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Prisão Virtual

O ano é 2050. Devido a proliferação do meio de comunicação denominado "internet", o mundo inteiro está interligado. Tudo o que a pessoa precisa, acessa exclusivamente de seus domínios. Não há mais a necessidade de deslocamento. Mas, com todas estas vantagens, a internet trouxe um "pseudo-estado anti-social", onde ninguém mais sai às ruas. Serviços tais como encomendas e tele-entregas são feitas apenas por robôs. O mundo se trancou em sua redoma virtual. Ninguém mais vai ao local de trabalho. Há uma rede interligando os computadores. As pessoas trabalham sem sair de casa. Se comunicam através de videoconferências, ou usam mensageiros instantâneos. Para fazerem compras, as pessoas navegam por um mundo virtual usando seus avatares. A comunicação permaneceu, mas não há mais o "contato". As estradas e ruas de grandes metrópoles estão desertas; o que deu condições para a vida animal se libertar e se adaptar. Lá fora agora existe "a selva", mas poucos se importam, visto que preferem cuidar da aparência de seus avatares do que prestarem atenção ao estado decrépito do exterior de seus prédios.

E como tudo isso é mantido longe de falhas? Há inúmeros servidores em todos os países, movidos à energia etérea - uma nova forma de energia adquirida através da fusão de energia nuclear com energia atômica de forma segura - que os mantém constantemente ligados. Mesmo que um ou dois servidores viessem a ter problemas, nada poderia causar um "blackout" mundial ao mesmo tempo. Pelo menos era o que todos achavam.

E era também o que eu achava. Como detetive de casos especiais, nunca havia precisado colocar meus serviços em ação. Afinal, ninguém saía de casa e de seus mundos virtuais. Mas, o ser humano que se encontrava agora estendido na rua, em minha frente, colocava todas as teorias por água à baixo.

Para vocês entenderem este meu laudo técnico, devo explicar o que ocorreu e os eventos que se seguiram, desde o inicio.

Era dia primeiro de abril de 2050. Eu estava tranqüilo em meu gabinete quando vi uma notícia intrigante na página online de nosso jornal. Lá dizia que neste dia, e no restante da semana, iria ocorrer um fenômeno na superfície do Sol. Esse fenômeno iria ocasionar uma forte radiação por parte de nosso astro. E ela iria atingir a Terra em poucas horas. Os cientistas estavam estudando seus efeitos, mas não havia precisão quanto o que ocorreria ao planeta. Mas, até aí, tudo bem, já que ninguém saía de casa mesmo.

Mas o final da matéria chamou minha atenção. Lá dizia que o tão comentado "blackout mundial" poderia ocorrer devido à forte radiação. É claro que ninguém deu atenção a esta notícia, mas eu, como detetive, já podia ouvir as pessoas desesperadas.

A radiação chegou em uma hora, como o esperado. A cidade foi atingida. As plantas e os arbustos na localidade derreteram. Em pouco tempo, os computadores pararam de funcionar. O pânico que se seguiu foi indescritível. Mas ao contrário da previsão dos cientistas, a radiação durou poucos minutos. Então tudo voltou ao normal.

Exceto, claro, que meu visofone recebeu uma chamada. Por causa dela, eu tomei a decisão de ir lá fora. Lá fora? Eu? Em um mundo em que ninguém mais saía às ruas nestes últimos dez anos? Mas, um detetive tinha que ir coletar as evidências.

Tomei precaução quanto aos animais soltos e vesti uma roupa especial de exploração. A "selva" escondia inúmeros perigos.

Eu possuía uma forma peculiar de trabalhar. Sempre baseei meus estudos num pilar tríplice, que era formado pelos eventos a seguir: motivo, circunstância e área.

No atual evento, o motivo era desconhecido, mas a circunstância era o presente fenômeno da radiação solar e a área era o centro da cidade, ou, da selva...

Era possível que algum animal o tivesse atacado. Mas, duas perguntas não saíam de minha mente: "Por que essa pessoa saiu? Se ela havia sido atacada por alguém, por que duas pessoas saíram?".

