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Despedida

Numa UTI de um renomado hospital oncológico da cidade do Rio de Janeiro morreu Pedro.  Aos quinze anos havia sido diagnosticado com um linfoma. Iniciou imediatamente o tratamento com radioterapia e quimioterapia, mas não obteve muito sucesso; a doença evoluiu para uma leucemia aguda.  Resistiu até duas semanas após o seu aniversário de dezessete anos.  A família, ainda abalada com a dor, agiu como todas as famílias agem nos casos de morte, retirou forças não se sabe de onde e iniciou os preparativos fúnebres.  Ainda no hospital Marcos, irmão um ano mais novo de Pedro, procurou o pai e entregou a ele um envelope. No papel pardo reconhecia-se as letras de Pedro.  Uma frase simples: Para meu Pai.  O envelope estava lacrado com cola.

"Pai, espero que o futuro traga alívio, e que vocês possam seguir suas vidas normalmente após esses anos de dor e angústia que a doença causou a todos nós.  Escrevi esta carta nas horas de insônia, e elas foram muitas.  Fiz o Marcos jurar que só a entregaria caso eu morresse.  Por favor, não entenda mal, não desejo minha morte ao redigi-la, pelo contrário, torço muito para que você não a leia.

Essa doença maldita me fez pensar e repensar sobre tudo o que vivi até os dias de hoje.  Talvez não fique velho, talvez nem chegue à idade adulta, muito menos sou jovem, pois o tempo parou nessas idas e vindas entre o isolamento da nossa casa e desse hospital.  Dezessete anos, e o que me sobrou foi a infância, e é nela que me apego agora. A doença é maldita, mas a vida não, e mesmo que fosse para viver somente um dia de saúde em dezessete anos de sofrimento, ainda assim teria valido a pena.  Sou feliz, pois tive a liberdade protegida da infância.  Seu abraço, o colo da mãe, a confidência do Marcos... Não posso reclamar.  Quero levar comigo os cafés-da-manhã antes da escola, as viagens para a praia nos feriados, os passeios de bicicleta com o Marcos... Lembra pai, quando nos ensinou a andar de bicicleta?  Ficávamos todos ralados!  Eu reclamava, mas você sempre  insistia.  Quanta saudade!

Diz para a mãe não chorar muito, ela sofreu demais cuidando de mim, está abatida, parece mais velha.  Por favor, faça com que o luto passe rápido, torne-a novamente uma mulher feliz, devolva a ela o sorriso dos fins de semana, o sorriso da alegria de uma vida simples. Como mamãe era bonita, lembra pai?  Quando chovia, pedíamos bolinhos de chuva, e ela se alegrava, simplesmente por estar ali, fazendo aqueles bolinhos.  Acho que só as mães se alegram tanto preparando bolinhos de chuva.

Não discuta com o Marcos por causa dessa carta.  Fomos muito mais que irmãos. Crescemos juntos, foram várias as aventuras infantis. Travessuras escolares, brigas na rua, namoradas... Vai ficar tudo marcado nas nossas lembranças. Lá no futuro, nas memórias dele, vivo vai estar o irmão brincalhão, parceiro, e não esse corpo numa cama de hospital, que sequer pode respirar o mesmo ar que todos respiram.  Deixei a carta com o Marcos porque tinha certeza de que só a entregaria no momento certo. Conta para a mãe que era a gente que pegava escondido as latas de leite condensado, não posso morrer deixando a empregada levar a culpa por isso. Fico rindo sozinho com essa lembrança!

Essa é a parte da carta onde me revelo um tanto egoista. Estou muito preocupado com o que vai acontecer após a minha morte.  É por isso que vou fazer um pedido, e quero, com todas as forças que me restam, que ele seja atendido.

