais rápido ainda, embolsou a nota.

- E pra já, madame!

Em seguida, atravessou apressadamente o salão sem dar atenção aos chamados de outros fregueses e entrou na cozinha. Foi logo dizendo a um colega. 

- A madame lá naquela mesa quer um chá de erva-doce!

O outro olhou na direção apontada e viu uma mulher de aproximadamente uns 35 anos, luxuosamente vestida, sentada com as pernas cruzadas de lado da cadeira.

- Mas não temos erva-doce!

- Não tínhamos! Esta nota aqui diz que temos. - exibiu a nota. - Agora, corre ao supermercado. Se não voltar dentro de 10 min, está despedido.

O rapaz saiu correndo pela porta dos fundos.


II

Depois que tomou o chá, a mulher chamou o garçom.

- O meu troco!

- Troco, madame? A sra ainda não pagou!

- Não? E aquela nota de R$ 50,00 que saiu daqui? - mostrou a bolsa.

- Pensei que...

- Pensou nada! Me devolve a nota ou faço um escândalo. "Você sabe com quem esta falando" - disse, num outro tom de voz e deu uma sonora gargalhada, olhando para cima, como se o nariz perfilado por uma milionária plástica estivesse mirando o teto.



Assustado, o rapaz saiu correndo. Imediatamente voltou com a nota. Ela se levantou, pegou a bolsa e foi saindo. Quando chegou na porta, voltou-se e falou para o garçom, apontando o dedo.

- Subornável!

III

Saiu rebolando pelo corredor e viu policiais postados nas portas do Galeria, as quais estavam todas fechadas. Achou aquilo estranho, mesmo assim foi andando na direção da saída.  Uma policial feminina abordou-a.

- Documentos, por favor!

- Dá licença?

- Não pode sair!

- Eu paguei a conta!

- Senhora, não ouviu o alarme?

- Que alarme? Se toda vez que eu ouvir um alarme, sair correndo, fico maluca. Lá em casa tem alarme até no galinheiro.

Disse e caiu na gargalha, erguendo a cabeça para o alto e balançando os cabelos excessivamente negros de tintura, que roçavam nas costas. A policial não achou a menor graça e tornou a dizer:
- Documentos!

A mulher repetiu a frase que disse ao gerente da lanchonete, fazendo aquela voz impostada de gente importante.

- A senhora sabe com quem está falando?

A policial apontou para um ônibus parado no estacionamento do shopping.

- Prefere mostrar os documentos na delegacia?

Diante do argumento, ela abriu a bolsa e mostrou uma carteirinha verde, com emblema do governo. Imediatamente houve uma mudança de atitude.  
- Júlia Conceição de...

- Fala baixo! Quer me matar de vergonha? Odeio esse nome!

- ... esposa do Ministro...

- Ai soa melhor! Pode falar alto, viu?

- Pode ir! Está liberada, madame!

Ela deu outra sonora gargalhada e saiu rebolando ainda mais, apontando para a policial com a mão esquerda. E com a direita, acenou para um táxi. O vestido negro coladíssimo no corpo e os dois braços abertos, davam a Júlia a aparência de um pássaro ensaiando o vôo.



EPISÓDIO 10

ECONOMIA VERMELHA  

Fazia muito calor. Os adolescentes estavam agitados, na maior algazarra, jogando bolinhas de papel uns nos outros, cutucando as meninas, gritando e subindo nas carteiras quando o professor Galvão chegou. Eles pararam com a bagunça? Claro que não! Só porque um professor chegou, eles iriam interromper o fusuê? Não mesmo!



Para conter os ânimos e como adorava ortografia, o PhD resolveu fazer o seguinte joguinho: dar um ditado para em seguida os alunos usarem as mesmas palavras numa redação.

- Passa o ditado no quadro, professor! - pediu um aluno menos comportado.

Todos caíram na risada. Era sempre assim. Alguém esperava que o outro soltasse uma piadinha pra sala inteira rir.

- Você me deu uma boa idéia.  É o que vou fazer.

- Oba! - a sala inteira gritou, mas um valeu brother soou mais alto.

Felício Galvão voltou-se para o quadro. A turma abriu os cadernos. Repentinamente, o professor virou-se para a sala e determinou:

- Escrevam!  

Tiago argumentou, meio chateado.

- O senhor não ia passar no quadro?

- Pretérito!

- Não saquei! Viajei nessa!

- Pretérito: passado. Ia, não vou mais!

- Ah!...

A sala inteira estava em silêncio aguardando o seguinte: que o professor começasse o ditado ou que surgisse uma gracinha pra todo mundo cair na risada. Pintou a primeira opção.

O professor disse para a garota de cabelos castanhos que passava batom:

- Tina, assim que eu terminar, você dita e eu escrevo no quadro para a correção. Assim me livro de ver tanto vermelho na minha frente.

Um tatuado, puxa-riso, disse.

- Putz, Professor!  O senhor também não gosta de vermelho?

- Ao contrário. Gosto tanto que vou economizar a tinta vermelha da minha caneta!  

Encerrada a aula, os alunos deixaram a sala voando, empurrando uns aos outros, Alguns pela janela mesmo. O renomado professor ficou sentado, organizando as folhas de caderno e olhando Tina configurar o celular. Quando a menina se levantou...

- Tina, quero falar com você!

- Ai, professor. Pode baixar a guarda! Eu não fiz nada! Aquela Dulcinéia é uma chata!

- Não é sobre isso...

Tina olhou-o intrigada. Ele perdeu a coragem de falar.

- Rápido, professor! Meu motorista está me esperando, mas acho que já sei o que é!

- Sabe nada. Pode ir, Tina!

- Xi!!! Não quer falar.... Fui!

E saiu. Felício ficou sozinho, olhando pensativo para a janela por onde os alunos pulavam aos montes, um atrás do outro, na maior algazarra. Entretanto, não se passaram dois minutos e a porta se abriu novamente. Tina entrou apressada e entregou a ele um pedaço de papel.

- Taqui, professor, o que o sr. queria! Mas vou logo avisando: ela viajou!

Felício agarrou rapidamente o pedaço de papel e enfiou no bolso da camisa. A filha do ministro saiu. Ao se ver sozinho, ele abriu o papel e deu pulos de alegria. Dava socos no ar, segurando com força o papel onde constava o número do celular de Andie.

E nessa euforia toda, dirigiu-se para a sala da diretora. Antes de entrar, respirou fundo e assumiu uma outra postura. A postura do professor mais respeitado do colégio.



EPISODIO 11

QUEM SABE UM NOVO AMOR?

- Clarice, veja este desastre ortográfico. Olha o absurdo! Você não acha que a gente devia incluir o latim na Grade Curricular? 

Enquanto falava, o renomado professor mostrava folhas de caderno rabiscadas de vermelho para a diretora.

- Felício, os alunos vão dizer que estamos fedendo mofo. - replicou Clarice, procurando uma pulseira no meio da papelada espalhada sobre a mesa. Quando resolveu olhar os exercícios, exclamou: 

- Céus! Às vezes nem da pra entender o que escreveram!

- O latim daria base para a ortografia. - ponderou o PhD.