Somente robôs faziam o serviço externo. Mesmo que um robô a tivesse atacado, ainda permaneceria a primeira pergunta. Não havia nenhum sinal aparente de agressão. Parecia que por vontade própria a pessoa havia resolvido sair. Está certo. Eu também andava enjoado da prisão "livre" a que nos submetemos. Mas tínhamos tudo o que precisávamos através da internet. Não havia motivo para suicídio. Ao executar o "analisotron", a identidade que apareceu na tela, mudou tudo. Era Elgoog S. Job, o idealizador de nosso mundo virtual. Por que alguém ou algo iria fazer mal a alguém que trouxe tudo o que queríamos ao alcance de nossas mãos?

Percebi que havia esquecido o evento da radiação solar. Os primeiros, a saber, que ele iria ocorrer, foram os cientistas. Era preciso interrogá-los. Marquei uma videoconferência para aquela mesma tarde.

(...)

- Então, qual era a ligação do senhor Elgoog com a empresa dos senhores?

- Ele patrocinava nossas pesquisas.

- Em que área especificamente?

- Na área de robótica e na área de psicologia.

- Hum. São áreas bem distintas. Vocês notaram algum comportamento estranho por parte dele, antes deste fatídico dia?

- Ultimamente ele aparentava estar com a mente vaga.

- O ouviram mencionar algo importante?

- Ele andava falando algo sobre "liberdade"...

- Liberdade... Obrigado pelo seu tempo.

Era estranho alguém que idealizou a idéia de um mundo virtual mundial unido, falar em liberdade. Ele devia estar satisfeito por ter conseguido algo que nenhum governo humano conseguiu, pelo menos virtualmente.

O próximo passo era investigar a fábrica de robôs.

(...)

- Já houve algum caso de defeito?

- Não senhor. Apesar de nossos robôs não terem um dispositivo de segurança, são programados apenas para cumprir ordens pré-estabelecidas. Qualquer ordem fora de sua programação não é executada.

- E que ordens são essas?

- Bem, o senhor deve saber, ninguém sai às ruas. Então os robôs são usados para responderem aos pedidos de encomendas e tele-entregas. Na verdade, se fossemos ver por outro lado, eles seriam considerados apenas veículos.

- Não há nenhum dispositivo de segurança?

- Já disse que não. E para que fins? O robô simplesmente segue a ordem "pegue isto aqui e entregue lá".

- Foi registrada alguma anomalia desde que a fábrica foi inaugurada?

- Apenas uma. Há um relatório no arquivo da biblioteca que menciona que uma das primeiras criações apresentou traços de comportamento.

- E o que houve com esse robô?

- Foi exterminado.

- Bem, agradeço sua atenção. Desculpe o incômodo.

(...)

A biblioteca. Estranhamente não encontrei nenhum arquivo mencionando este fato. Eu teria que ir até lá pessoalmente. Isso era assustador. Lá fora era um mundo totalmente novo - dominado tanto pela fauna quanto pela flora. Pensando bem, por que eu deveria me importar? Cada um continuava levando sua vida normalmente. Eu não precisava e não queria ir lá fora. Somente uma forca externa e muito forte me faria sair de novo. Os robôs já haviam limpado a cena do crime e dentro de uma semana todos teriam esquecido o fato.

A noite chegou. Antes de dormir dei uma última olhada em meus e-mails. Havia uma nova mensagem, enviada de manhã, bem cedo. Continha apenas uma frase: "penso, logo existo". Não dei muita atenção até observar o remetente. Era Elgoog S. Job. O que aquele velho queria me mandando uma mensagem dessas? Fui dormir.

O novo dia chegou rapidamente. Encomendei meu café da manha e poucos minutos depois, o robô entregador batia à minha porta.

- SUA ENCOMENDA SENHOR IRVING. O CUSTO TOTAL É DEZ GILS.

Ainda dormindo, dei-lhe uma nota de vinte. Quando ele já ia partindo, dei-me conta e pedi que ele voltasse.

- Esta nota que lhe dei são vinte gils. Você tem que me dar o troco.

- SIM, SENHOR.

- E já ia indo embora com minha nota, não é, espertinho? Parece que não pensa...

O robô devolveu o troco e deu meia-volta, indo embora sem pronunciar qualquer uma de suas tradicionais despedidas, tais como "obrigado por usar nossos serviços", ou "volte sempre", ou ainda, "a empresa tal agradece a preferência"...

