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Um Velho Mal Humorado

Toda vez que desço a ladeira de pedras de minha rua, indo em direção ao centro da cidade, tenho que forçar meus joelhos e pés para brecar a gravidade que me empurra descida abaixo, e por isso, sinto o estalar desconfortável e doloroso das minhas articulações acometidas pela gota. Antigamente, muito antigamente, chamava-se essa infeliz enfermidade de “Doença Dos Reis”, foi meu médico que me disse. “Rei é o caralho! Doença dos infernos, isso sim!”, lembrei-me do que respondi a ele, ao médico, mostrando todo o meu fel, quando ele me veio com essa pérola, e acabei sorrindo, o que não acontecia há muito tempo. Sou um ranzinza incorrigível, nasci assim, azedo. Hoje em dia estou muito pior. Devido às dores inerentes a velhice meu humor tornou-se acre e bilioso como um vômito fedorento de quem encheu o rabo de cachaça durante todo o dia.

Durante a descida vou acertando os cocurutos, com minha bengala, dos moleques que me perturbam no caminho. Ah, como eu gosto do barulho da madeira batendo em osso, “Plac”. Depois o som dos gritos; primeiro de susto e depois de dor. O choro deles adoça meu dia, amansa minha gastrite, fico quase em paz.

Quando vou chegando ao fim da ladeira vejo a velha Vilma sentada na cadeira de balanço em baixo de uma sombra de goiabeira em frente a sua casa. A puta velha está cega como uma minhoca. Não enxerga um palmo a sua frente. Mas ainda mantém uma vitalidade impressionante para alguém de quase noventa anos. Eu tenho setenta e sete e ela oitenta e sete.

Atravesso a rua e vou para o outro lado, para passar bem longe de “Tia Vilma, a moça véia”, que de moça não tem é nada, sei muito bem disso. No entanto, não tem jeito, ela sempre sabe quando sou eu que estou passando. “Ora, ora, mas pra onde vai o demônio em pessoa uma hora dessas?”, ela pergunta olhando diretamente pros meus olhos, mas sei que ela não me vê, é apenas o seu instinto apurado pela cegueira misturado a sua obsessão por mim. 

Vilma foi dona de um famoso bar nos anos sessenta, que eu era frequentador assíduo. A infeliz se apaixonou por mim e se deu muito mal. Usei e abusei de seu corpo e de sua grana, enchi ela de porrada algumas vezes e a humilhei tantas outras. Sempre fui um escroto e mau-caráter. E a vaca parece gostar de mim até hoje, têm coisas que são difíceis de explicar. Eu também já fui usado e abusado por algumas mulheres durante essa minha longa vida. Acho que todo mundo já passou por uma situação dessas. Ela não é melhor do que ninguém por causa disso. E nem eu sou o pior cara do mundo. A minha diferença em relação à Vilma é que não nutro nenhuma simpatia por essas pessoas, essas que me pisaram e atravancaram meu caminho, quero mais é que elas arrombem seus rabos gordos e fedorentos em cima de caralhos gigantes, ao contrário dela, que, notoriamente, não se desvencilhou de amores do passado. Coitada!

Passo por ela batido, e a ignoro completamente. Ela percebendo meu desprezo mandou essa: “Que Deus abençoe sua alma”. Tive vontade de dar meia volta e cuspir na cara dela um sonoro “vai se foder!”. A vagabunda passou quase a vida inteira na maior putaria e agora vem com essa de Deus. Soube que de uns anos para cá ela frequenta a igreja constantemente. Espero que continue indo e salve sua alma, não quero ninguém enchendo o meu saco no inferno.

Chego ao fim da rua e vou em direção ao boteco do Pedro. Preciso descansar, estou mortinho da silva. Eu poderia ir para a cidade de taxi, mas, sou turrão feito um burro xucro e insisto em disfarçar minhas fragilidades e vivo me enganando ao achar que sou capaz de fazer tudo ainda. Peço uma pinga e acendo um cigarro.

Com o passar do tempo acabamos descobrindo que a vida é uma merda. Ela se transforma num círculo mórbido de encontros e desencontros. É como se nós fôssemos eternos personagens do poema Quadrilha, de Drummond, fulano que ama beltrana que ama sicrano que não ama ninguém. Infelizmente, só descobrimos isso quando passamos dos sessenta.

Peço outra cachaça e viro numa talagada só e continuo minha dolorosa caminhada. Mais a frente eu avisto um grupo de homens fardados e viro na primeira esquina a direita por pura força do hábito e dou de cara com uma velha amiga que fui perdidamente apaixonado no passado e que desdenhou de meu amor descaradamente e acabou casando com um sujeito que não tinha nada haver com a história. Finjo que não a conheço e sigo em frente, ela não precisou fingir, deu para perceber que realmente não fazia a mínima ideia de quem eu fosse. Senti uma comichão no meu orgulho, mas logo passou.  E antes de chegar ao meu destino concluo que a vida não passa de um amontoado de bosta fedida que desce continuamente pela descarga da suja privada do mundo, e isto me deixa muito puto, isto me deixa de mau humor! 

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Atualizado em: Sex 26 Abr 2013

Comentários  

#2 PauloJose 02-05-2013 12:53
VELHINHO BEM CHATO, MAS JÁ PASSA DE SETENTA.
FAZER O QUÊ.
PARABÉNS.
#1 EXTREMOFILO 29-04-2013 15:24
O velho é pra lá de rabugento e mal humorado, porém seu conto é um primor, detalhista, sucinto, porém muito agradável.

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