À medida que a diretora lia, seus olhos se arregalavam mais e mais. Entretanto, a surpresa foi rapidamente contida quando viu a porta ser empurrada lentamente e aparecer o bico de um sapato preto fechado. Depois, veio surgindo uma bandeja de prata. Era Dulcinéia, que além do lanche, trazia no rosto um ar de preocupação.

A diretora se dirigiu a ela, abotoando a pulseira:

- Pode deixar aqui, Dulcinéia. - falou, mostrando uma mesinha ao seu lado.

Ao perceber que a copeira não se movia, Clarice repetiu.

- Deixe a bandeja na mesinha! E ligue a TV, por favor!

 Dulcinéia estava preocupada porque a sua mãe, dona Maria Porém, hipertensa, não estava bem naquele dia. Quando ela saiu cedinho de casa, o remédio da mãe havia acabado. E não houve tempo de ir a farmácia comprar outro.

Ela obedeceu, deixando a bandeja no local indicado, mas quando ligou a TV, uma notícia a fez esquecer por um momento o problema, substituindo a preocupação por revolta. 

... " presos os dois bandidos que assaltaram a joalheria no shopping Galeria - um homem jovem com aparência  eslava e uma mulher morena, de uns 40 anos. A Polícia  Federal está investigando o caso, pois existem fortes indícios de que a quadrilha é formada por estrangeiros e que tem ramificações aqui no Brasil...

- Era só que faltava! Não bastasse a nossa violência, esses gringos vêm roubar aqui?  - Dulcinéia já demonstrava uma repentina mudança de humor.

- Nesse dia, eu estava jantando no shopping! - contou Felício.

- Coincidência! Eu também estava lá! 

Percebendo que os dois não deram importância ao seu comentário, Dulcinéia se retirou da sala, pensando:

- Pagava pra ver essa diretora, baratinada, correndo no meio do tiroteio. E o professor? Não, ele não! Se não fosse por ele, essa cascavel já teria me demitido


2ª parte

Encerrada a reunião, o prof. Galvão saiu da diretoria. No corredor, avistou Dulcinéia escoltada por dois alunos, os quais, rindo alto, penduravam em seus ombros.

O PhD acelerou os passos.

- O que estão fazendo fora da sala?

- Viemos tomar água, professor!

- Nos ombros de Dulcinéia? A fonte secou! Já pra dentro! E você Dulcinéia...

KK e Tiago correram, segurando as calças frouxas que desciam, querendo deixar as cuecas sozinhas.

Dulcinéia fingiu que não ouviu e foi andando devagar, como se nada tivesse acontecido.

O renomado Professor alcançou-a:

- Dulcinéia, você dá trela demais pros alunos... 

- Trela?

Ela sabia o que o PhD queria dizer, entretanto, quis fazer uma expressão de espanto que havia ensaiado há algum tempo no curso de teatro.

- Trela, confiança... ficar brincando com eles.

- Professor, somos amigos!

- Sei, mas não vamos transgredir as regras!

- Prometo que nunca mais vai acontecer, professor!

Finalizou a conversa e seguiu pelo corredor, passando os dedos abertos entre os cabelos, remexendo-os. Cabeça e ombros erguidos. Não rebolava. Lembrou-se de um curso que fez, no qual a professora de Ética e Postura recomendava: - "Você é uma mulher sensual. Linda e maravilhosa. Nunca rebole! Deixe que os quadris balancem ao ritmo dos passos. Ande ereta. Fite as pessoas com simpatia. Ponha uma expressão de felicidade na face e o resto... o resto... tudo pode acontecer!"

As alunas sorriam com simpatia, fazendo desabrochar a mulher maravilhosa que cada uma tinha dentro de si.

No final do turno escolar Dulcinéia voltou pra casa com a cabeça nas nuvens, feliz da vida, sem nem saber o motivo. Ao subir os degraus do ônibus, percebeu que ainda não tinha visto aquele motorista. Devia ser um novato na linha. Ela disse boa tarde. O rapaz respondeu com um aceno e um sorriso que mostrava dentes de dar prejuízo ao dentista, o que a fez esquecer dos cabecinha branca que ficavam atrapalhando a entrada. Ela empinou os ombros, deu três passos à frente e passou pela roleta, encantadoramente, girando os quadris de maneira graciosa, desejando ser vista por todo mundo.

Infelizmente alguns trabalhadores aproveitavam o longo percurso do ônibus pra tirar um cochilo.

Ela sentou-se ao lado de um padre. Queria que naquele lugar estivesse um jovem atraente. Recostou a cabeça na janela, apoiando o queixo com o dorso da mão direita e fechou os olhos.

O pensamento ganhou asas, juntamente com o ônibus que avançava pela avenida arborizada. 



EPISÓDIO 12

PENSAMENTO ALADO 

Dulcinéia chegou em casa pensativa. Não quis jantar. Estranhamente o motorista

não lhe saía cabeça. Como sempre, ligou a TV para ver as suas

novelas e sem se dar conta, começou a trocar os canais, até que algo

lhe chamou a atenção. Era um repórter de televisão preparando uma matéria.

O rapaz corria de um lado para o outro da rua, procurando alguém pra

entrevistar. Quando finalmente encontrou uma mulher carregando uma pesada

sacola e ela concordou, ele iniciou os trabalhos dizendo:

"Ainda bem que o Brasil é um país democrático. O povo é livre. Não existem preconceitos de raça e nem de cor. E tudo vai muito bem. Querem ver? "

E dirigindo-se à mulher:

- Diga para o telespectador. A senhora tem algum preconceito de raça?

- Sim. Detesto cachorro.

-  Algum preconceito de cor?

- Eu detesto vermelho. Me decepcionei com...

- É livre a mulher brasileira?

- Eu, pelo menos, sou casada.

- Já sofreu alguma discriminação?

- Já. Não recebo mensalão. Nunca fui subornada! Sanguessuga que conheço é aquele bichinho que dá nas águas.

- O que acha da situação atual?

- Boa. Muito boa! Eu moro bem... mal, ganho bem... mal. O dinheiro corre solto para o bolso dos mesmos. Tudo bem!

- Acha que a inflação está sob controle?

- Inflação? Que é inflação? É algum ataque terrorista?

-  E o problema da moradia...

- Graças a Deus, não tenho esse problema. Meu barracão tem exatamente 14,88m2 de área. Construído pela Prefeitura.

- E a criminalidade? Os pivetes que assaltam...

- Nunca fui assaltada! Quando vejo uns 187 pivetes vindo na minha direção, entro correndo na primeira loja que vejo aberta.

- Por que a primeira loja aberta?

- Porque muitas já foram fechadas. Dizem que é a crise econômica.

- E as longas filas do SUS?



- Diz o "homem" que vai acabar com as filas. Prometeu alargar as portas do SUS. Assim o povo pode entrar todo de uma só vez.

- Sobre as escolas, a educação...

- Lá no meu bairro os vândalos não deixam um vidro inteiro. Quebram tudo.  A escola está em ruínas.

- E sobre a vida do brasileiro comum, que luta pela sobrevivência?

- A vida do brasileiro comum está de amargar pra quem sente inveja da "felicidade" dos outros.