Mas não dei muita atenção. De volta ao serviço, a primeira página da internet que acessei, foi a do jornal Metrópole, que concentrava cem por cento das notícias mundiais. A notícia de destaque fez com que eu derrubasse meu sanduíche no chão e me afogasse com meu café. A manchete dizia:

"Morte do precursor da era virtual, senhor Elgoog S. Job. Causa: possível assassinato. Suspeitos: no momento, temos apenas a informação de que somente uma pessoa se encontrava do lado de fora naquela manhã: o senhor detetive sênior Irving Herald."

Alguém estava me incriminando. Então me veio a pergunta: "quem havia me ligado naquele dia?". Resolvi checar o histórico de meu visofone. Havia uma mensagem de meu inspetor para procurar certos rastros digitais, outra mensagem de uma mulher convidando-me para entrar em sua comunidade e mais duas. Uma sobre novidades da tecnologia e uma vinda diretamente do escritório das Alpine Towers. Reproduzi novamente a ligação vinda do escritório:

"Detetive Irving Herald! Há um homem estendido na rua, lá fora! Quando for comprar um livro..."

Eu não havia prestado atenção neste fato, mas Elgoog S. Job me avisara uns dez minutos antes que iria morrer. Então fora suicídio mesmo. Mas sua segunda e incompleta frase me intrigava.

Bem, já que agora eu era um dos suspeitos, resolvi seguir meu plano inicial e ir até a biblioteca. Pelo menos, ninguém sairia lá fora para me procurar. Peguei tudo o que precisava e saí. O arrepio que senti no corpo fez questão de me lembrar onde estava. Foi aí que ouvi um rugido. Da esquina logo à minha frente, surgiram vários pedaços destrocados do que um dia foi um robô entregador. Segui com cautela, até a criatura me avistar.

Só lembro-me de ter corrido feito louco do leão que me perseguia. Para quem nunca saía de casa, correr lá fora era um martírio. Deixei minha mochila cair e parece que isso acalmou a criatura. Talvez por meu lanche estar ali dentro. Mais uma quadra e estaria na biblioteca. Recuperei o fôlego e prossegui.

Lá estava ela, abandonada há mais de dez anos, quando todos os seus arquivos foram transferidos para os meios eletrônicos. As paredes já estavam rachando e havia mais poeira do que livros...

Procurei a sessão de "Descobertas no Ramo Científico" e folheei com certa dificuldade um livro chamado "Criaturas Autômatas". Os primeiros parágrafos mencionavam um dos primeiros robôs domésticos que tinha a função de apenas servir de entretenimento no inicio do século XXI e possuíam as mais diversas formas, tais como de animais de estimação, selvagens, miniaturas de veículos, brinquedos e etc. Era uma enciclopédia completa. Mas como estava interessado somente nos atuais, fui direto às últimas páginas.

"Modelo EEV-02 (Entregadores da Era Virtual)

Características:

* a) Físicas: aparência humanóide, corpo fino, pés e mãos semelhantes às humanas (dependendo do terreno, seus pés poderão ser fabricados no formato de esteiras)
* b) Internas: engrenagens e fios de alta durabilidade
* c) Psíquicas: seguem a programação escrita em seus chips cerebrais e reagem a estímulos externos
* d) Segurança: apenas cumprem o que foram instruídos em sua fabricação e não executam comandos, além destes, por vontade própria"

Infelizmente, isso não estava me ajudando em nada. Só estava descrevendo o que eu já conhecia. E não havia nenhum outro livro que trouxesse a palavra "robôs" na cara.

Já estava desistindo, quando me sentei e parei para meditar. Eu precisava pesquisar sobre anomalias, mas onde? Foi aí que me lembrei dos telefonemas de ontem de manhã. Poderia Elgoog estar querendo me dizer algo através de enigmas?

"Quando for comprar um livro..."

"... não julgue-o pela capa."

Isso quer dizer que não podemos saber o que há no interior da pessoa somente olhando sua aparência. Isso era psicologia. A única seção que não havia olhado. Saí correndo e fui para lá.

