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O CHAVEIRO

(Homenagem ao meu amigo Nelson Mendes, chaveiro a quem – como diz – Deus não deu irmãos pra não dar um irmão Caim, mas lhe deu grandes amigos)

Na rua onde morava havia um chaveiro, quase em frente à minha casa, que sempre me intrigou desde quando fui residir ali. Ao invés de atender a chamados, como todos de seu ofício, ele parecia vender chaves de porta em porta.

Embora nunca tivesse feito qualquer menção de me abordar, já tinha uma negativa pronta para repeli-lo, pois não pretendia permitir qualquer pessoa circulando em minha casa, muito menos da vizinhança. Estava vivendo quase numa ermida, e até minha longa barba já me dava uma aparência de ermitão, ou de bicho-grilo.

Não estava, então, disposto a abrir mão da privacidade que eu tanto prezava naquele momento. Quando cheguei do Recife e descobri o centro velho de Salvador, vinha em busca de respostas para perguntas que eu ainda não me fizera. Por absoluta ausência de vocação, abandonara a medicina e minha antiga vida. Agora precisava dar ao meu destino um novo rumo. Ao encontrar esta casa para alugar, o que mais gostei foi que poucas perguntas me fizeram e menos ainda as fiz eu. Paguei o aluguel religiosamente antes do vencimento com as economias que guardara. Não tinha muito dinheiro, mas dava para viver tranqüilo por um bom tempo. Afinal, nunca precisei de muito para viver.

O que procurava naquele momento era um lugar na cidade onde pudesse usufruir de um certo anonimato. Não que eu fosse famoso. Mas queria estar num bairro no qual não precisasse cruzar com conhecidos todos os dias, ainda que fosse o porteiro ou o servente, e responder a perguntas e indagações ou travar diálogos sem sentido, tudo pela polidez e boa vizinhança. Precisava me desligar um pouco do meu modus vivendi e encontrei ali o lugar ideal.

Voltando ao chaveiro, o mais curioso é que sempre havia “compradores” para as suas chaves. Habitualmente, chegava com seu jeito humilde. Boa tarde, patrão. Boa tarde, patroa. Qual a chave de hoje? Algum cofre pra abrir? E, invariavelmente, entrava na casa dos vizinhos e levava horas por lá.

Algumas vezes, depois de algum tempo na casa de seu cliente, saia; e, ao invés de continuar sua senda, voltava para casa, e não mais aparecia na rua naquele dia.

Aliás, ele nunca era visto na rua fora do horário em que saia para “vender suas chaves” e oferecer seus serviços. Sempre entre as duas horas da tarde e o por do sol. Pela manhã, nunca era visto. Muito menos à noite. Nunca o vi na feira, nas quitandas, nos bares, ou na padaria.

Também nunca o vi receber visitas. As portas e janelas de sua casa estavam sempre cerradas. A porta principal só se abria duas vezes ao dia. Quando saia para trabalhar e quando retornava. Quase sempre nos mesmos horários. Às vezes, alongava suas visitas a algum cliente e voltava para casa um pouco além do horário habitual, depois da noite posta.

Nunca o vi com qualquer ferramenta que denunciasse sua profissão. Andava apenas com uma velha maleta, quase anacrônica, de couro preto sintético. Lembrava muito as valises usadas por médicos, no tempo em que atendiam aos pacientes em suas residências.

 

Sempre que passava por mim, me cumprimentava. Mas nunca me oferecera os seus serviços. Isso até um dia em que me viu na janela, e já fazia nove meses que estava morando naquela casa. Parou. Levantou os olhos em minha direção e disse: não tá na hora de abrir aquele cofre lá do quarto? Olhei para o chaveiro. Surpreso. Quase assustado. E sei que minha estupefação transpareceu em minha face. Como podia saber daquele cofre deixado pelo inquilino anterior, se nenhum vizinho jamais entrara em minha casa, nem jamais comentara com ninguém sobre ele.

Mas o chaveiro sabia. E, antes que acedesse, ele já subira os dois degraus que me punham acima do nível da rua. E, antes que dissesse qualquer palavra, já estava agachado em frente ao cofre em meu quarto.

Ignorando-me, fitou o mecanismo do cofre como se estivesse em transe. Vi-o fazer movimentos suaves, para um lado e para o outro. Alguns cliques. Ouvi um pequeno barulho, como de uma fechadura se abrindo. Em segundos, descerrou-se o cofre. Mas ele não puxou a porta para concluir a abertura. Levantou-se. Afastou-se. E indicou para que eu concluísse seu trabalho.

Quando toquei a porta entrefechada do cofre e puxei-a lentamente, transpassou-me uma torrente de pensamentos e imagens e sons e cheiros e cores e dores. E uma sensação de vertigem me tomou. Nada mais me lembrava. Sei que não tombei ali, a não ser que tivessem me carregado, pois no dia seguinte fui despertado em minha cama pela alvorada que penetrou pela janela entreaberta. Estava confuso, mas tinha uma sensação de alívio, um peso se esvaíra. E eu não sabia o que se fora e o que ficara em mim.

Naquela manhã tive apenas uma certeza. Aquele não era o meu lugar. Chegara a hora de partir. E fui-me embora. E nunca mais voltei. Aprendi uma nova profissão. Hoje sou chaveiro. Mas só faço chaves, não abro cofres, apenas portas. E continuo até hoje caminhando pelas circulíneas estradas da terra exercendo o meu ofício. Batendo de porta em porta e abrindo portas.

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Atualizado em: Seg 26 Abr 2010

Comentários  

#8 valmeloperesia 25-04-2010 00:05
Kokranne.
Você e Cilas foram generosos nos comentários a um neófito. Abraços.
#7 valmeloperesia 25-04-2010 00:02
Obrigado, Tania.
#6 valmeloperesia 25-04-2010 00:00
Cilas,
Obrigado pelo generoso comentário.
Abraços.
#5 valmeloperesia 24-04-2010 23:56
Cerson,
Obrigado pela visita e pelo comentário.
Um abraço.
Valmelo Peresia
+1 #4 Kokranne 06-04-2010 09:32
Adorei o texto e concordo com Cilas...parabéns!
#3 tania_martins 05-04-2010 20:38
Parabéns!
#2 Cilas_Medi 05-04-2010 17:41
Intrigante. As portas e os cofres da alma, foi o que compreendi. Uma excelente profissão. E uma narração correta. Parabéns!
#1 Cerson 05-04-2010 14:08
Parabéns. Texto muito bom, bem interessante... abraços

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