 O facho de luz que jorrava sobre Penha, a cozinheira do Ministro, foi apagado, pondo fim à entrevista. Ela sorriu, satisfeita por ter debochado da situação brasileira e ergueu do chão a pesada sacola, onde carregava sobras de comida para os dois filhos. E ainda sorrindo, seguiu para o ponto de ônibus.



Em seu quarto, sem ver uma novela sequer, Dulcinéia ficou lembrando da sua tentativa de participar do vídeo com Yaha Bahra, o diretor Sérgio, irritadíssimo, gritando com os figurantes. Tudo muito louco, agitado. Rindo baixinho para não perturbar a mãe que dormia no outro quarto, ela desligou a TV, dizendo:

- Mulher maluca, essa...

Ligou um rádio que havia sobre o criado e ficou deitada, imóvel, ouvindo músicas. Pensamentos começaram a polvilhar a sua mente. Algumas horas depois, uma sensação de leveza foi invadindo o corpo e ela caiu no sono.

Surgiu novamente o cavaleiro de cabelos ao vento, que agora, embaralhado em seus pensamentos, girava o volante de um ônibus coletivo. Do nada, aparecia o prof. Galvão, alto, moreno, andando apressado pelo imenso corredor do colégio. E retirando os cabelos negros da testa, arrancava violentamente o volante das mãos do motorista. E jogando uma faixa branca ao vento, de longe mesmo ele gritava para a sua mãe.

- Dulcineia dá muita trela para os alunos, d. Maria Porém!

Ela entrava no ônibus. Dizia boa tarde. O motorista acenava com a cabeça e sorria, mostrando dentes de dar prejuízo ao dentista. Os cabecinha branca se afastavam, desobstruindo o corredor. E um deles, brincando, perguntava:

- Você é a namorada do motorista, menina?



EPISÓDIO 13

O SUBORNO

Wenderson, o porteiro do colégio, negro, namorador, fanqueiro, louco por qualquer menina, quando saía à noite pra "catar", como ele mesmo dizia, vestia-se de maneira quase irreconhecível, como qualquer jovem da sua idade. Boné, roupa dark, botas pretas, correntes, etc.

E naquela noite, enquanto se preparava pra ir à Quadra, recebeu um telefonema que o deixou mais animado ainda. A garota falava com voz macia, sensual, procurando se insinuar. Mas em determinado momento, quando a menina mudou o rumo da conversa, Wenderson ficou intrigado:

- Peraí, gatinha! Qual é a sua?

- Ué bro, tô te falando?

- Ainda não saquei porque devo tirar uma foto da lourinha pra você. Qual interesse?

- Véio, vai amarelar? Pô! Deixo o celular naquele lugar que te disse. Junto, três notas de R$ 100,00. O que você tem a fazer é...

- Mas....

- Posso continuar? - a garota pareceu irritada.

- Vai fundo!

- Tu pega o celular e as notas. Quando vir Andie, discretamente fotografa ela. E depois devolve o celular no mesmo lugar onde pegou. Quando devolver, tem mais duas notas de 100 pila* te esperando.

- Uau!!! - o rapaz deu um salto. -Tá valendo, gata!

- Tem que pegar o celular daqui a meia hora. Vai à Quadra?

- Já tô atrasado!

- Demore mais meia hora.Vai faturar uma grana legal! Vou colocar o celular no lugar combinado, ok? 

- Ok, gatinha! Gostei da sua voz, sacou? Depois a gente poderia...

A resposta que obteve foi o corte brusco da ligação, que o deixou meio abobalhado.

Quem estava ao lado da garota, depois de desligar o telefone, estendeu duas notas de R$ 100,00 pra ela, que feliz com a recompensa, confessou:

- Putz!!! Nunca pensei que um trote me rendesse tanta grana!

Quem estava ao lado da garota acenou irritado, pedindo-a para se retirar.

Wenderson colocou o boné, ajeitou a calça cuidadosamente para que a beirada da cueca branca de grife aparecesse e olhou o relógio. Pensou nos 300 pila que iria faturar na maior moleza e se preparou pra ir ao local indicado.


2ª parte

Meia hora depois, o porteiro pegou o aparelho, ao mesmo tempo em que uma idéia atravessou a sua mente. Iria descobrir o número do celular e assim faturar mais grana em cima de quem ligou.

Ao se dirigir para o baile fanque depois disso, ele nem imaginava que todos os seus passos estavam sendo matematicamente observados. 



Três dias depois, Wenderson recebeu outro telefonema da mesma pessoa. Ele já havia fotografado a lourinha e iria devolver o celular. Embora fosse um aparelho de última geração, o rapaz não conseguiu descobrir o número. Acabou desistindo. Afinal, tinha ganhado R$ 300,00 na moleza. 



Conforme combinado, deixou o aparelho num canteiro de gerânios e ficou escondido atrás de uma árvore pra ver quem viria buscá-lo. Passou-se muito tempo. O rapaz começou a ficar cansado e resolveu se sentar num banco meio escondido pela vegetação, quando passou por ele uma garota negra, linda, de trancinhas afro e bastante atirada, fumando.

Wenderson não resistiu quando a garota se sentou num banco de frente e ergueu a perna pra amarrar o tênis. Ele viu "tudo". E "aquilo" deixou ele doidão. Levantou-se e foi até lá. Ela sorriu, disse um oi. O rapaz sentou-se tão perto que sentia o calor do seu braço.

- E aí, gata?

A menina, jogando o cigarro fora, completou.

- Estamos aí!

- A fim de um cineminha?

- Só... mas antes, me espera aqui? Vou ao banheiro do parque!

- Ok!

Ela saiu. Wenderson se lembrou de que estava na expectativa de descobrir quem vinha pegar o celular. Rapidamente correu ao local. O aparelho já não estava mais lá. Decepcionado, ele constatou:

- Droga! Vacilei! Ainda bem que vou faturar a neguinha!

Assim que a garota contornou uma alameda florida, saiu de trás de uma árvore um motoqueiro, jaqueta de nylon, luvas de lã, botas sujas de lama e calça de moletom muito surrada. Irreconhecível, como qualquer motoqueiro de capacete. Não para a garota, que o esperava. Ele apenas esticou a mão sem ao menos abrir a boca e passou pra ela três notas de R$ 100,00. Com os olhos arregalados, a menina sorriu. 

- Desde o primeiro telefonema pro tal do Wenderson, não consigo entender...

O motoqueiro, irritado, dando chutes numa árvore, tirou as luvas. E como se fosse esganar a negrinha, avançou na sua direção.

A menina saiu correndo e gritando. Ele também se assustou com a reação dela. Subiu apressadamente na moto e se mandou dali.



Assim que se viu seguro, o motoqueiro estacionou, retirou do bolso o celular com a foto de Andie e olhou-a cheio de ternura. Depois, num gesto propício de uma criança, encostou os lábios no aparelho como se estivesse beijando a lourinha.

Felício Galvão fechou lentamente o celular e guardou-o no bolso da jaqueta. Seus olhos brilhavam de felicidade.



Nota: pila é real em gauchês. Não se usa no plural.



EPISÓDIO 14


NO INTERVALO EM QUE WENDERSON RECEBEU O TELEFONEMA, PEGOU O CELULAR E DEVOLVEU, VEJAM O QUE ACONTECEU.



 O CIÚME

- Felício, vamos proibir a entrada da lourinha aqui no colégio.