Um livro simples de capa azul, onde estava escrito "Psicologias Humanas e afins" chamou minha atenção. Peguei-o e folheei. Fui direto para o capítulo denominado "Anomalias". Dentro dele achei um parágrafo com o título "Caso Número 10 - Oceano de Dirac". Independente dos conceitos ali expressos, encontrei algo que descrevia um desvio no padrão cerebral de certo autômato denominado "EEV-01". Apesar de sua programação inicial estar perfeita, as equações ilógicas se uniram de tal forma, que o que podemos chamar de "mente", se formou inexplicavelmente no chip cerebral da criatura.

Aí então, lembrei do que havia lido sobre o modelo EEV-02, em suas características psíquicas. "Reagem a estímulos externos". Talvez, durante o tempo em que esteve ativo, o modelo EEV-01 assimilou os estímulos externos e criou um banco de dados próprio somente para essas informações, interagindo com os humanos e aprendendo o que cada frase queria dizer.

E, no último parágrafo do livro, encontrei o que estava procurando. O modelo EEV-01 estava apenas desaparecido e não exterminado. Alguém havia mentido para mim. Ou então, eles não sabiam.

Já possuía as informações que precisava. Acabei lembrando que, de certa forma, havia xingado o robô entregador hoje de manhã. Se eles eram capazes de reagir a estímulos externos, com certeza minha atitude seria gravada em seu chip na área reservada para mau comportamento. Talvez por causa disso ele não tenha me respondido. Foi uma reação contida. Outro robô se fosse um EEV-01, teria me atacado. Acho que foi isso que aconteceu. Já tenho o motivo.

De alguma forma, o senhor Elgoog desencadeou uma reação direta de um robô. E este, analisou seu banco de dados e percebeu que estava sendo ofendido. Sua reação não foi medida e o fato ocorreu. Então, o robô desapareceu. Para não espalhar o pânico, a empresa criou a notícia de que o robô fora exterminado. Acho que o caso está resolvido.

O problema agora seria como eu iria dar um fim a esse caso sem revelar a falha que poderia arruinar a nossa utopia. Mas o próximo evento resolveria tudo, ou, mudaria todo nosso mundo para sempre.

(...)

Saindo da biblioteca, tomei cuidado para não enfrentar nenhum outro animal selvagem. Olhei bem para as quadras distantes e saí. Só me dei conta de que algo havia me atingido quando desmaiei.

Acordei em uma ala secreta na fábrica de robôs. Havia uma pessoa em minha frente. Abri e fechei os olhos várias vezes. Mas ele realmente estava ali.

- Desculpe, mas foi o único jeito que achei de trazê-lo até aqui. Ainda bem que escolhi a pessoa certa. Você decifrou meu pequeno enigma.

- Senhor... Senhor Elgoog?

- Peço que me ouça. Vou explicar tudo. E você encontrará o motivo de os eventos terem acontecido desta forma. Eu pensei que criando um mundo onde todos tivessem o que precisavam ao alcance das mãos fosse suficiente. Mas eu esqueci de um pequeno detalhe. A humanidade nunca abriu mão de seu livre-arbítrio. E era o que eu esperava que acontecesse. Mas, sem querer, eles abriram...

- Como assim? Nós somos livres!

- Não somos não. Com o tempo nos condicionamos a não sair mais às ruas, e isso foi culpa minha, através do projeto de interligação mundial da rede de servidores e criação do mundo virtual. Para facilitar nossas vidas, foi criada a fábrica de robôs. Outro de meus erros.

- Mas eles são responsáveis por nos prover tudo o que precisamos! Como pode ser um erro?

- Porque agora nós dependemos deles. E eles sabem disso.

- Eles podem nos prejudicar?

- Não.

- Então o que há de errado?

- O primeiro robô que criamos, o modelo EEV-01, de forma lógica, criou um banco de dados com informações sobre o que agradava e o que desagradava os humanos. Em pouco tempo ele já sabia como deveria nos tratar. E sabia o que seria melhor para o planeta inteiro. A partir dele, foram criados os modelos EEV-02.

- E o que aconteceu ao modelo 01?

- Sumiu.

- Por quê?

- Já disse. Seu banco de dados estava cheio de informações sobre os humanos. O que mais desagradava os humanos? Dependerem de robôs. Foi aí que o plano começou.

- Mas eles pensam?

- É claro. Ainda não entendo muito, mas pensam.

- Lembrei-me que hoje de manhã, sem querer, acabei xingando um dos robôs entregadores. Eu mencionei que achava que ele não pensava.

