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Tenho um problema muito sério

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Tenho um problema muito sério. Um vício muito, muito difícil de se resolver. Vou te contar que tenho vivido para viver sensações que me fazem sentir. Sabe, eu fico pensando na razão que conecta os prazeres que eu aprecio. O teatro. Os concertos. Um filme no cinema. Um lugar que se conhece pela primeira vez. O primeiro contato – a pele na pele – com alguém que me atrai. A atração em si. A atração visceral e quase ancestral. Fico pensando nos livros que eu leio. Pensando no que aquele escritor sentiu antes de escrever o que escreveu e como eu, meses, anos, décadas ou até séculos depois, sinto como se estivesse conectada a esse primeiro sentimento que o motivou a escrever. Esse autor que eu não conheço e que não me conhece tampouco. Sinto como se estivesse conectada não só ao autor, mas de certa forma, a todos os outros leitores que sentiram, de alguma maneira, esse sentimento. Esse sentimento que tem um tom coletivo e é, ao mesmo tempo, totalmente singular, porque é fruto de encontros, cheiros, toques, vivências particulares que conversam com as palavras impressas no papel. E como é fatal se entregar a rotina regular depois de vivenciar essas emoções. Não é, veja, a minha intenção, aqui, rascunhar todo o abstrato desses sentimentos de que eu falo. Embora não seja essa a minha intenção, se for para melhor esclarecer o que tenho tentado falar, é que tenho vivido por aquela emoção em que parece que no vértice de um abismo tenho um de os meus pés em terra firme e o outro pairando no ar, na iminência da queda. De um lado, toda a vida. Do outro, o destino inevitável. Um instante quase imortal. Essa emoção, meu caro, para mim, é tudo. Não me entenda mal, não julgue isso como um preciosismo, uma tentativa fracassada de lirismo. Nunca fui e nem sou artista e sempre me entendi melhor ao lado daqueles que somente apreciam. Até a apreciação, no ato mais passivo, é um repouso diante do tédio. Mas se algum dia fecharem os teatros, se colocarem abaixo os cinemas... Se em algum momento eu tiver já conhecido todos os lugares que há para se conhecer, se não existirem mais livros para serem lidos e nem histórias para serem contadas... Se não houver outra criatura que me sequestre a razão... Que aquele abismo que eu senti conhecer me olhe de volta. E me envolva. E me receba, de vez.
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Atualizado em: Qua 22 Jun 2022

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