- Proibir, Clarice? No colégio entra tanta gente!

- É por isso mesmo! Imagine se acontece novamente aquela confusão que Dulcinéia aprontou!

O prof. Galvão não respondeu. Só de pensar na possibilidade de não ver mais Andie por ali, ficou inquieto.

Sorte é que a secretária da diretora abriu a porta e anunciou:

- Professor, aquele grupo de chineses, coreanos...  sei lá, que querem fazer o curso para estrangeiros, está aqui.  

Chateada por ter sido interrompida, Clarice determinou:

- Vai atender o pessoal, professor! Depois conversamos!



Felício saiu e encontrou o grupo esperando por ele. À frente estava um homem cabeludo, de terno creme e camisa azul, o qual falava corretamente o português.



A SURPRESA

No mesmo instante Andie vinha chegando. Andava apressadamente pelo corredor. Wenderson a viu, mas não teve tempo de fotografá-la porque outras pessoas passaram junto com ela.

- Droga, a lourinha entrou muito rápido. Perdi essa!

Fazia frio. Andie estava toda de preto - vestido, meia e sapato baixo - e trazia consigo um embrulho, um presente que comprou em Istambul para Júlia, a mãe de Tina.

Já chegando perto da cantina, ela avistou o grupo de asiáticos vindo em direção contrária a sua e imediatamente reconheceu o homem que falou com ela pelo monitor da TV do trem que atravessava a fronteira austro-húngara. Apavorou-se e começou a tremer, mas num relance, virou-se de costas, rasgou o embrulho, retirou apressadamente um véu preto e segurando-o de ponta a ponta, ergueu-o sobre a cabeça, cobrindo os cabelos louros e cobrindo também todo o rosto.

Wenderson captou todos os seus movimentos, desde o momento em que ela ergueu os braços e lançou o véu sobre a cabeça. E foi nesse exato momento que ele acionou o celular.

Com a cabeça completamente coberta, quase correndo, ela entrou noutro corredor em direção do estacionamento. O porteiro, ao olhar a sua imagem gravada no celular, enlouqueceu.

- Meu Deus! Que mulher! Agora sei porque Dulcinéia confundiu ela e aprontou aquela confusão!

Com o rosto quase todo coberto e olhando para o chão para que seus olhos azuis não fossem vistos, Andie saiu apressadamente dali.



EPISODIO 15

EM BUSCA DO FUTURO

- Senhora, tive um sonho uma noite dessas...

- Um momento. Você dorme de dia?

- Claro que não. Trabalho!

- Então o sonho só pode ter sido à noite. Continue!


Dulcinéia se irritou com a cartomante, a qual trajava roupas indianas e fitava-a com um olhar completamente desprovido de emoção, como se não houvesse ninguém a sua frente, contudo resolveu não perder a paciência. O seu futuro estava nas cartas daquela mulher.  Assim, começou a contar o sonho.

- Um rapaz chegava num cavalo branco, retirava uma faixa da cintura e atirava a faixa...

Com a mão direita sobre uma carta, a mulher quis saber:

- Faixa branca? Grande?

- Sim.

- A faixa representa vida longa. O branco, a paz.

- E o rapaz?

- Minha filha, a mulher do cavalo é que ele não pode ser. O rapaz é o amor que vai aparecer na sua vida. - disse a mulher, correndo os olhos pela minúscula sala decorada com paisagens de calendários, presas na parede com durex. 

- Ela me arrebatava da varanda, jogava na garupa do cavalo e...

Ajeitando um lencinho lilás que prendia os cabelos castanhos, ao mesmo tempo em que observava uma carta, a cartomante disse bruscamente:

- Momento! Vejo umas crianças.

- Bebês? - ela arregalou os olhos assustada.  - Meu Deus, que será que vou ser mãe de trigêmeos? Ou são os meninos do colégio?

- Você disse colégio?

- Sim.

- Então é isto! Veja um professor, alunos, uma mulher muito importante, morena...

Dulcinéia pensou no renomado professor com aquele seu jeito determinado de resolver as coisas e na diretora Clarice, sempre impecável e luxuosa no vestir.

- Se for quem estou pensando, lá do colégio, ela é loura.

- Filhinha, toda mulher, depois de certa idade, fica loura!

Mentalmente Dulcinéia reviu Clarice em torno dos seus 40 anos. E chegou a conclusão de que a cartomante estava com a razão.

- Esta mulher é sua amiga?

- Sei lá... É a diretora.

- Cuidado com ela!

- Por que? - Dulcinéia arregalou os olhos, abrindo ligeiramente os lábios.

- Vejo aqui rosas vermelhas, que representam namoro, ciúmes...

Dulcinéia ficou na ponta dos pés, apoiou os cotovelos sobre a mesa, olhou a carta na mão da mulher e retrucou:

- Essa rosa aí não é vermelha nem na China. Pra mim é azul.

Madalena olhou para a copeira com um olhar de arrancar pedaços.

- Você também lê cartas? 

- Claro que não!

- Então fique quietinha no seu canto!

- Que tem as rosas a ver com a mulher?

- Só o tempo dirá! - sentenciou a cartomante com voz carregada de mistério e fitando uma cortina de chita que já passava da hora de ser lavada. 

Dulcinéia se calou, pensando em sua mãe - dona Maria Porém, que a advertia para não dar créditos a essas crendices, já começando a desconfiar da cartomante, que rispidamente, encerrou a sessão.

- Pode ir agora. Seu tempo acabou!

- Mas, quero saber se o meu amor vai....

Mudando completamente o tom de voz, a mulher aconselhou:

- Filhinha, você está ansiosa. Paciência! Breve ele chegará!

No exato momento em que a mulher dizia essas palavras, ouviu-se uma freada brusca de um ônibus, seguida de um estrondo. Dulcinéia e a cartomante correram para a janela. Os curiosos já haviam chegado ao local e formavam um círculo, o que impedia de ver se havia alguma vítima.

O ônibus, tentando se desviar de um bêbado, bateu de cheio num poste. Dulcinéia saiu correndo da casa da cartomante e foi juntar-se à multidão. Foi então que ela viu um rapaz de costas, usando uniforme azul, cabelos negros cortados rente à nuca, enxugando o suor do rosto com uma flanela.

Minutos depois uma viatura da polícia chegou. Desceu um policial com uma prancheta na mão e dirigiu-se ao rapaz de uniforme azul, que se virou, mostrando o rosto. Dulcinéia estremeceu ao reconhecer o motorista novato da linha. Seu coração pulou de alegria. Virou-se e viu a cartomante na janela, olhando abstraída para o local do acidente.

Sentiu vontade de chamá-la de mentirosa, mas olhou novamente para o rapaz, que trazia um sorriso nos lábios, o mesmo sorriso que a fez estremecer naquele dia. Ela apontou o dedo na direção da janela e concluiu:

- Aquela charlatona está errada! O meu amor está aqui bem perto, enxugando o suor da testa com a flanela.