- Ele deve ter assimilado o que você disse e se sentido satisfeito.

- Satisfeito?

- "Penso, logo existo". O e-mail que lhe enviei. Logicamente, se não penso, não existo. É o objetivo principal do modelo EEV-01. Cuidar de nós sem sabermos que os robôs é que estão cuidando do planeta.

- Cuidando do planeta?

- Sim. Pense bem. Temos tudo ao nosso alcance em nossas moradias. As ruas e os campos abertos são dos animais. E os outros lugares são comandados pelos robôs. Não temos contato direto com a fauna e a flora para não afetar o equilíbrio planetário. E para finalizar, foi criado o fator "medo" usando meu mundo virtual para manter os humanos longe dos animais perigosos das ruas.

- Uma utopia perfeita. O que o senhor vê de errado nisso?

- O que mencionei de início. Livre-arbítrio. Enquanto os humanos acharem que este mundo foi criado por livre e espontânea vontade deles, tudo ocorrerá bem. Mas, quando souberem que não verdade estão sendo controlados por robôs...

- O caos reinará...

- Exatamente. Por causa disso agi com extremo cuidado. Eu havia sido informado de que a radiação solar iria bloquear todos os sistemas momentaneamente. Aproveitei essa ocasião para colocar meu plano em prática e criar uma cópia perfeita de meu corpo. Era a única maneira de trazê-lo até mim, sem que eles soubessem.

- "Eles" quem?

- Abra os olhos, detetive. Os humanos podem não desconfiar, mas os robôs sabem muito bem que são eles que dominam. Com o passar do tempo, temo que criem a consciência de que os odiamos e se virem contra nós. Isso já começou em pequena escala.

- Me acusarem de tê-lo assassinado...

- Isso. E aquele pequeno evento que o senhor descreveu de sua última entrega.

- Então, vamos ver se entendi. O senhor acha que o modelo EEV-01 de algum lugar está preparando um motim. O senhor usou o evento da radiação solar para nenhum robô ficar sabendo que era um truque para contratar um detetive. E agora o senhor deseja ajuda para exterminar o modelo EEV-01 sem arruinar a nossa utopia. Mas como o senhor não sabe onde ele está, necessita a ajuda de um detetive. E, como tecnicamente, o senhor está morto; poderá me fornecer informações sem preocupar-se com o resto.

- Bingo!

- Isso vai ser complicado. Qualquer passo em falso e corro o risco de fazer nossa sociedade desmoronar.

(...)

Precisei parar um tempo para analisar o que faria logo em seguida. Ao sair dos prédios das Alpine Towers, respirei fundo e olhei para cima. Era tão bom respirar o ar puro e me sentir "livre". Mas, ao abrir os olhos, algo chamou minha atenção. Uma espécie de sombra havia começado a encobrir o Sol. Era um eclipse. Um eclipse? Nesta época do ano? Isso era muito estranho.

Novamente tomei cuidado para não despertar a curiosidade dos animais e me dirigi para minha moradia. Eu estava começando a gostar de andar pelas ruas do lado de fora.

Ao dobrar a esquina de minha casa, notei que havia duas viaturas policiais voadoras estacionadas bem em frente dela. Um robô pequeno, responsável pelas autuações - para que os ocupantes das viaturas não precisassem sair do carro - batia à minha porta e lia em voz alta e robótica, que eu estava sendo convocado para uma reunião no QG Policial para ser preso por assassinato.

E agora? O que eu faria? Como poderia me esconder ali fora? Enquanto isso, o dia ia tornando-se cada vez mais escuro devido ao eclipse. Observei mais uma vez o robô, e algo parecido com uma faísca saiu de sua cabeça. O Sol! Ele estava encoberto. Os policiais não entendiam que eles dependiam diretamente da luz solar. Eu já sabia e isso era uma vantagem. Eles estavam com medo de sair de suas viaturas, então decidiram voar de volta ao QG. Eu já estava me acostumando ao ar daqui de fora, mas devo dizer que esse eclipse ainda me provocava arrepios.

Curiosos com o fato, e talvez porque novamente o "blackout" ocorrera, muitos apareceram em suas janelas e até portas de casa para ver o fenômeno. Claro que de modo tímido. Mas muitos puderam sentir por pouco tempo o sentimento de "liberdade" que agora eu sentia. Pouco tempo, porque o medo os "empurrava" para dentro em poucos minutos.