Gostaria de levar comigo a liberdade inocente da infância, que foi tudo o que eu tive antes dessa doença.  Quero os ventos do parque, as águas das praias, quero estar nas nuvens.  Não quero a prisão da terra, as plantas do cemitério não merecem minhas células cancerosas.  Por favor, me incinere, quero ser cremado.  Quero ser livre, voltar à natureza como água, como vapor. Joque as cinzas que sobrarem no mar. Quero me diluir no mundo, ser ele próprio, água, sais, ar. Quero ser a natureza, inocente como a criança que fui antes do câncer. Pai, por favor, me liberte!  Devolva-me à vida através do fogo!

Amo vocês, Pedro."

O desejo de Pedro foi atendido, e seu corpo foi incinerado três dias após a sua morte. A maior parte de Pedro agora vagava livre como vapor no ar, viajando ao sabor das correntes de vento, feliz por saber que poderia se tornar chuva a qualquer momento.  Agora ele era mais que vida, era o ciclo, era dádiva, estava interligado ao tudo, e também o era.

Faltavam as cinzas. O pai  aguardou um dia de calmaria no mar para contratar uma traineira.  Despejou-as o mais longe possível da costa. Marcos e a mãe estavam no barco, acompanhavam tudo chorando baixo, choro cansado. Pedro, finalmente, agora era mundo.

Alguns meses se passaram após a cremação. Ao andar de bicicleta Marcos sentia o irmão no vento deslizando em seu rosto. Quando Pedro chovia sua mãe corria para a janela e o acompanhava com as lágrimas.  Então preparava bolinhos de chuva e sorria. O pai os levava para a casa de praia com mais regularidade, quase todo fim de semana.  Contemplavam o mar em silêncio, mas não sabiam definir muito bem o que sentiam.  Às vezes sorriam quando percebiam a maresia tocando os seus corpos.

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Atualizado em: Sáb 1 Set 2012

Comentários  

#8 Marlende 09-07-2012 10:34
Uaalll !!! Não dá para não se emocionar, não só com o desfecho final como com o recado que ele deixou aos pais...Adorei: Devolva-me à vida através do fogo! Excelente...Aplausos Escritor !
#7 JogonSantos 24-02-2012 11:10
Cheguei a esse seu texto, pois tenho uma crônica homônima, porém com outro teor, e devo dizer que gostei bastante
da idéia que é tocante, emociona nas deixa uma mensagems otimista. Parabéns.
Jogon.
#6 azara 23-02-2012 08:33
Parabens esta muito linda.Abraços
#5 Akuma 23-02-2012 04:06
Estoria bonita rapaz.
#4 Laisa_C 23-01-2011 19:36
Este é um texto que respira, tem vida, alma, assim como Pedro, que nunca enxergou seu fim, pois o fim na realidade não existe..
Rafael, vc sempre apanhando o leitor de surpresa!
Parabens!
#3 yasmim 26-11-2010 16:23
Citando Joyce:
Triste e comovente...
Dá aquela sensação de que nada acontece por acaso; Pedro consegui depois da morte fazer com que sua familia se une-se ainda mais e enxerga-se a felicidade nas pequenas coisas, no bater do vento,no cair da chuva em um passeio nos fins de semana... em aprender andar de bicicleta com a ajuda de seu pai...
Hã como é bom a infância!
Lindo... Parabéns; seu escrito está maravilhoso... Me fez viajar!

Faço das palavras dela as minhas! :lol:
#2 tania_martins 24-11-2010 13:50
Parabéns,Rafael!
Abraços.
+1 #1 Joyce 23-11-2010 14:25
Triste e comovente...
Dá aquela sensação de que nada acontece por acaso; Pedro consegui depois da morte fazer com que sua familia se une-se ainda mais e enxerga-se a felicidade nas pequenas coisas, no bater do vento,no cair da chuva em um passeio nos fins de semana... em aprender andar de bicicleta com a ajuda de seu pai...
Hã como é bom a infância!
Lindo... Parabéns; seu escrito está maravilhoso... Me fez viajar!

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