EPISODIO 16

UM AMOR DAS CORDILHEIRAS

Todo final de ano, o colégio onde trabalhava o prof. Galvão distribuía   bolsas de estudos para alunos carentes. E era a época em que o PhD se sentia mais realizado. Ele chegava cedo ao colégio para ajudar na distribuição das senhas. Não recebia dinheiro pelo trabalho, somente o prazer do qual não abria mão. O acadêmico adorava o contato com as pessoas. E ver a multidão que se aglomerava no portão da escola, no anseio de conseguir uma vaga num dos melhores colégios da cidade, era para ele algo de especial. 

Foi exatamente nesta manhã que Dulcinéia, chegando para o expediente, constatou que estava atrasada. Por isso, querendo passar despercebida, entrou pelo portão onde aglomeravam as pessoas. Para sua surpresa, Wenderson, o porteiro, estava postado lá. Dulcinéia fez meia-volta para não ser vista e passou no meio da multidão. De repente parou surpresa. Entre os pais estava o motorista, o do acidente do dia em que ela procurou a cartomante.  Dulcinéia meio feliz, meio decepcionada, concluiu:

- Se ele está aqui na fila, deve ser casado!

Esta preocupação durou poucos segundos. Um pensamento travesso invadiu a sua mente. 

- Já estou atrasada mesmo! A diretora Clarice nem vai me ver. O prof. Galvão tá bem entretido distribuindo as senhas...  

Sorrateiramente, Dulcinéia foi correndo procurar Tiago, um aluno, seu melhor amigo, com um pedido até certo ponto estranho. O rapaz se mostrou relutante.

- Sei não, Dulce! Vai pintar sujeira! O professor já deu bronca na gente.  Se eu levar uma advertência, meu pai me tira o carro. Você sabe!

- Sei é de uns docinhos que mamãe fez ontem. Hum... ela colocou figo cristalizado e damasco. Uma delícia!

- Você trouxe pra gente?

- Trarei amanhã, se meu plano for bem executado! 

- Beleza! Vou combinar com o KK. Ele trouxe a bolinha e a raquete. Vai ter um torneio no colégio nos dois últimos horários.

- Tiago, nem quero saber de raquete! Só se for pra dar umas raquetadas na sua cabeça, se meu plano falhar!

- Tá limpo!.

Instantes depois o portão foi aberto e as pessoas começaram a entrar ordenadamente na escola, fazendo uma fila que começava no guichê de uma sala até se perder de vista.


2ª parte

Inesperadamente uma bolinha rolou pelo corredor. Dulcinéia ia correndo atrás, tentando alcançá-la, sem se importar com os olhares curiosos sobre si. A bolinha já estava quase chegando perto do motorista, quando alguém, usando uma sandália de saltos altos e uma habilidade de um jogador de futebol, deteve-a com o pé esquerdo, comprimindo-a no chão. Depois abaixou para apanhá-la. Ao abaixar, um barulho de correntes soou quase imperceptível em meio ao burburinho das vozes.

Andie ergueu-se com a bolinha na mão, olhando em volta com seus olhos azuis intensos, procurando o dono da bolinha. Dulcinéia sentiu ódio dela e encostou-se na parede, mordendo o lábio.

KK e Tiago também correram na direção da garota, esquecendo completamente da copeira.

- Valeu! - falou Tiago, estendendo a mão pra pegar a bola.

- Lembra de nós? - quis saber KK.

A garota sorriu encantadoramente. Usava um jeans todo cravado de ilhós e correntes, e uma blusa lilás manga ¾, o que emoldurava os seus cabelos de um louro quase irreal.   

- Pode crer!

- Que faz aqui?

- Vim falar com Tina.

- A filha do ministro?

- Isso!

Os dois adolescentes falaram quase ao mesmo tempo.

- Esquecemos seu nome!

- Andie von der Ghlantèe!

- Hum... nome de artista, véio!

Andie sorriu novamente.  E acenou chamando:

- Tina!

A filha do ministro, gesticulando e falando entre dentes, ordenou:

- Rápido, Andie! Tô matando aula! Sua paixão Galvão não pode me ver!

A lourinha se movimentou:

- Vou nessa! 

Saiu correndo pelo corredor, agitando as correntes. Quando chegou perto de Tina, deu uma bronca.

- Corta essa de paixão Galvão, Tina!

Ainda parados no corredor e sem desviar os olhos de Andie, KK e Tiago literalmente berraram.

- Demais, mano!

As mãos estalaram no ar com tanta força que por um instante fez-se um silêncio surpreso na fila dos pais. 

Disfarçando, os dois olharam em volta à procura de Dulcinéia.

- Caramba, vacilamos com a Dulce! - falaram, segurando as calças frouxas e saíram correndo ao ouvir o sinal para o início das aulas.

Encostada na parede, Dulcinéia assistiu a todo aquele entusiasmo, tremendo de raiva. De repente olhou as horas no painel eletrônico do corredor e percebeu que estava bastante atrasada para o trabalho. Saiu apressadamente. Lágrimas escorrendo pelas faces. Dirigiu-se para o vestiário e colocou o uniforme, gritando e dando pontapés no armário:

- Aquela branquela tinha que atrapalhar! Logo quando tive a chance de chegar perto dele. Que ódio!

Dulcinéia tramou uma vingança:

- Vou servir losna pra ela. Digo que é menta e quero ver aquela branquela vomitando na frente de todo mundo! 

Falou alto e nem percebeu que uma colega acabou de entrar no vestiário.

- Falando sozinha, Dulce?

- Oh, Sabrina ... -  ela começou a fazer uma cena. - estou apaixonada. Como o amor me faz sofrer. Ele está aqui no colégio, mas não quero que me veja de uniforme.

- Quem?

- Está na fila dos bolsistas. E o pior é que apareceu a tal da Andie e estragou tudo. E depois saiu correndo atrás da pesTina...

- Atrás de quem?

- Da creTina!

- De Tina, você quer dizer.... esquece! Conta o que aconteceu!

Dulcinéia contou à colega o plano combinado com Tiago e KK. A colega não pôde conter o riso.

- Dulcinéia, você não tem jeito!



FINAL

- NO ÔNIBUS, AO VOLTAR PRA CASA.

- Acho que te conheço. Você trabalha naquele colégio. Sou Caio e...

Ela não o esperou concluir a frase.

- Dulcineia... vi o acidente de ontem com o ônibus!

- Viu?

- Conseguiu a bolsa pros filhos?

- Filhos?

- Você estava na fila!

- Ah não...

Dulcinéia percebeu que o rapaz falava com um ligeiro sotaque.

- Não conseguiu? Que pena!

- Quero dizer, não são meus filhos! É meu sobrinho. Minha irmã não pôde ir pra fila porque foi ao Chile resolver uns problemas. Então fui lá fazer a inscrição. 

Dulcinéia sentiu o coração quase parar. Olhou ao redor, parecia que as luzes dos postes, refletidas no verde das árvores, dançavam à  sua frente. O colorido das lanternas dos carros formavam uma corrente vermelha que a ela parecia uma marcha nupcial. As buzinadas no trânsito congestionado, todo aquele barulho chegava ao seus ouvidos como uma orquestra. Ela olhou ligeiramente para o rapaz que nunca abandonava aquele sorriso. Os sons e as cores do trânsito intenso envolveram-na. Só foi despertada do devaneio quando ouviu uma voz cansada dizer quase no seu ouvido:

- Dá licença, menina!