Voltei para casa. O eclipse se estendeu pelo dia inteiro. Fato inédito, porque, pelo que já li em pesquisas na internet, os eclipses duram apenas alguns minutos e no máximo uma hora. As últimas notícias do jornal Metrópole acabavam de chegar em meu e-mail.

"Fenômeno desconhecido cria evento parecido com a recente radiação solar. Os cientistas pesquisam com afinco para descobrirem a causa do eclipse fora de época e o porquê de sua duração até o momento ser de um dia inteiro. Especula-se que seja não-natural e sim um evento artificial. Esperamos que logo possam encontrar uma solução, visto que todos os robôs pararam e em poucos dias teremos um sério problema para adquirir suprimentos. Alertamos às autoridades e cidadãos que iniciem um processo de racionamento de alimentos."

Fenômeno artificial? Problema para adquirir suprimentos? Isso por si só já era uma grande pista para um detetive como eu saber que algo estava em andamento. E algo que o senhor Elgoog previra com tanta precisão. Com uma precisão cem por cento correta, aliás. Mas esse não era o caso no momento. Mas anotei para pesquisar mais tarde. Dormi com várias "engrenagens" funcionando ao mesmo tempo em minha mente.

(...)

De manhã cedo, acabei adquirindo o costume de dar uma boa caminhada lá fora. Já havia perdido o medo e muitos animais já haviam se acostumado comigo. Esse já era o terceiro dia em que o eclipse encobria os céus. Acabei arranjando um amigo. Todo dia em que eu ia caminhar, um pequeno tigre me acompanhava. Desde o dia em que forneci minha comida para ele e retirei algumas das mãos dos robôs paralisados, passou a ser meu companheiro e por que não, amigo. Sem os robôs, os policiais não apareceram mais em minha casa, e devido ao fenômeno, meu caso havia entrado em estado de esquecimento.

Apesar da tranqüilidade, eu aguardava a qualquer momento alguma surpresa vinda dos céus, ou mesmo do modelo EEV-01. Se ele havia mandado me prenderem, ele agora deveria saber que eu estava solto.

Não muito longe dali, encontrei uma bela jovem, tremendo de medo e procurando alguma coisa. Acalmei meu amigo e me aproximei.

- O que procuras?

- Você está aqui fora também? Achei que ninguém saía. Eu precisei sair, mesmo com medo. Meus suprimentos acabaram e notei que há muitos robôs parados com caixas de alimentos.

- Eu posso ajudá-la. Não tenha medo de meu amigo. Ele é manso.

- Há muitos animais aqui fora não é?

- Sim, mas com o tempo você se acostuma. A maioria não é perigosa. Meu amigo aqui, foi o acaso que o fez ficar manso.

- Você já deu um nome para ele?

- Já. Escolhi "Freedom", que significa liberdade.

- Hum. Você parece gostar de estar aqui fora.

- Mas é claro. Ficar preso dentro de casa acaba destruindo nosso maior sentimento interior. O presente que o Criador nos deu.

- Qual?

- Livre-arbítrio.

- Sabe que nunca havia parado para pensar nisso?

- Pois é, ninguém parou. Creio que agora, com essa falta de alimento nas casas e falta de entregadores, mais pessoas saiam às ruas.

- É verdade. É tão bom conversar ao vivo com a pessoa. O "contato" é tão bom.

Então, como que seu eu tivesse sido acertado por uma flecha bem em meu peito, uma luz surgiu instantaneamente em minha mente.

- Desculpe, mas o que eu falei antes para você mesmo?

- Que com essa falta de alimentos, mais pessoas sairão às ruas.

- Mas é claro! Era óbvio o tempo todo e eu não percebi! Que grande detetive eu sou. Sinto muito moça, mas preciso visitar um amigo.

- Iremos nos encontrar mais vezes?

- Claro, se você desejar. Pode ser naquela praça ali.

- Então tá. Amanhã estarei lhe esperando. Gostei de conversar com você. Aliás, gostei de estar aqui fora. Vou contar isso para os outros. Sabe, eu sou a redatora do jornal Metrópole e vou descrever essa experiência para todos lerem.

