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Kalumpa

Tempos remotos. Quando eu era vivo, mandava do litoral pernambucano até a cidade de Salvador, na Bahia. As minhas terras eram as mais profícuas e os meus compadres se avizinhavam de mim e me emprestavam o seu prestígio. Tinha muita influência no Império, afinal eu era um grande exportador de açúcar para o reino.

Os mensageiros do rei sempre me traziam presentes e cartas de apoio. Às vezes uma opinião de quem poderia ocupar o lugar de ouvidor ou de tabelião. À minha disposição, uma legião de escravos que os comprava aos lotes. Com toda razão, porque no meu tempo, negro não tinha alma. E tinha se fosse obediente a mim, seu senhor, e eu pedisse ao padre para lhe conceder uma.

Como sempre fui um bom escravizador, somente mandava chibatar os negros. Nunca mandei esfolar as costas das negras. Deus me livre desse pecado mortal! O engenho produzia demerara que viajava nos navios ingleses porque era mando do rei de Portugal. Meus filhos eram João Maria do Outeiro, Pedro D'Aurora do Outeiro, Manoel Pinto do Outeiro, Maria Isabel do Outeiro e Maria de Fátima do Outeiro. Provável que vocês não me conheçam, mas eu era o Coronel Antonio Maria das Graças do Outeiro.

Minha esposa, com a graça de Maria Fernandes Fidelis do Outeiro do Meio, era uma portuguesa dessas de sangue puro, vermelha que nem um tomate. Forte, robusta, parideira, mas um tanto quanto retraída, recatada. O que ela gostava muito era de cozinhar e se juntar com as negrinhas, cunhas, escravas.

Meus filhos eram desocupados porque no engenho não havia lugar para um trabalho de fidalgo. Tinham uma professora, dona Rute Maria Carrapateiro, que cuidava das lições dos meninos. Foram criados livres e tomando banho nas fontes frescas dos meus terrenos. Adultos, lhes dei um quinhão de terra para cuidar. E eu, já na minha velhice, aos 40 anos era um senhor que, apesar de forte, fui sendo rejeitado por Maria Fidélis, minha senhora. A mulher era fria, só vivia com calor, mesmo na chuva, brigava com tudo e com todos. E eu comecei a cair na tristeza. Resistia e o nosso segredo continuava atormentando a mim e a minha santa esposa. Ela tinha uma mania de só dormir muito tarde, já para evitar as minhas pelejas. As conversas com as escravas mais velhas e as cunhãns iam até o primeiro canto dos galos.

Fui a Olinda adquirir uma partida de novos escravos porque o rei mandou uma mensagem para mim que eu procurasse produzir três vezes mais para atender a uma encomenda das companhias inglesas e holandesas. Não podia faltar ao meu rei.
Encontrei uma partida de escravos novos, fortes, dentes bons, olhos vivos e no meio deles uma negra de nome Kalumpa.

Essa negra era muito forte, tinha os braços rígidos, nova e só estava cansada da viagem de navio da África. Juntei o lote a partimos pra fazenda. Eu no meu cavalo e os negros a me acompanhar. De repente ouvi um grito muito forte. Retornei pra ver. Kalumpa tinha pisado numa ponta de pau e furou os pés. Como sempre, fui bom senhor: mandei colocá-la na minha própria garupa, porque não ia perder aquela negra nos serviços da minha casa.

Finalmente, à noite chegamos. Todos pra senzala, menos ela. Água morna, manjericão e um pano pra guardar a ferida. Na verdade, Kalumpa era bonita e não tardou João Maria estava caído por ela, para minha desgraça e da minha santa esposa. Ela era imóvel aos anseios de João. Muitas vezes o vi nas escapadas e nos arredores empurrar a negra no mourão. Ela resistia, não dizia uma só palavra. Certa noite, irado de raiva, ele a surrou impiedosamente e eu não podia fazer nada. Para amenizar, no dia seguinte eu perguntava na sua frente o que tinha acontecido àquela negra que estava cheia de pancada. O silêncio era a resposta exata.

Numa determinada noite, percebendo o perigo de Kalumpa, eu me antecipei e fui rápido ao seu encontro. Mandei se esconder no sótão das rações dos animais. Ela compreendeu e obedeceu imediatamente. João Maria, pisando no meu rastro bateu a porta e não a encontrou. No dia seguinte, a pretexto de serviços nas suas terras, levou a escrava. Tomei conhecimento do fato e mandei-a buscar. Meio sem jeito, porque não podia expressar o que sabia e por isso ficou difícil. Mas como coronel, mandava e era feito. A reação do João foi brutal. Mandou surrar todos os negros e negras das suas posses sob a alegação de que não estavam produzindo com afinco.

Kalumpa passou a ser uma dama da Maria Fidélis. Olhos vivos, esbugalhados, fungando de medo, mas sempre na companhia da sua sinhá até altas horas da noite. Foi ganhando a simpatia e confiança e passou a dormir, juntamente com as outras, num cômodo na sede da fazenda.

A minha luta com a santa da minha espora era árdua e não via alternativa para saciar minha sede, meu fogo, e passei a pensar mal de Kalumpa. Uma noite muito calma, enquanto todos dormiam, fui até a negra, puxei-a pelo braço e a levei para o mesmo sótão onde se escondera antes. Ela não podia resistir ao seu senhor. Matei o meu desejo profundamente e nunca tinha visto algo parecido ou igual. Meiga, suave, doce, cheirosa, entregue aos braços do amor na mais pura devoção que o amor pode dar.

Nos dias seguintes, era apenas sinalizar e os fatos se repetiam com maior fogo. Pouco tempo e Kalumpa já apresenta o resultado. Um bucho meu. Cresce o bucho e João Maria exige explicações. A coisa ficou feia e eu resolvi mandar a negra pra outra fazenda. Minha santa esposa arrocha Kalumpa e pede às outras pra descobrir quem era o pai. Ai não teve jeito mesmo. O coronel estava desmascarado.

A tristeza e revolta de Maria Fidélis contaminam João Maria, Pedro D'Aurora, Manoel Pinto, Maria Isabel e Maria de Fátima. Contudo, eu era o coronel e ninguém estava acima de mim naquele pedaço. Mandei todo mundo se calar. Inexplicavelmente, Maria Fidelis não deixou Kalumpa viajar e a manteve nas mesmas condições de antes.

Poucos dias e Kalumpa amanhece morta. Fui examinar o que houve. Ela tinha sido ferida por uma onça muito selvagem que arracou-lhe os seus pedaços numa luta feroz próximo do açude da fazenda. Enterra Kalumpa e nada mais. Timbolau, a escrava mais velha, não se contenta e não pára de chorar. Dia e noite. Adoece e fica muito fraca. Agoniza e pede que eu vá vê-la. Pede que eu me abaixe e diz: coronel Antonio Maria das Graças do Outeiro, a Kalumpa foi morta a facão. Os seus peitos foram rasgados e a carne que o senhor comeu no dia do enterro era dela!

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Atualizado em: Qui 6 Nov 2008

Comentários  

#2 Abreu 07-08-2010 08:51
Jeeeeeeeeeeeeesus!!!!
#1 Abreu 07-08-2010 08:51
Jeeeeeeeeeeeeesus!!!!

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