Era um cabecinha branca querendo passar. Dulcinéia se encolheu. Olhou discretamente para Caio e disse:

- Espero que consiga a bolsa pro filho da sua irmã!

- Também... - respondeu o rapaz, sem desviar os olhos do trânsito.

-  Vou lá pra trás. Até amanhã, então!

Caio acenou com a cabeça, enquanto seus olhos buscaram rapidamente o retrovisor interno do ônibus. Ele disse apenas:

- Tchau!

Ela ficou decepcionada com aquele monossílabo. Empinou o corpo, ergueu a cabeça e foi girando a roleta, quando ouviu a voz com sotaque dizer.

- Amanhã vou tirar folga. Um colega vai me substituir. Na sexta estou de volta. Vê se não perde o ônibus!

Ela fitou o rapaz sem dizer nada. Seu coração disparou. A surpresa invadiu a sua fisionomia a ponto de fazê-la corar-se.

Tudo que Dulcinéia queria na vida era nunca mais perder aquele ônibus! 



EPISODIO 17

SUTILEZA? FUTILIDADE? ESPERTEZA?

- Cozinheira, o que você está fazendo?

- Preparando o almoço!

- Nada disso! Hoje vou fazer regime. Quem quiser comer, peça pizzaria.

- Mas dona Júlia...

- Nada de "dona Júlia". Madame, ouviu?

- Sim, madame!

Júlia sai estabanada, passando os dedos nos móveis.

- Essa casa está muito suja! Cadê a arrumadeira?

- Não sei, madame!

- Procure saber. Traga-a aqui. Agora! Quero ver a cara dessa faxineira! Se é que ela existe!

Júlia senta-se no sofá, esticando as pernas sobre a mesinha do abajur, enquanto Penha sai à procura da arrumadeira. Quando a encontra, vai logo prevenindo:

- A tal da madame tá o bicho hoje!

- Ai meu Deus!

- É bom rezar mesmo! Tá chamando você. Leve espanador, flanela...



Ao ver a moça entrando na sala, Júlia vai logo gritando:

- Arrumadeira, na sua casa tem espanador? Você sabe como usar? Limpe logo esses móveis!

- Mas senhora...

- Senhora é a senhora sua mãe! Me chame de madame!

- Madame...

O telefone toca. Júlio corre para atender. Fala disfarçadamente, dando as costas aos empregados.

- Daqui a pouco encontro você!

 Desliga o telefone e grita, gesticulando:

- Arrumadeira, pegue o vestido preto e os sapatos que deixei em cima da cama. Rápido!

A moça sobe as escadas correndo e mais correndo ainda, volta. Entrega as roupas à Júlia, que tira o hobby de seda ali mesmo, exibindo um corpo lipoaspirado e perfeito.

No mesmo instante, entra na sala um rapaz. Ao vê-la seminua, vira-se de costas. Júlia da uma gargalhada.

- Pode entrar, jardineiro!

Depois, remexendo os cabelos excessivamente negros de tintura, anuncia:

- Vou sair par trair o meu marido.

Em seguida, como se estivesse arrependida do que falou:

- Vou sair. Se meu marido ligar, diga que estou na sauna!

Sai rindo, cantarolando e rebolando. Quando chega na porta, adverte os empregados, esticando o dedo:

- Olho no meu filho, o Pedro Henrique, hein! Cadê a Tina, gente?

Nem espera a resposta. Pega o carro e se arranca dali, dando gargalhadas. O som da musica ainda se ouve quando ela chega no portão.



Essa é a esposa do ministro. Lindíssima. Corpo malhado. Morena de bronzeado artificial. Olhos de um castanho mais chegado a mel. Elegantérrima. Pretensiosamente refinada. Entretanto, de uma grosseria fora do comum para com os empregados. Nunca os chamava pelo nome e sim pela profissão que cada um exerce.

Aborrecida com os maus tratos, a arrumadeira sugere:

- Essa madame pensa que "tem o rei na barriga". Vamos armar uma pra cima dela?

Timóteo, o jardineiro, argumenta, deixando da sala:

- Você perdeu o juízo?

E Penha:

- Falando em perder, não vou botar o meu emprego em risco. Tenho dois filhos pra criar. Deixa essa doida pra lá. Conheço as maluquices dela há 11 anos.


EPISODIO 18 

A TRAIÇÃO


JULIA SE ENCONTRA COM SELMA, UMA EX-COLEGA DE FACULDADE, NO GALERIA, O MODERNÍSSIMO SHOPPING FREQÜENTADO POR ARTISTAS, GENTE BADALADA, GENTE DA MODA E POR OUTROS QUE QUEREM APENAS FAZER FOOT

OUÇA AGORA A CONVERSA DAS DUAS, ENQUANTO TOMAM UMA TAÇA DE VINHO E COMEM UMA SALADA VERDE NUM LUGAR BEM RESERVADO DE UM BAR.



- E o casório, sai ou não sai?

- Claro que sai! - responde Selma com segurança, cruzando as pernas bem torneadas e ajeitando os cabelos castanhos com os dedos.

- Tá mesmo apaixonada!

- Eu?

- Não?

- Júlia, o homem é riquíssimo. Qual mulher não se apaixonaria?

- Então está! - brinca Júlia.

- Vamos mudar de assunto?

- Ok. Dei um susto nos empregados depois que falei com você?

- Como?

- Me vesti. Gritei: vou sair para trair o meu marido! Você precisa ver a cara deles!  - conta e dá a sua costumeira gargalhada.

- Você é doida, Júlia!

- Quando voltar, ajeito tudo. Já devem estar falando de mim. Você sabe como são os empregados. Aliás, não sabe! Ralando numa boutique ainda não passou por essa experiência.

- Casando com um dos homens mais ricos do Brasil, você acha que vou continuar ralando numa boutique?

- Vai haver um "enlace dourado" - brincou e soltou outra gargalhada.

- Querida, vou embora! Me demiti da boutique e vou passar uma semana num SPA. Tudo por conta do noivo! Tenho que fazer as malas!

- Selma, e o seu caso com o Carlo?

- Carlo é outra história. Depois conversamos!

Levanta-se, ajeitando o vestido que havia subido ao se sentar, deixando as pernas à vista. E alisando a cintura fina, como se estivesse moldando-a ainda mais, despede-se: 

- Bye!

fazer foot = bater perna



FINAL

Assim que Selma vai embora, sai de uma joalheria um executivo, alto e louro, olhos e terno pretos. O rapaz se dirige para a mesa onde Júlia está. Ela sorri alegremente, erguendo o queixo e sacudindo os cabelos.

Ele se aproxima. E sem dizer nada, senta-se, esticando a mão na direção de Júlia. Uma mão tão pequena que chega a ser desproporcional ao seu tamanho. Ela, fitando-o nos olhos, aperta-a com força. Em seguida, fala em alemão:

- Tava sumido! Já sei, estava na Hungria!

- Tudo bem? Continuo investigando o caso!

Júlia, observando as modelos que desfilam na Gospel Butik à sua frente, procura saber.

- Alguma pista dos ladrões?

- Muitas! Já estamos quase pondo as mãos neles.

- Tomara... - fala distraída, bastante interessada no desfile, onde as modelos exibem roupas exclusivamente para mulheres evangélicas.

