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Tarde de outubro


Já era outubro e a monotonia da rotina fazia os dias todos parecerem iguais. Mas, naquela tarde, ela saiu mais cedo. Talvez pela exaustão causada pelas atividades repetitivas, o cansaço das obrigações desmotivadoras, ou as ideias insistentes em criar cenários e sequestrar a atenção. Apenas levantou-se de súbito e tomou sua rota de fuga. Naquele dia, tudo que ela queria era estar longe. Longe de quê? Nem ela sabia ao certo. Poderia ser das salas frias com janelas sempre fechadas, da trivialidade, ou, quem sabe, da moça sentada ao lado dela que insistia, quase incansavelmente, em manter conversas por demais vagas. Não que as conversas, de fato, a incomodassem. Em alguns dias, eram até mesmo um bom passatempo. Mas, hoje não. Hoje, ela só queria estar longe. Ainda que não soubesse bem do que.

Fora dos tumultos do cotidiano, ela seguia agora com o seu caminhar. Algo a incomodava. Ela, sempre ensimesmada e cabisbaixa, reparava o chão, para onde direcionava o olhar. O cinza conciso do asfalto estava recoberto por um tapete floral, desenhado pelo ipê colorido que se abrigava na esquina. Estranho, pensava, ao observar o cor de rosa das pequenas flores espalhadas pelo chão. Ela tentava lembrar se aquela fora sempre a cor da árvore, questionando se não fora roxa, ou, quem sabe, amarela.

Do outro lado da rua, uma moça de cabelos esvoaçados pelo vento acendia um cigarro. Havia algo de liberdade naquela moça com o cigarro. Estava lá, olhando vitrines, apenas. O vento corria pelos cabelos dourados, fazendo-os escorrer ora pelos ombros, ora pelo rosto, enquanto a fumaça do cigarro fazia desenhos e imagens torcidas pelo ar.

Era apenas uma moça com seu cigarro, olhando vitrines. Sem pressa. Sem um lugar para ir. Sem lugares para chegar. Ela, pela primeira vez depois de muito tempo, também tinha agora seus longos cabelos sendo esvoaçados pelo tempo, que quase dançavam, como se esperassem inebriantes pelo reencontro com a brisa. Mas, a primeira gota de chuva que caiu sobre ela despertou do devaneio, fazendo-a perceber que a moça do cigarro não mais observava aquela vitrine. Agora, os pedestres da rua corriam quase desesperados, tentando escapar da garoa que aos poucos engrossava. Dois rapazes cobriam as cabeças dos pingos de chuva com as mãos. Adiante, uma moça retirava o casaco para proteger com ele os cabelos. Um homem oferecia o espaço debaixo do guarda-chuva a uma outra senhorita, que se equilibrava em sapatos de fino salto alto. Pareciam ser desconfortáveis os sapatos.

Em meio aos passos apressados, no horizonte daquela cinza tarde de outubro, um casal de velhinhos caminhava com uma terna serenidade, contrastando com a velocidade dos transeuntes. Os cabelos eram muito embranquecidos e os passos de uma brandura que apenas aqueles que já compreendem o tempo podem possuir. O senhor segurava o guarda-chuva com uma de suas mãos e a outra repousava sobre a sua companheira. Havia uma incontestável leveza naquele casal de velhinhos, que pareciam tão avessos naquela cena. De repente, o guarda-chuva passa para as mãos da senhora e ele troca os passos comedidos por um caminhar acelerado. Após tomar certa distância, vira para a companheira, sozinha no guarda-chuva, que, sem entender ainda o que acontece, desabrocha um sorriso ao vê-lo desabrigado e alvo das gotas que caíam. Conforme ela se aproxima, como se um lapso temporal tomasse conta do cenário, os dois são jovens novamente. Ele rouba um beijo. Ela solta o guarda-chuva, para que possa envolvê-lo com seus braços, enquanto ele a envolve, igualmente, com ambas as mãos. Nem mesmo os pingos de chuva que agora os atingiam poderiam separar um do outro. E ela olha os dois, como uma obra de arte em um museu, contemplando-os com o seu olhar, como se fosse uma espectadora fora do cenário. Como se estivesse distante. Como se estivesse longe.

As crianças apontavam para a estranha senhorita que, ao contrário dos outros passantes fugitivos e apressados, permanecia inerte na chuva. A verdade é que, naquele momento, não haviam nem ao menos ideias que pudessem sequestrar a sua atenção. Eram apenas as gotas de chuva caindo das nuvens do céu que faziam pouso sobre sua cabeça, nada além disso. Ela ainda não podia perceber, mas estava dentro de sua própria obra de arte que não ficava em nenhum museu.

Enquanto isso, a moça com o cigarro estaria, talvez, distante, olhando novas vitrines. E elas mal sabiam que, mesmo sem conhecer uma a outra, algo as unia.  Não tinham mais pressa. Sem um lugar para ir. Nem lugares para chegar. Estavam longe de tudo e longe apenas.
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Atualizado em: Qui 26 Out 2017

Comentários  

#2 Amelia_da_Adelaide 14-02-2018 02:00
Muito obrigada!
#1 Cabell 26-12-2017 21:50
Envolvente. Ótimo. Parabéns!

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