- Jornal Metrópole? Aquele que todos no mundo lêem? Perfeito! Faça isso mesmo! Ótimo!

- Não entendo sua tamanha alegria, mas espero que nos vejamos mais!

- Eu também. E nos veremos! Num "novo mundo"!

Sai correndo dali junto de meu companheiro e depressa percorri as quadras que chegariam nas Alpine Towers. Eu precisava encontrar Elgoog. Quanto entrei, expliquei com gestos para Freedom que ele deveria ficar ali fora. Subi o mais rápido que pude os degraus e cheguei à sala principal.

Lá estava ele em sua cadeira, olhando para a cidade abaixo. Aproximei-me e virei seu assento. O que vi na mesa mudou tudo novamente. Lá estava um pequeno notebook, com uma contagem regressiva de 43200 minutos restantes, ou um mês, para o eclipse solar se dissipar e tudo voltar ao normal. Realmente era uma criação artificial. Tentei perguntar para o senhor Elgoog o motivo disto tudo, mas, ele não respondeu...

Então se passou um mês...

Hoje, dia primeiro de maio de 2050, é um lindo dia ensolarado. Há várias pessoas na praia, nas praças, nas quadras, nos campos e aos arredores dos prédios. As casas estão vazias. As únicas coisas que permanecem lá dentro são os robôs domésticos, que ajudam nas tarefas de casa. Vejo vários passarinhos voando e muitos animais pastando nas reservas naturais. Infelizmente tive que me despedir de meu amigo, mas agora ele está bem melhor em seu habitat natural.

Todos desfrutam de seu livre-arbítrio. Se não fosse pelos eventos que haviam ocorrido não estaríamos aqui fora. Tenho orgulho de ter sido usado como instrumento de salvação da humanidade. Pelo menos, ganhei uma namorada e um novo amigo. Seu nome é Eve Two. Mas somente eu sei a verdade. Em suas costas, há um nome e um número tatuado bem conhecido: "Elgoog S. Job - modelo EEV-02".

(...)

- Eu ainda não entendi, Irving... - Sofia.

- Eu explico de novo. A programação do modelo EEV-02 é singular. Por um padrão encontrado em seu banco de dados, ele sabe o que nos agrada e o que desagrada. Resumindo, porque o resto você já sabe, eu tinha que acreditar que ele era humano, visto que pelas suas informações, nós odiamos ser controlados pelos robôs. Na verdade, ele usou isso para me convencer de que um modelo havia tornado-se mal, quando na verdade, isso é impossível, visto que contraria sua programação. Mas para mim "cair" na história de que ele era humano, foi preciso argumentar com fatos que "agradassem" minha mente, o que, de certo modo, é o que já vem programado nos modelos. E, como seu desejo de nos agradar é seu objetivo principal, ele havia notado que não estávamos felizes no mundo em que nós próprios criamos. Então, sutilmente, ele iria mudar nosso mundo para melhor, usando a identidade de uma autoridade que obtinha todos os poderes necessários para fazer as mudanças sutis, ou seja, Elgoog S. Job.

- E o que aconteceu com o verdadeiro?

- Descobri que morreu há muito tempo, mas insatisfeito com os passos que seu projeto principal tomava. Antes de morrer, criou o modelo EEV-02, e deu-lhe instruções precisas para continuar com o plano de "salvamento" da humanidade. Esse novo modelo assumiu sua identidade e estudou todos os humanos até que encontrasse algum apropriado para seus objetivos.

- Ele estudou todos os dez bilhões de humanos?

- Sim. E acabou me escolhendo. Talvez pela minha teimosia hahaha...

- Nisso ele tem razão, hahaha...

Um leve sorriso surgiu na face do modelo EEV-02. Pela primeira vez ele assimilava algo que ainda não havia sentido com seu antigo mestre, que só demonstrava angústia e ansiedade. Eve Two criou um novo banco de dados intitulado "sentimentos" e a primeira palavra que ficou registrada lá foi "felicidade"...

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Atualizado em: Dom 6 Jul 2008

Comentários  

#3 tania_martins 11-10-2009 20:41
Muito bom. Parabéns!
#2 tania_martins 11-10-2009 20:41
Muito bom. Parabéns!
#1 tania_martins 11-10-2009 20:41
Muito bom. Parabéns!

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