- Houve um roubo naquela joalheria - o executivo aponta para trás - mas, aparentemente, os ladrões não têm conexão com Budapest. Ficou sabendo?

- Não... eu estava em casa, com dor de cabeça. Acho que tomei sol demais na piscina! - mente e desvia o olhar, acenando para as crianças que saem às toneladas dos cinemas.

Embora queira saber mais detalhes, ela se cala, não desejando demonstrar muito interesse no caso.

O alemão, observando-a meio alheia à conversa, sugere.

- Vamos? Só temos hoje. Amanhã retorno pra Budapest!

Ele se levanta, mas volta a se sentar apressadamente, fazendo uma careta de dor. Seu corpo magro arqueia-se e a testa cai pesadamente sobre a mesa. Júlia se assusta. Toca rapidamente o seu braço e percebe que o homem não reage. Toca o seu pulso e não o sente também. Por fim, tenta abrir a sua mão e sente a resistência dos dedos fechados.

Olha apavorada para todos os lados. Aparentemente ninguém está prestando atenção nos dois. No Galeria é dia de festa para a criançada e todos estão envolvidos nas atividades.

Júlia percebe que não tem mais nada a fazer ali.



No mesmo instante, o bar é invadido por aplausos que vêm da Gospel Butik, ao mesmo tempo em que as crianças, numa gritaria, correm ao encontro de palhaços que distribuem bombons e balões coloridos, num palco na área descoberta do Galeria. Numa rua lateral do shopping ouve-se uma freada brusca, seguida do barulho de lataria de carros que se chocavam. E escondendo o rosto ensangüentado, uma atriz de TV foge dos paparazzi.

Lá do balcão do bar, o maitrè olha a mesa onde Júlia e Selma estavam. Vê somente um homem alto e louro curvado sobre o braço, como se estivesse dormindo.


EPISODIO 19

OLHOS NEGROS, apaixonados! 

O renomado Professor vinha andando a passos largos pelo corredor com os braços abarrotados de livros, quando cruzou com uma aluna.  

- Nossa, professor, quanto livro!

- É preciso ler muito para preparar as aulas, ficar informado...

- O sr. gastou uma grana com tudo isso!

- Gastei nada! A gente ganha das editoras. É cortesia!

- Então eu também quero. Como faço pra receber?

- Primeiramente, você tem que ser professora. De que turma você é?

- Terceiro...

- Então falta pouco. Quando entrar pra faculdade, cursar uns quatro anos...

- Menos, professor, menos!

- Falo sério!

- Qual é, professor?

- Sério!

- O sr. não disse que os livros são de graça?

- E são!

- Grátis coisa nenhuma, xará! Quatro anos de faculdade custam muito!



A aluna entrou no laboratório de química e Felício continuou andando, quando viu a copeira cruzando o corredor.

- Dulcinéia! 

Ao ouvi-lo, ela acelerou os passos, virou à esquerda no corredor, empurrou a  primeira porta que viu e entrou na sala. Lá dentro o silêncio era absoluto. Dulcinéia deparou com umas pessoas de roupa branca, sentadas em círculo, todas de olhos fechados, pernas e braços cruzadas. Ela se deu conta do engano, fez meia volta e ia saindo pé ante pé, quando ouviu um grito, seguido de uma gargalhada. Tina, a filha do ministro, foi a primeira a vê-la e não se conteve. Dulcinéia experimentou a sensação de mais de vinte e seis pares de olhos cravados nela, para depois ouvir a explosão de sonoras gargalhadas e dedos que apontavam na sua direção. Antes que se recuperasse da surpresa, uma jovem magrinha, de rabo-de-cavalo, que estava à frente do grupo, levantou-se de um salto e argumentou:

-  Você não podia ter entrado aqui. Não viu a placa lá fora?

- Desculpe, professora. Eu estava fugindo! - cochichou.

- Fugindo de quê?  Pode-se saber?

- Deixa pra lá!

- Quer fazer a gentileza de se retirar? Veja o que você fez! Interrompeu a aula de Meditação!  - disse a professora, mostrando a ela a porta e apertando o laço do roupão branco.

Em seguida, batendo palmas, gritou:

- Silêncio!

Os alunos, entretanto, não paravam de rir. E Tina, enrolando com o dedo a trancinha na qual pendia um diamante, rolava pelo chão, sem conseguir se controlar.

Dulcinéia sentiu raiva dela.

- Logo essa patricinha, amiga da tal de Andie, foi ver meu fora! Bem que um pivete podia cortar essa trancinha dela e levar o diamante. Seria bem feito! Mas a patricinha tem um motorista-segurança que vem pegá-la na porta da escola.

Cogitou mandar seqüestrar o motorista de Tina, pra menina ter que atravessar o centro da cidade pra pegar um coletivo. Entretanto chegou à conclusão de que ela pegaria um táxi no estacionamento do colégio.  E concluiu também que esse seu plano era outra roubada.

A professora, vendo-a ali, com a bandeja na mão, sem se mover, convidou rispidamente.  

- Por favor...

Envergonhada, Dulcinéia foi saindo. No corredor,...


2ª parte

Envergonhada, Dulcinéia foi saindo. No corredor, o renomado professor esperava por ela.

-  O que estava fazendo aí, Dulcinéia? - perguntou impaciente.

- Professor, não tive culpa!

- De que?

- A bolinha de pingue-pongue do KK no corredor...

- Peraí. Que bolinha? Quero saber desta história direitinho!

Dulcinéia percebeu que se traiu, que havia caído na própria armadilha. E teve que contar ao professor Galvão todo o plano bolado pra chegar perto do motorista na fila dos bolsistas. O PhD, abafando uma risada, encerrou a conversa dizendo:

- Depois cuido de KK e Tiago. Agora quero que você vá à papelaria e encomende esse material aqui da lista. Depois você pode ir pra sua casa!

Dulcinéia olhou as horas e levou um susto. Eram 2h25min. Era a sexta-feira que Caio disse pra ela não perder o ônibus.

- Professor, não posso sair!

- Como não? Não é você que gosta de sair mais cedo por causa dos ônibus lotados? - falou, segurando a risada que ele gostaria de ter soltado ao ouvir a história da bolinha.

- É, mas hoje...

- Está aqui a lista! Bom fim de semana! E não chegue atrasada na segunda-feira - finalizou, esticando a mão para Dulcinéia, que a tocou levemente. Em seguida, o professor Galvão saiu. O jaleco branco tremulava com o ritmo dos passos apressados daquele homem alto e magro.

Dulcinéia não pôde argumentar nada. Correu para o vestiário e chorou baixinho, lágrimas sentidas, de coração mesmo.

-  O que vou fazer na rua até a hora do Caio passar? Logo hoje, que tudo ia dar certo. Odeio esse professor! 

O vestiário, com os olhos banhados de lágrimas, ela olhou para a janela. Uma roseira florida roçavam a vidraça, como se estivesse querendo entrar pela janela.  Dulcinéia, irritada, fechou a persiana e gritou:

- Estragou tudo. Agora... agora...  - e caiu em prantos novamente.


FINAL

Dulcinéia abriu a porta da sala intempestivamente. Como sempre, dona Maria Porém, àquela hora da tarde, estava de joelhos orando. Dulcinéia caiu de joelhos também, abraçando-a, apertando-a, chorando sem parar. A saia curta subia mais e mais, deixando as pernas bronzeadas à vista. A mãe, preocupada, fechou a Bíblia, ao mesmo tempo que tentava cobrir a nudez da filha.

- Meu Deus, o que aconteceu?

- Mamãe, sou tão infeliz...

- Não diga isto, Dulcinéia. Evite essa palavra! Jesus te ama!

- Eu sei, mamãe!

- Vamos orar, nós duas. Deus vai tocar o seu coração!

- Não consigo, mamãe! Oh! meu Jesus! - exagerou um pouco ao clamar pelo Senhor, querendo comover a mãe.

- Consegue sim! Vamos?

Sem dar importância ao convite, ela se levantou, sendo acompanhada pela mãe. Sentaram num dos sofás da sala. Dulcinéia, com a cabeça apoiada no colo de dona Maria Porém, contou que conhecera o motorista, que estava apaixonada e que não podia mais viver sem aquele amor.

A mãe ouviu tudo sem dizer uma palavra sequer para em seguida determinar. 

- Minha filha, vamos orar! Nós duas! O Senhor vai tocar o seu coração! 

Dulcinéia chorou ainda mais, no colo da mãe. Dona Maria Porém impôs as mãos sobre a sua cabeça e fechou os olhos. Ficaram longo tempo ali, as duas, abraçadas.

De repente ela se ergueu, afastou os cabelos negros das faces, olhou fixamente para o rosto da mãe, como se buscasse ali uma solução. E com olhos imersos em lágrimas, disse esperançosa.

- Mamãe, estou melhor... ainda temos a segunda-feira, né?

  

O ônibus veio reduzindo a marcha e parou na estação. A fila começou a se movimentar para o embarque. Caio, ao volante, olhava sorridente para cada passageiro, sempre acenando com a cabeça. Seus olhos negros procuravam alguém. As pessoas foram aos poucos lotando o coletivo. Quando o último passageiro entrou, não havia mais expectativa naquele sorriso de dar prejuízo ao dentista. Ele deu partida no ônibus, lentamente, pensativo.

Naquela viagem de volta para o bairro, estava faltando alguém.



EPISODIO 20

TINA - o sufoco, o segredo...

O sinal eletrônico soou, anunciando mais um fim do turno escolar. Tina se dirigiu para o estacionamento onde o motorista já estava esperando. A menina entrou rapidamente e ordenou:

- Pro Galeria!

- Gosta de lugares fechados, gatinha?

Tina estranhou a voz. Olhou na direção. Viu ao volante um homem encapuzado. No banco traseiro havia uma outra pessoa com o rosto completamente coberto, a qual ela não notou quando entrou apressada. Tina tentou fugir, mas o carro já estava em movimento e a pessoa ao seu lado falou com uma voz tão impostada que a surpreendeu. Mesmo ela percebendo que era uma mulher, a voz parecia de homem:

- Vamos levá-la a um lugar bem fechado! Você vai ver!

Tina estremeceu, mas tentando demonstrar coragem, quis saber.

- Onde?

- Você verá!

E o motorista pisou fundo no acelerador. A garota fez menção de abrir a porta. A mulher ao seu lado virou-se, apontando-lhe uma arma.

- Se mexer essa mãozinha, já sabe o que te acontece!

Tina começou a suar. Olhou para a mulher e viu um par de olhos azuis, infinitos, fitando-a como fossem um radar. Sentiu medo. Mesmo assim, quis saber.

- Cadê o meu motorista?

- Tá repousando no porta-malas. Quer ficar com ele?

- Vocês o mataram?

- Que acha?

E a mulher soltou uma máscula gargalhada.



Depois de rodar vários quilômetros, chegaram a um lugar que Tina não saberia onde era, porque a mulher de voz impostada havia colocado uma venda em seus olhos.

Entraram os três numa casa abandonada. Fizeram-na sentar. Passado alguns instantes, tiraram-lhe a venda. Tina arregalou os olhos quando viu o motorista encapuzado com uma faca na mão, vindo ameaçador na sua direção.

- Socorro!! - gritou a garota.

- Calma! Acha que vou cortar a sua garganta? Não gosto de ver sangue, bichinha! - esclareceu o homem, com um sotaque de estrangeiro que aprendeu o português no Nordeste.

- Que vai fazer então?

- Quero saber onde você conseguiu esse diamante aí no seu cabelo. Em Budapest?

- Era só o que faltava! Posso comprar milhares desses - disse com arrogância - sou rica, tá sabendo? Posso comprar quantos quiser! E se quiser ir pra Europa agora, vou!

A mulher de voz impostada soltou outra gargalha.

- Hum... ela é bem metidinha! Agora? Agora te garanto que você não vai a lugar nenhum!

Tina se calou, assustada. A mulher encapuzada, alta e magra, de corpo escultural, segurava na mão direita uma arma e na esquerda uma bengala, na qual se apoiava para andar. E andando e mancando pela sala, depois de longo tempo pensativa, concluiu:

- Periquito, a patricinha não deve saber de nada mesmo! Acho que pegamos a pessoa errada! 

No mesmo instante uma voz saiu de trás de uma porta semi-aberta, espalhando terror pela sala.

- Cometeram outro erro, cambada! Solte a patricinha e seu motorista. E bem longe daqui. Só espero que ela não tenha visto as suas caras. Incompetentes! 

- Mas Pássaro... chefe...

- Nada de mas... Arranque o diamante do cabelo dela e solte-a!

O homem encapuzado, que falava com sotaque, deu um salto e ficou na frente de Tina. Agarrou todo o seu cabelo. Pássaro ordenou lá da outra sala.

- Não precisa cortar todo o cabelo não, idiota! Só a trancinha com o diamante...

Porém o homem de sotaque estrangeiro agarrou uma mecha e passou rapidamente a faca. E outra vez a voz de Pássaro soou pela sala, dirigindo-se à mulher:

- Jandaia, vou ligar pra Beija-flor buscar vocês. Amarre a garota. Tire o motorista do porta-malas e deixe os dois na estrada.



Dito e feito. Tina e o motorista foram deixados num matagal, num lugar ermo e frio, onde não passava ninguém. Passaram a noite ali, tentando libertar um ao outro.



Ao chegar em casa no dia seguinte, Tina deu graças a Deus por sua mãe estar viajando também, o que a evitava dar explicações por ter passou a noite fora. Decidiu não contar nada aos pais e ameaçou dispensar o motorista se ele abrisse a boca. Se os pais ficassem sabendo, aí sim é que ela perderia a liberdade. Caindo de sono, ela se enfiou debaixo das cobertas. Entretanto, Pedro Henrique entrou sorrateiramente no quarto. Viu a menina com o cabelo tosquiado e caiu na risada, saindo pé ante pé.

Contudo, a história de seqüestro ficou em segredo.
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Atualizado em: Ter 3 Mar 2009

Comentários  

#2 minina_azul 31-10-2009 14:42
Adoro roteros de novelas e ti digo que fiquei impresionada!!
#1 minina_azul 31-10-2009 14:42
Adoro roteros de novelas e ti digo que fiquei impresionada!!

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